Laura
Desço o morro com a mochila nas costas e um sorriso que não cabe no rosto. Meu tornozelo dói um pouco a cada passo que dou, eu sei que deveria estar cansada, mas nunca me senti tão viva, como se o corpo inteiro tivesse acordado de um sono longo e forçado.
Eu senti que pertenço a algum lugar de novo, não ao palco polido com luzes quentes e plateia de camisas sociais, nem à companhia com ensaios que duram horas e terminam em lágrimas contidas, não às expectativas da minha mãe que pesam como correntes invisíveis. Pertenço a mim, ao simples de mãos sujas de giz e passos errados que viram acertos, ao humano de abraços sem hora marcada, ao real que não cobra perfeição.
Sou tomada por uma alegria que sobe do peito como se estivesse reacendendo uma parte de mim que eu achava que tinha morrido com o estalo no tornozelo, aquela faísca de quem dança por prazer, não por contrato ou aprovação.
Se eu fechar os olhos por um segundo, ainda vejo aqueles homens observando de longe, na escadaria alta que leva à laje, sombras entre varal estendido e antena tremendo. O silêncio deles, o jeito como não se mexiam, só vigiavam com olhos que pareciam mapear cada gesto meu.
Um arrepio corre pela minha coluna, frio apesar do calor, mas não é de medo puro, é de alerta, como quando o corpo sabe que tem rede embaixo no ensaio, mas o salto ainda assusta. E, curiosamente, também de segurança estranha, como se alguém estivesse ali pra garantir que nada saísse do controle.
Sacudo o pensamento da cabeça, e sigo a morro abaixo. A rua principal aparece diante de mim, cheia de gente indo e vindo, música saindo das casas, motos subindo como flechas. Pego o celular e abro o aplicativo de transporte, o Uber aceita a corrida, ufa, mas assim que o motorista vê o local, cancela.
Tento de novo, outro cancelamento.
— Ah, não… — murmuro.
Estou tentando pela quarta vez, quando um rapaz passa perto, segurando uma sacola de mercado e para.
— Você é a professora nova, né? A da dança? — Sorrio, surpresa por já ser reconhecida.
— Sou, sim. — Ele aponta para o beco atrás de mim.
— Uber não sobe até aqui, não. Eles têm medo, você tem que descer mais um pedaço, lá no Largo. Aí pega.
— Ah… certo. Obrigada.
— Vai sem medo, fica de boa até lá, só não mostra celular à toa. — Engulo seco e agradeço novamente.
Quando chego ao Largo, uma área mais aberta, onde motos e vans fazem ponto, tento o Uber outra vez e dessa vez, alguém aceita e não cancela.
O alívio toma meu corpo como um gole de água fria, minutos depois, entro no carro e respiro fundo. O motorista me olha pelo retrovisor.
— Voltando do Cruzeiro?
— Sim. — Ele sorri, não com julgamento, mas com surpresa.
— Lugar cheio de energia. Dá medo, mas tem gente boa lá. — Concordo baixinho.
Nem sei se por educação ou porque senti exatamente isso, durante o trajeto, deixo minha cabeça encostar no banco e fecho os olhos lembrando dos momentos incríveis que passei hoje.
À medida que me aproximo do meu prédio, fachada branca impecável, portaria com porteiro de uniforme engomado lendo jornal, a realização se mistura a uma ansiedade conhecida demais, que aperta o estômago.
A porta da sala tá aberta quando entro, e minha mãe está lá, de braços cruzados com queixo levemente erguido, a expressão clássica de quando ela está prestes a explodir.
— Onde você estava? — pergunta sem dar tempo pra eu largar a mochila ou respirar.
Tiro a mochila devagar, deixando no chão perto da porta, tentando manter o bom humor do morro comigo — o eco das risadas, o calor da quadra —, mas sentindo ele escorrer como suor frio.
— Mãe, eu… eu estava dando aula. Como eu disse que ia fazer.
— Aula? — ela repete, como se fosse a palavra mais absurda do mundo. — Aula ONDE, Laura? Porque você saiu de casa às duas da tarde e só volta agora, com essa cara de quem correu maratona!
Ela não vai gostar da resposta, eu sei, mas eu não quero mentir mais, não depois de um dia que me fez sentir inteira pela primeira vez em meses.
— No Morro do Cruzeiro.
Os olhos dela se arregalam devagar, os dedos se apertando no braço cruzado até os nós ficarem brancos, o rosto perdendo a cor, a boca se abre e fecha uma vez, como peixe fora d'água, antes de explodir.
— Você enlouqueceu?! — ela grita. — Você está completamente s*******o, Laura Fonseca! Aquele lugar é perigoso, você pode ser assaltada, sequestrada por quem sabe quem, morta por uma bala perdida que eles nem se importam! O que estava passando pela sua cabeça i****a pra subir lá sozinha?!
Eu abro a boca pra responder, palavras se formando na língua — “é seguro, mãe, tem coordenação, as crianças são incríveis” —, e fecho de novo, sentindo o peito apertar. Ela não quer explicação real; quer controle de volta, o roteiro que ela escreveu pra mim desde os 5 anos, quando me botou de sapatilha pela primeira vez.
— Mãe… calma — tento, voz baixa. — É um projeto social, tem pessoas responsáveis da ONG, segurança básica, e…
— Não interessa nada disso! — ela interrompe. — Você NÃO vai voltar lá. Está entendendo? Nem amanhã, nem nunca! Eu não criei você pra isso, pra jogar sua vida fora num favela qualquer!
— Mãe…
— Não me responda com essa voz de vítima! — ela grita ainda mais alto. — Você tem uma carreira pra resgatar, Laura! Uma lesão pra tratar com fisio, audições marcadas na companhia de São Paulo! E está se metendo onde não deve, onde gente como nós não vamos!
— Mãe — digo, respirando fundo pra voz não tremer. — Hoje eu me senti feliz. De verdade. Pela primeira vez em muito tempo, sem pressão de passo perfeito ou plateia julgando.
Ela para de andar de repente, os saltos parando no piso com um clique final, e me encara com olhos azuis que endurecem como vidro, os lábios se apertando em linha fina.
— Isso é ilusão passageira, Laura. Você está perdida, confusa com a lesão, e eu não vou deixar você destruir sua vida com essas… fantasias de boa samaritana. Amanhã você liga para aquela ONG e desiste. Fim de papo.
Meus olhos ardem com lágrimas e pisco pra afastar, mas não choro, não na frente dela, não agora que encontrei algo meu.
— Eu vou voltar amanhã — digo, calma, mas firme, olhando nos olhos dela pela primeira vez em meses.
A boca dela abre, chocada, o ar saindo num sibilo curto, como se eu tivesse dado tapa.
— Então você está por sua conta — diz por fim, voz baixa e fria. — Sem apoio meu, sem contato na companhia, sem nada. Veja se aguenta.
Ela vira de costas devagar, o vestido solto balançando, entra no quarto, e fecha a porta. Eu fico ali, parada, mochila ainda no chão, a poeira da quadra grudada nas solas dos tênis, o eco das crianças rindo na cabeça. Ainda carregando eu mesma pela primeira vez em anos, inteira, suada, viva.
E, mesmo doendo no peito, mesmo tremendo as mãos que enfio nos bolsos da calça, eu sei uma coisa com certeza absoluta: vou voltar amanhã. No horário marcado, com elásticos extras na bolsa e sorriso pronto para as tranças coloridas.
Ninguém vai me impedir. Nem minha mãe com suas guerras de expectativa. Nem o medo que sobe na descida escura. Nem o morro com seus olhares de sombra.
Porque algo lá em cima me chamou, o riso descontrolado, o toque confiante de mão pequena, o giro que saiu certo apesar do cimento irregular. Algo que eu ainda não entendo direito, mas que tem poeira e calor, sombra nos cantos e luz nos olhos das crianças.
E eu vou responder.
Passo por passo, mesmo que doa.