O grito cortou o ar.
Não era humano.
Era dor pura.
Dor demais para caber em um corpo.
Kael estava ajoelhado no meio de uma clareira isolada na floresta de Avalon. Puxava os cabelos como se aquilo pudesse arrancar o que ardia por dentro. O peito subia e descia rápido, tentando manter o domínio. Mas já era tarde.
Tinha se afastado no segundo em que sentiu a fúria crescer. Precisava sair dali. Sabia o que vinha. E não podia deixar que ninguém visse.
Ela provocou. Na frente de todos. Sorriu e disse:
— Sua mãe morreu pelas escolhas erradas de um covarde.
A mulher que Kael perdeu por causa dela.
Agora aparecia na corte com aquele sorriso limpo, fingindo inocência. Tentando colocá-lo contra o próprio sangue. Queria vê-lo perder o controle diante de todos.
Sabia o que isso causaria.
Sabia que, se Kael cedesse, não haveria perdão.
Seria tratado como ameaça. Executado. Eliminado.
A pele começou a reagir. A transformação estava vindo com força.
Kael era general. Não odiava o que era. Se transformava por dever, para proteger o reino. Mas, diferente dos outros, o processo nele era outra coisa. Cada vez doía como se estivesse sendo destruído por dentro.
E ele nunca contou isso a ninguém.
Quando segurava o impulso, escondia a dor com disciplina. Mas quando falhava…
Não sobrava nada.
Só fúria.
Só destruição.
O corpo cedeu.
A coluna estalou, se dobrando num ângulo torto. Os ossos se esticaram. As escamas abriram caminho pela pele. As garras substituíram os dedos. Os olhos queimavam de dentro pra fora. O grito que escapou da garganta era sufocado, mas carregava uma dor impossível de nomear.
O dragão prateado surgiu.
Imenso.
Respirando com dificuldade.
As asas se abriram num movimento lento, pesado.
Os olhos ainda eram os dele. Mas algo lá dentro já não era.
Ergueu a cabeça para o céu e urrou.
Não era um rugido de guerra.
Era um aviso.
Um som que poderia esmagar uma cidade inteira, se quisesse.
O fogo começava a subir pela garganta.
E Kael já não sabia se havia volta.
Mas então, um clarão.
Não era um raio.
Não era magia.
Era alguém.
A luz caiu do céu com força.
O impacto atingiu o dragão em cheio.
Kael cambaleou para trás, as asas abrindo no reflexo. O chão tremeu.
No meio da fumaça e da terra queimada, alguém caiu.
O dragão parou.
O ódio também.
Pela primeira vez naquela noite... algo interrompeu o impulso de destruir.
Kael sentiu antes de ver.
Um cheiro diferente.
Quente, doce, estranho. Vinha da mulher caída sobre sua coluna, como se tivesse sido lançada do céu direto para ele. Como se tivesse sido jogada no único ponto capaz de conter a fera..
Não era perfume. Era o cheiro dela. Natural. Vivo.
E ele não entendeu por quê, mas aquilo… acalmou a fera.
O ódio ainda estava ali, a dor também. Mas pela primeira vez, havia um ponto de equilíbrio. Como se aquele cheiro dissesse que ele ainda podia voltar. Que havia algo esperando se ele conseguisse respirar de novo. Como se, no meio da tortura, alguém acendesse uma luz.
A transformação começou a recuar.
As asas encolheram primeiro.
As escamas voltaram a se fundir na pele.
Os músculos diminuíram. O rugido morreu em silêncio.
Kael caiu de joelhos com a mulher nos braços.
Ela estava desacordada. Tinha caído de algum lugar — não fazia ideia de onde, ou como. O corpo era macio, redondo, delicado. Estava suja de fuligem e poeira, como se tivesse atravessado uma explosão. Os cabelos grudados no rosto, os dedos entrelaçados num reflexo inconsciente.
Mas não foi isso que prendeu sua atenção.
Foi a sensação.
O calor que vinha dela era diferente de tudo. Não queimava, mas preenchia.
Kael olhou o rosto dela.
Não era delicada no sentido comum. Não era pequena, nem frágil.
Era cheia. Corpo forte, vivo. A pele parecia convidar ao toque.
Nada nela soava como defeito. Tudo parecia... certo. Real.
Presença.
E o cheiro… ainda estava ali.
Misturado à floresta, à fumaça, à própria dor que ele carregava.
Kael não entendeu o que estava sentindo.
Mas sentiu.
Nos seus braços, a mulher se mexeu. Um gemido baixo escapou. Ela estava voltando à consciência.
O corpo de Isabela começou a reagir. Primeiro a dor. Depois o peso estranho da própria cabeça. Sentia cheiro de terra queimada. E calor. Muito calor.
Aos poucos, flashes voltaram.
Estava andando na rua. Trovão. Clarão. Uma força absurda puxando para cima e depois — queda.
Mas a última imagem era clara.
Um dragão. Prateado.
Imenso. Respirando fogo.
O pânico veio de uma vez.
Ela se encolheu e gritou, tentando se soltar.
— AAAAH! — gritou, tentando se afastar, os braços se debatendo.
Kael segurou firme, mas sem machucá-la.
— Calma.
Ela parou.
Olhou para ele, focando devagar.
Os olhos se fixaram no rosto dele. No azul forte dos olhos. Na mandíbula marcada. No cabelo escuro caindo sobre a testa. Ele ainda estava ofegante, suado, a pele quente demais.
E ela sussurrou, com a voz rouca, sem perceber que estava falando:
— Deus… eu morri, né? Morri mesmo. E agora tô sendo carregada por um anjo escandalosamente bonito.
Kael piscou, confuso.
Ela o encarou por mais um segundo… e só então percebeu que tinha falado em voz alta.
O silêncio que se seguiu foi tão constrangedor quanto surreal.
Kael ainda a observava quando uma dúvida o atingiu.
Ela tinha caído do céu. No meio da transformação. E o cheiro dela tinha afetado o dragão.
Franziu a testa.
Isso não fazia sentido.
Nada naquela noite fazia.
Ele franziu a testa, o olhar ficando mais duro.
Ela poderia ser uma espiã.
Alguém mandado por inimigos do reino.
Ou pior — alguém enviado diretamente para atingi-lo.
Não era segredo que ele era uma ameaça para certos nomes em Avalon.
E se alguém tivesse descoberto como afetar o dragão por dentro?
— Quem é você? E como veio parar aqui?
A pergunta quebrou o silêncio. E também o breve encanto.
Isabela se mexeu devagar e tentou se soltar.
Dessa vez, ele deixou.
Ela se levantou com esforço, ainda respirando rápido, e olhou ao redor, girando sobre os próprios pés.
Estavam numa clareira no meio da floresta.
O céu acima era escuro e manchado por uma luz dourada fraca.
O ar tinha cheiro de terra molhada e fumaça.
Ela o encarou de novo.
— Afinal de contas... aonde é “aqui”?
A cabeça girava. O coração batia forte.
Rio de Janeiro.
Ela era confeiteira. Dona do próprio negócio.
Entregava doces. Trabalhava duro. Lidava com clientes, com assédio, com comentários disfarçados de elogio.
E aquilo ali com certeza não era o Rio de Janeiro.
Fechou os olhos por um instante.
As lembranças vieram de uma vez só.
Era seu aniversário.
O dia inteiro tinha sido um lixo. Piadas sobre seu peso disfarçadas de brincadeira. Sorrisos falsos.
E à noite…
Ela viu.
Viu com os próprios olhos o homem que dizia amá-la aos beijos com a mulher que chamava de melhor amiga.
Lembrou do que disse olhando para o céu:
Eu só queria, uma vez na vida, ser necessária. Ser admirada pelo que sou por dentro. E não julgada por fora. Será que é pedir demais? Mesmo que fosse... em outro mundo?
As palavras “outro mundo” piscaram na mente como neon.
Ela abriu os olhos de novo, deu um passo para trás e gritou:
— Mas que diabos... onde, nos infernos, eu vim parar?
O silêncio entre os dois ficou mais denso.
Kael ainda observava Isabela. A atenção, antes dividida entre curiosidade e estranhamento, agora afiada como lâmina.
— Afinal… onde, exatamente, você estava antes de cair aqui?
Isabela hesitou.
Kael percebeu. Os olhos mudaram. O corpo também. Os ombros se ergueram, o tom ficou duro. Não era mais só um homem confuso. Era o general.
— Você não sabe onde está?
— Não exatamente — respondeu, tentando parecer calma.
— E também não sabe como chegou?
Ela mordeu o lábio. Um passo atrás.
Kael deu um passo à frente.
— Então já que não vai colaborar, vai comigo até o castelo. Interrogatório oficial.
Isabela travou. A palavra pesou.
Interrogatório?
— Espera... o quê? — tentou rir. — Quer me levar pra uma delegacia no meio da floresta?
— Delegacia? — Kael franziu a testa.
Ela desviou o olhar. O coração disparado. A floresta, o dragão, o clarão. Tudo parecia coisa de filme r**m. Como explicaria a verdade? Que estava andando no subúrbio do Rio, chorando por um i****a, e de repente foi sugada por um raio e caiu nas costas de um dragão?
"Fala isso e ele te prende mesmo", pensou.
— Se eu sair daqui, talvez reconheça o lugar. Pode ter sido um acidente. — tentou.
— Você acha que foi parar no meio de Avalon por acidente?
Kael se aproximou mais um passo. Não era ameaça explícita. Mas havia algo frio no jeito que olhava.
— Tem sorte por eu estar no controle. Nem todos teriam a mesma paciência com uma possível espiã.
Isabela sentiu a garganta fechar. Era isso. Estava perdida num lugar estranho, sendo julgada por um homem que podia ser lindo mas se vestia estranho , tinha um monstro que podia voltar a qualquer momento, e agora seria levada para… um castelo?
Ia protestar. Inventar alguma desculpa. Mas não teve tempo.
Uma nova voz cortou o ar.
— Ha… então foi aqui que você caiu.
A frase chegou como um soco no tempo.
Isabela virou o rosto. Kael também.
Um homem magro se aproximava. Alto, pele pálida como sal, cabelos loiros quase brancos. Usava um manto escuro com detalhes prateados que pareciam se mover com a luz. Nas mãos, um cajado em espiral. Na ponta, uma pedra azul que queimava por dentro.
— Venha, minha jovem. A rainha a espera.
Isabela piscou. Ainda no chão. As mãos apoiadas na grama.
— A… rainha?
Kael virou totalmente, o corpo tenso como um arco prestes a disparar.
— Ícarus.
Disse o nome com uma voz seca, carregada de veneno.
O ar entre eles pareceu tremer.
Isabela, sem entender nada, ficou entre os dois.
E teve certeza: aquele lugar não era um acidente.
Era um erro.
Ou um destino.
Mas não era o mundo de onde veio.