8. Medo Coletivo

2288 Palavras
A manhã seguinte nasceu silenciosa. Darrow’s Hollow parecia imóvel, sufocada por uma tensão invisível. O ar tinha gosto de ferrugem e o vento trazia um frio que parecia vir do solo, e não do céu. O lago, que antes refletia o sol como vidro escuro, agora parecia cinzento e espesso, como se algo se movesse lentamente sob sua superfície. Ethan observava a cidade pela janela da casa da mãe. As pessoas andavam pelas ruas com passos curtos, olhares baixos, evitando cruzar palavras. A cada esquina, um murmúrio — histórias sobre sombras, sussurros nas janelas, sons que vinham da floresta à noite. Era o início do medo coletivo. Sarah chegou pouco depois, pálida, exausta. “O mercado fechou mais cedo” disse. “As pessoas não saem de casa depois das seis. E há rumores de que o garoto Harper… foi visto.” Ethan virou-se, o estômago contraído. “Visto onde?” “Na margem do lago. Mas ninguém teve coragem de se aproximar.” O silêncio que se seguiu era quase palpável. Ethan sabia que era impossível. Se o garoto realmente fora levado pela criatura, o que quer que o povo tivesse visto não podia ser ele — pelo menos, não mais. Eles caminharam juntos até a beira do lago. O ar ali era mais denso, pesado. O som das ondas parecia abafado, e o cheiro era de ferro e algo antigo, podre. Na areia úmida, marcas estranhas desenhavam símbolos circulares — as mesmas formas do diário. Sarah apontou. “São os mesmos padrões, Ethan. Ela está marcando a cidade. Está se expandindo.” Ele assentiu, o olhar fixo na água. Cada símbolo parecia pulsar, como se tivesse sido gravado por algo vivo. De repente, um som baixo ecoou da floresta: estalos, seguidos de passos apressados. Ethan e Sarah recuaram. Duas mulheres saíram correndo da trilha, os olhos arregalados, o terror estampado no rosto. “Tem algo lá!”, gritou uma delas. “Algo se movendo entre as árvores! E… tinha olhos!” Tom Grady apareceu logo atrás, ofegante, arma em punho. “O que está acontecendo?” perguntou Ethan. “Não sei” respondeu o xerife, o olhar varrendo a linha da floresta. “Mas as pessoas estão perdendo o controle. Estão vendo coisas. O medo está tomando conta.” Sarah olhou para ele com firmeza. “Não são coisas imaginárias, Tom. É real. A criatura está manipulando o medo. Está usando a cidade contra si mesma.” Tom balançou a cabeça, mas a tensão em seus olhos o denunciava. “Seja o que for, precisamos manter as pessoas calmas. Se o pânico se espalhar, Darrow’s Hollow desaba.” Mas já era tarde demais. Do outro lado da cidade, gritos começaram a ecoar — um som agudo, caótico, vindo de vários lugares ao mesmo tempo. Portas batiam. Cães latiam sem parar. E o vento trazia consigo algo que não era vento: um sussurro uníssono, como centenas de vozes falando a mesma palavra. "Acordou." Ethan congelou. Sarah olhou para ele, o rosto pálido. “O que… o que foi isso?” Ele respirou fundo. “O medo. Ela sente o medo. Cada grito, cada pensamento desesperado, fortalece-a. Ela está crescendo.” Henry Calder apareceu na estrada, apoiado em sua bengala, o rosto sério, a voz rouca. “Eu avisei. O medo é o alimento. Quanto mais vocês tentam conter, mais ela se espalha.” O céu começou a escurecer, embora o relógio marcasse apenas quatro da tarde. Nuvens densas cobriram o lago, e a água começou a se mover em círculos, lentos e profundos. Ondulações largas se formavam, como se algo gigantesco se mexesse debaixo d’água. As pessoas começaram a correr, a gritar. Tom tentou manter a ordem, mas a histeria já se espalhava. Ethan observava o lago e sentia que, sob aquelas águas, algo respirava — e cada respiração parecia sugar o ar da cidade. Sarah o segurou pelo braço. “Está vendo o que ela faz? Ela não precisa atacar. Só precisa que tenhamos medo. Nós somos o que ela come.” Ethan olhou para o horizonte, o coração acelerado. “O medo coletivo é o início do fim. Se não encontrarmos uma forma de reforçar o selo… ela vai tomar Darrow’s Hollow inteira.” O vento soprou mais forte, e um som grave veio das profundezas do lago, ecoando como um trovão subterrâneo. O solo vibrou sob seus pés. As janelas das casas próximas tremeram. E, do meio da água, por um instante, algo emergiu — uma forma disforme, n***a, feita de carne e sombras, que se dissolveu tão rápido quanto surgiu. Mas todos viram. E naquele momento, o pânico se tornou absoluto. As pessoas corriam em todas as direções. O som dos gritos se misturava ao vento, que agora soprava vindo do lago, frio e úmido, como o sopro de algo vivo. Portas batiam, janelas quebravam. O medo, antes sussurrado, havia tomado forma. Tom Grady tentava conter a multidão na praça principal, mas era inútil. Homens e mulheres falavam ao mesmo tempo, contando histórias diferentes e idênticas — sombras se movendo pelas ruas, vozes que chamavam seus nomes, reflexos que não correspondiam aos seus movimentos. O pânico se espalhava como uma doença. Ethan e Sarah observaram de longe, perto da antiga igreja. “Está vendo?” murmurou ela. “A criatura não precisa m***r. Basta que as pessoas acreditem que ela está em todos os lugares.” Ethan assentiu, o olhar fixo na névoa que rastejava pelas casas. “Ela se alimenta da crença. Quanto mais medo, mais real ela se torna.” Uma mulher atravessou a rua correndo, gritando o nome do filho. Outro homem caiu de joelhos, dizendo que algo o seguia debaixo da terra. E então veio o som — o mesmo ruído que Ethan ouvira nas primeiras noites. Baixo, profundo, como uma respiração que vinha debaixo do solo. O chão vibrou levemente. Sarah olhou para Ethan, pálida. “Ela está aqui.” Ethan assentiu. “Ela nunca foi embora.” Eles correram até o lago, onde Tom tentava acalmar um grupo de moradores. “Voltem para casa!” gritava ele. “Tranquem as portas! Ninguém chega perto da água!” Mas era tarde. O lago estava em movimento. Ondulações se formavam em círculos perfeitos, lentos, quase hipnóticos. O reflexo da lua se distorcia em espirais. As pessoas começaram a recuar, mas o som os seguia — uma sucessão de estalos e murmúrios, como se vozes antigas falassem todas ao mesmo tempo. Ethan olhou fixamente para a superfície. Por um instante, pensou ver rostos ali — rostos que se dissolviam, rostos conhecidos. Danny Harper. Outros desaparecidos. Todos olhando para cima, os olhos abertos, imóveis, dentro da água. Ele cambaleou para trás. Sarah o segurou. “Ela está mostrando” disse Ethan, a voz embargada. “Mostrando o que tomou.” Tom se aproximou, o rosto pálido. “O que diabos é isso, Ethan? O que está acontecendo com essa cidade?” Ethan engoliu em seco, os olhos ainda presos ao lago. “É o medo, Tom. Ela espalhou o medo suficiente para tomar forma. E agora… ela quer mais.” A água começou a borbulhar, e um som agudo atravessou o ar — algo entre um grito e um chamado. A névoa se ergueu, densa, cobrindo a margem. Por um instante, tudo ficou silencioso. Então, uma figura surgiu entre a névoa — uma silhueta humana, imóvel, molhada, os cabelos grudados no rosto. Sarah deu um passo à frente, hesitante. “Danny?” A figura ergueu a cabeça. Os olhos estavam completamente brancos. E o sorriso que se formou era impossível, largo demais, profundo demais. O pânico se espalhou como fogo. Alguns correram, outros gritaram, outros simplesmente ficaram parados, incapazes de se mover. A figura deu um passo à frente e depois outro, deixando marcas escuras no chão, como se o próprio solo apodrecesse sob seus pés. Ethan tentou se aproximar, mas o som — aquele som antigo, profundo, vindo do lago — fez o ar vibrar. Danny se virou na direção da água, e então, em um único movimento, caiu de joelhos e foi puxado de volta, como se algo o agarrasse pelos tornozelos. A superfície se fechou. Silêncio. Tom, Sarah e Ethan ficaram imóveis, ofegantes, observando as ondulações desaparecerem lentamente. A névoa voltou a cobrir o lago, escondendo tudo. E foi nesse instante que todos sentiram — um arrepio coletivo, como se a cidade inteira percebesse a mesma coisa ao mesmo tempo. A criatura não estava mais confinada ao lago. Ela estava em Darrow’s Hollow. E agora, não era mais uma sombra ou um som. Era presença. Era fome. Era medo tornado forma. E Ethan compreendeu, com a clareza c***l do inevitável, que o que estava por vir não seria apenas uma luta por sobrevivência. Seria uma guerra contra o próprio pavor que vivia dentro de cada morador da cidade. O vento soprou, trazendo novamente o sussurro uníssono que agora todos podiam ouvir: "O medo é o espelho. E vocês já estão dentro dele." A noite caiu sobre Darrow’s Hollow como um véu espesso. As luzes da cidade tremulavam, algumas casas apagadas, outras mantendo lamparinas acesas como se a frágil chama pudesse afastar o que caminhava no escuro. O silêncio que se seguiu ao reaparecimento e desaparecimento de Danny Harper foi quase pior que o pânico anterior. Era o silêncio da espera. Ethan, Sarah e Tom se refugiaram na antiga igreja, junto a um pequeno grupo de moradores — rostos pálidos, olhos arregalados, mãos trêmulas. A cada estalo do vento nas janelas, alguém chorava. A cada ruído vindo da floresta, alguém rezava. Ethan caminhava pelo corredor, tentando organizar os pensamentos. “Ela está aqui” disse, mais para si do que para os outros. “Não apenas no lago. Está entre nós. E quanto mais medo sentimos, mais forte ela se torna.” Sarah observava os rostos das pessoas — a mãe de Danny, duas crianças abraçadas a um cobertor, um homem com o rosto coberto de lama, balançando a cabeça em silêncio. “A cidade inteira está quebrando” murmurou. “Ela já venceu metade da batalha.” Do lado de fora, a névoa cobria as ruas como uma maré viva. Em meio à bruma, sombras se moviam — contornos de pessoas que pareciam estar ali e não estar, reflexos de algo que imitava formas humanas, mas cujos movimentos eram errados, quebrados, distorcidos. O sino da igreja soou de repente, sem que ninguém o tocasse. O som ecoou por toda a cidade, um tom profundo, dissonante, que parecia vir de dentro da terra. As crianças começaram a chorar. E o vento trouxe novamente aquele sussurro que parecia vir de todos os lugares ao mesmo tempo. "Lembrem. Sonhem. Temam." Tom apontou para a porta. “Fiquem aqui. Eu vou até o lago.” Ethan o segurou. “Se for, ela vai ver você. Ela já viu todos nós. E quanto mais olharmos, mais ela nos reconhecerá.” Mas o xerife se desvencilhou, o olhar endurecido. “Eu sou o xerife dessa cidade, Ethan. Se algo está caçando meu povo, eu encaro.” Ele saiu, desaparecendo na névoa. Ethan sabia que não o veria tão cedo de novo. ************ A madrugada chegou com o som do vento e das águas. As ruas estavam vazias, exceto por figuras que vagavam, imóveis, como sonâmbulos. Do alto da colina, Ethan observava o lago — e viu o impossível. A linha da água havia avançado. Não muito, mas o suficiente para tocar as primeiras casas da margem. “Está crescendo” disse Sarah, a voz baixa. “O lago está engolindo a cidade.” A superfície movia-se em pulsos, lentos, compassados, como batimentos cardíacos. De vez em quando, algo rompia a lâmina d’água e desaparecia logo em seguida — movimentos circulares, como se o olho estivesse se ajustando à luz. “Ela está expandindo o território” murmurou Ethan. “O medo deu força suficiente para que saia do lago. Ela está se alimentando da cidade.” Do outro lado da margem, luzes piscavam — casas, postes, tudo oscilando em sincronia com o pulsar da água. O som profundo, rítmico, recomeçou, vibrando no peito de Ethan como um tambor subterrâneo. Henry Calder apareceu na estrada, apoiado em seu bastão, o olhar fixo na água. “O selo está quebrado” disse, sem emoção. “E não há muro, fé ou fogo que contenha o que acordou. A única coisa que ainda mantém essa cidade viva é o sangue que resta dos Cole. Enquanto você respirar, Ethan, ela não completará o ciclo.” Ethan olhou para o velho. “Então eu sou a âncora.” “Sim” respondeu Henry. “Mas também é a porta. E ela vai tentar atravessá-la.” O vento soprou forte, e por um instante, Ethan ouviu — bem dentro de sua mente — a voz da criatura. Era suave, quase terna, mas fria como a água profunda. "Você já me sente, Ethan. O lago te chama porque é parte de você. Venha ver o que sempre esteve embaixo." Ele cambaleou, apoiando-se no corrimão da ponte. Sarah o segurou. “O que foi? Ethan?” “Ela… falou comigo.” “Falou o quê?” Ethan olhou para o lago. “Que o medo não é dela. É meu.” O som das águas aumentou, e a névoa se ergueu mais uma vez, cobrindo a cidade até o topo das casas. Os sinos voltaram a tocar, distorcidos, longos, como gritos metálicos. E todos, dentro e fora da igreja, sentiram o mesmo: A cidade estava sendo observada. E, pela primeira vez, Darrow’s Hollow percebeu que o terror não vinha de fora. Vinha de dentro — e ele agora tinha um rosto.
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