O Preço da Verdade

1707 Palavras
— Sou Ícarus — disse o homem, com a voz baixa, firme. — Um dos magos da realeza. A pedra azul no cajado pulsava, como se respirasse com ele. Isabela ainda estava de pé, mas o corpo pesava. O cérebro corria atrás de explicações que não vinham. Cada nova palavra deixava tudo mais impossível. — Isabela — disse por fim, sem esconder a relutância. Não era do tipo medrosa. Mas aquela situação… aquilo faria qualquer um perder o chão. Ícarus a observou por alguns segundos, em silêncio. Depois lançou um olhar enviesado para Kael. — Esse é o general Kael — disse, como quem anuncia uma sentença. A tensão entre os dois ficou evidente. — Vamos. Você é esperada. Kael recuou um passo, abrupto. Os olhos escureceram. O nome da rainha soava como ácido. E Ícarus... era o cão fiel. A sombra ao lado do trono. A voz da mulher que destruiu tudo que Kael um dia teve. Se aquela mulher caída do céu estava ali por ordem dela… então era só mais uma peça. Uma isca. Uma armadilha. — Claro — murmurou, amargo. — Claro que ela mandaria algo assim… Isabela sentiu o sangue gelar. O olhar de Kael não era mais curioso — era o de alguém prestes a julgar, punir, esmagar. O medo subiu pela garganta. — Isso não pode estar acontecendo. Eu morri? Ou pirei de vez? Deu um passo para trás, instintivo. — Esperada? Mas... eu não conheço ninguém aqui! Eu nem sei onde “aqui” é! A lembrança da própria voz ecoou cruelmente na cabeça. "Mesmo que fosse... em outro mundo." Por que foi dizer aquilo? Ícarus inclinou o rosto, quase como quem escuta pensamentos. — Você está em Avalon. E se quer descobrir por que é esperada… vai ter que vir comigo. Não é mesmo? A ideia de fugir atravessou Isabela como um choque. Os olhos buscaram uma saída entre as árvores. Mas Kael leu antes dela se mover. — Nem pense — disse, seco. — Se correr, eu pego. E vai ser pior. Ícarus lançou um olhar cortante para Kael. Kael deu de ombros. — Então cuide dela sozinho. Virou-se e desapareceu entre as sombras da floresta, sem olhar para trás. O silêncio que ficou parecia pesar o dobro. Ícarus virou-se lentamente para Isabela. O rosto continuava impassível, mas a voz saiu menos áspera. — Se vier comigo por vontade própria, prometo que vai entender tudo. Ela hesitou. Queria dizer não. Queria gritar. Mas estava sozinha. Num lugar onde nada fazia sentido. Sem um celular. Sem um rosto conhecido. Sem nem saber se conseguiria voltar. E, no fundo, sabia. Ficar ali não era uma opção. Já Kael caminhava depressa pela floresta, os pés deslizando por entre raízes e folhas úmidas sem se importar com o barulho que fazia. O rosto tenso, os olhos dourados brilhando de raiva contida e dor m*l cicatrizada. A respiração era curta, marcada por suspiros entrecortados e murmúrios inaudíveis. Dentro dele, sua mente era um redemoinho furioso — lembranças, traumas, cicatrizes... e ela. Aldora. A maldita rainha. Sua madrasta. Kael não temia o bosque — sua mãe o havia criado ali. Ele conhecia cada tronco torto, cada musgo encantado, cada sussurro carregado pelo vento. Mas mesmo ali, no único lugar que um dia chamara de lar, ele não conseguia encontrar paz. Seus passos se tornaram mais firmes como se quisesse ferir o solo que pisava em uma tentativa de se livrar da raiva quando se lembrou da primeira vez que ouviu a história de sua mãe contada por escrevas do castelo sem se darem conta de que ele as ouvia Elda, sua mãe, era uma bruxa da floresta. Não uma feiticeira do m*l, como tantos temiam — mas uma curandeira, uma guardiã da vida silvestre e da saúde dos pobres. Junto de seus pais, ajudava plebeus desesperados com poções de cura, infusões para dores, encantamentos de fertilidade para casais que não conseguiam gerar filhos. Um dia, o destino cruzou seu caminho com a tragédia. O rei Assuero — temido, reverenciado e portador do sangue do dragão — havia sido atacado. Estava em sua forma de dragão, patrulhando as fronteiras do reino de Avalon quando foi surpreendido por uma lança mágica, envolta por runas antigas que perfuraram suas escamas. Elda o encontrou desacordado. Mesmo reconhecendo o soberano, não hesitou. Junto aos pais, cuidou dele, limpando feridas, conjurando feitiços antigos, queimando ervas de cura. Contra todas as probabilidades, salvaram a vida do rei. Mas não foram recompensados com gratidão. Assuero despertou fascinado pela beleza selvagem de Elda. Seus olhos âmbar, sua pele morena como a terra, seus cabelos negros caindo em ondas. Ela era tudo o que os salões frios do castelo jamais ofereceram. Mas Elda, sabendo que o rei já tinha esposa, o rejeitou com firmeza e desprezo. Foi então que o verdadeiro terror começou. Numa noite em que as estrelas pareciam se esconder, Assuero a tomou à força. Depois de tirar dela sua pureza ele a levou para o castelo como uma escrava pessoal, sob ameaça de exterminar toda a sua família se ela ousasse fugir ou resistir. Elda, sem escolha, cedeu. Aldora, a rainha, não se importou. Na verdade, parecia até aliviada. A presença de uma mulher para satisfazer os desejos do rei era, para ela, um livramento — por um tempo. Kael ainda se lembrava de como tinha reagido ao ouvir aquela história , na época apenas uma criança demonstrou pela primeira vez seu poder destrutivo tomado pelo ódio pelo pai ele destruiu parte da cozinha precisando ser contido por dez guerreiros, se ele já não tinha uma relação com o pai a partir daquele momento ele passou a odiá-lo. Mesmo agora sentia o corpo tremer de fúria ao relembrar esse dia, mas coisas só pioraram para ele e para a mãe. Pois quando a rainha deu à luz o príncipe Hermes — herdeiro legítimo do trono. Três anos depois, Elda teve Kael. Mesmo o nascimento de Kael não incomodou Aldora no início. Ele era apenas mais um bastardo, um filho da vergonha, silencioso, esquecido nos cantos do castelo. Mas conforme os anos passavam, as diferenças entre os irmãos se tornaram gritantes. Kael era melhor em tudo. Superava Hermes nos estudos com facilidade, nos treinos de espada com destreza, mas nunca atraiu um olhar sequer de admiração do pai.. E, pior para Aldora, sua ligação com a magia era mais poderosa que a de qualquer filho da realeza. Ele carregava o sangue mágico de sua mãe. Ao se lembrar disso os olhos de Kael brilham com uma mistura de rejeição e fúria, ele ainda podia se ver um garotinho fazendo tudo perfeito, na esperança de receber um único olhar de admiração do pai, a raiva e mágoa que ele tinha do rei de Avalon fazia com que sua boca amarga-se e seus olhos se enchiam de lágrimas que ele se recusava a deixar cair ao se lembrar quão triste e solitária tinha sido sua infância tentando agradar um pai que nunca o amou. Enquanto Hermes, aos dez anos, finalmente passava por sua primeira transformação e revelava-se um dragão cinzento — fraco, comum, quase decepcionante —, Kael já demonstrava sinais de algo maior. Havia visões. Presságios. Sussurros entre os magos de que o menino poderia se tornar o primeiro dragão prateado desde o rei fundador. Aldora viu aquilo como um presságio de destruição. Uma afronta. Kael se tornava uma ameaça. E Elda, um incômodo impossível de ignorar. A rainha exigiu ao rei que mandasse a bruxa embora. Assuero se recusou. Quando ela insinuou que Kael deveria ser morto, o rei rugiu de fúria. Ele nunca reconheceu o menino como filho, mas também jamais permitiria que seu sangue fosse derramado. Ao se lembrar disso Kael dá um sorriso amargo, na época tinha ficado com medo de ser mandado embora pelo pai, mas agora via que teria sido melhor , talvez sua mão ainda estivesse ali com ele. Pois depois a recusa do rei Aldora agiu por conta própria. Na calada da noite, magos negros atravessaram os corredores do castelo e invadiram os aposentos de Elda. O objetivo era claro: m***r Kael. Mas a mãe, pressentindo o ataque, despertou antes do tempo. Elda lutou. Conjurou tempestades de vento, chamas e sombras, ferindo os invasores um a um, mas eram muitos. Quando um feitiço maligno rasgou o ar em direção ao pequeno Kael, Elda se atirou diante dele, sendo atingida no peito. A magia da morte a atravessou como uma lança invisível. A magia ricocheteou no quarto, estilhaçando espelhos, rachando as paredes, e um fragmento atingiu Kael — não com a força da morte, mas com uma maldição antiga. O feitiço foi desviado pela essência de Elda, mas ainda assim penetrou na alma do garoto. Algo dentro dele se partiu. Ou despertou. Quando Assuero entrou no quarto, encontrou o corpo de Elda carbonizado, os magos tombados, o quarto em ruínas… e Kael, com os olhos completamente prateados, envolto em um estranho campo de energia. Aldora já havia escapado sorrateiramente. O rei, em fúria desmedida, se transformou diante dos guardas, e consumiu com fogo os restos dos bruxos que ainda respiravam. Mas não tocou em Kael. Simplesmente não conseguia olhar para ele., as unhas de Kael perfuram a pele de tão forte que ele as crava na palma da mão ao se lembrar da morte da mãe. Desde então, Kael foi enviado a Dario, o general do reino, para ser treinado como um soldado, um guerreiro e um cão de guerra. Longe do castelo, longe da lembrança viva da mulher que ele destruiu. Dario foi um mestre duro, mas justo. Treinou Kael como se forjasse uma lâmina de guerra — e o menino cresceu em silêncio, alimentando uma chama que nunca se apagava. Agora, ele caminhava entre as árvores com o punho cerrado. Aldora não havia desistido. Nos últimos meses, ele sentia seus olhos sobre ele — vultos na floresta, sombras atrás de espelhos, feitiços lançados para enfraquecê-lo. O veneno estava de volta. A perseguição começava de novo. Mas Kael não era mais um menino. Ele era o filho da bruxa da floresta e do dragão rei. Ele era a maldição viva que Aldora não conseguiu m***r. E se ela queria guerra… então ele lhe daria.
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