O ar-condicionado do Uber tava tão gelado que deu vontade de dormir ali mesmo. Depois de tanto tempo andando, fugindo, me escondendo... sentar num banco acolchoado e ter um silêncio me rodeando era quase luxo. Abel estava deitado no meu colo, com a cabeça no meu peito e o braço jogado por cima da minha barriga. A respiração dele era tão tranquila que me deu vontade de acreditar que, por um instante, tudo estava certo no nosso mundo.
— Ele é uma fofura — disse Catarina, sorrindo, olhando pro retrovisor interno do carro.
— Ele é minha vida — respondi baixinho, ajeitando a mantinha no ombro dele.
Raissa, do banco da frente, não soltou um pio, mas dava pra ver que estava ali de má vontade. Mexia no celular o tempo todo, bufava sem motivo e de vez em quando jogava um olhar torto pelo espelho. Mas a verdade é que depois de tudo que eu passei, não era qualquer garota com a cara amarrada que me botava medo não.
— Ó — disse Catarina, pegando o celular e destravando a tela — vou ligar pro meu irmão. Ele tem uma casa livre lá na parte baixa da Rocinha. Nada demais, mas quebra o galho.
— Já é muita coisa, Catarina. Eu... eu nem sei como agradecer. — falei com a voz embargada. Ela me olhou como quem entende dor de mulher, e sorriu com o canto da boca.
— A gente se ajuda como pode, ué.
O telefone chamou três vezes antes da voz do outro lado atender, meio rouca e meio irritada:
— Que foi, Catarina?
— Calma aí, ô grosso. Tô te ligando pra ajudar alguém, não pra pedir carro emprestado. Tu tá onde?
— Em Angra. Tô resolvendo uns rolos aqui, volto semana que vem. Que que houve?
— É o seguinte: tô com uma amiga que acabou de chegar no Rio, com o filho pequeno. Ela precisa de um lugar por uns dias. Tu ainda tem aquela casinha perto do bar do Gordo?
— Aquela que o gás vive vazando?
— Essa mesmo. Mas a gente da um jeito. Tá limpinha, né?
— Tá. A chave tá com o Gordo, ele fica no bar quase o dia todo. Diz pra ela ir lá, pegar a chave e se instalar. Mas deixa claro que se quebrar alguma coisa, depois tu que paga.
— Ih, para de drama, Tavão. Ela é de boa. Vou levar ela lá agora.
— Falou.
E o telefone cortou seco, do jeitinho dele.
— Pronto — disse Catarina, guardando o celular na bolsa — a chave tá com o Gordo. Eu vou subir contigo e te mostrar o caminho. Depois, qualquer coisa, volta ali e fala com ele.
— Tá... obrigada, de verdade.
— Tranquilo. Mas ó, fica esperta. O morro tá meio tenso desde ontem à noite, então anda na boa, não chama atenção. Não é pra ficar com medo, é só não dar bobeira. Beleza?
Assenti com a cabeça, com o estômago embrulhado e o coração batendo mais rápido. O Uber parou na parte baixa, onde já não dava mais pra seguir de carro. A ladeira que subia à nossa frente era estreita, cheia de barracos, fios enrolados em postes e motos passando a milhão.
— Pronta? — ela perguntou com leveza.
— Acho que sim. — apertei o Abel mais forte no colo e subi com ela.
A Rocinha tinha vida. Cheiro de pastel e churrasquinho se misturava com o funk que estourava nos becos. O som da comunidade era diferente de qualquer outro lugar. Era barulhento, intenso, vivo — mas também tinha seus fantasmas.
— Ali é o bar do Gordo — apontou Catarina.
Um homem grande, de regata branca e com cara de poucos amigos estava sentado atrás do balcão improvisado. Quando Catarina se aproximou, ele soltou um sorriso amarelo:
— Ih, sumida!
— Depois te explico. Vim buscar a chave da casa do Tavão. É pra ela — apontou pra mim. — O nome dela é Yara.
O Gordo olhou pra mim dos pés à cabeça, mas não disse nada. Apenas tirou um molho de chaves de dentro de uma lata de biscoito e me entregou a que estava marcada com um pedaço de fita vermelha.
— Qualquer coisa, bate aqui. Só não me vem pedir gás, que não sou revendedor.
Agradeci com um sorriso e seguimos por um beco ainda mais estreito. Finalmente, chegamos na casa. Era simples, com a porta pintada de azul e umas plantas secas do lado de fora. O teto era de zinco, e pela janela dava pra ver o colchão encostado na parede, um fogão de duas bocas e uma pia de pedra.
— Não é muito, mas é tua por enquanto — disse Catarina. — Amanhã passo aqui pra ver como vocês tão. Se precisar de algo, vai no bar, o Gordo manda recado pro Tavão. Ele me manda uma mensagem e eu venho aqui.
— Obrigada, de verdade. — falei, com a garganta apertada.Ela me olhou com carinho e sorriu.
— Baiana arretada como você ainda vai longe. Só não solta a mão do seu menino, tá? Se agarra nele e vai com fé. — assenti e a abracei rapidamente. Em um gesto carente de quem não recebia esse tipo de apoio a tempo.
Catarina foi embora e, pela primeira vez em dias, eu fechei uma porta atrás de mim sem sentir que o mundo ia cair sobre meus ombros.
Aquele chão era duro, o fogão era velho, e a janela m*l fechava. Mas era abrigo.
Deitei Abel no colchão, puxei a mantinha sobre ele e encostei a cabeça na parede. Horas depois dormir sem medo de alguém me encontrar. Mesmo sabendo que no meu caso, a paz era temporária.
O cheiro de café passado invadiu a casa antes mesmo do sol se firmar. Era do vizinho. O barulho da água fervendo e a colher batendo no copo de vidro era quase um alarme da favela: o dia começou, vai levantar?
Abel ainda dormia, esparramado no colchão com os pés descobertos. Enrolei ele melhor na mantinha e fui até a pia lavar o rosto. A torneira fazia um barulho estranho, como se tossisse, mas a água veio. Fria. Acordei de vez.
A casa era pequena, quente e meio torta, mas era silêncio e teto. E isso já era mais do que eu tinha dias atrás.
Vesti a roupa mais arrumadinha que eu trouxe na mochila: uma calça jeans escura e uma camisa que não precisava passar. Prendi o cabelo e coloquei um brinco pequeno, só pra me lembrar que eu ainda era mulher além de mãe.
Saí com o sol ainda tímido e o coração apertado. O bar do Gordo já tava com o portão meio aberto, e ele fumava um cigarro de palha sentado numa cadeira de plástico.
— Bom dia — falei, com um sorriso. Ele ergueu o queixo e soprou a fumaça pro lado.
— Vai pra onde, moça?
— Procurar serviço. Sabe de alguém que esteja precisando? — ele me olhou de cima a baixo, dessa vez com menos desconfiança.
— Lá na lanchonete da dona Elza, na principal, acho que tavam precisando de ajudante de cozinha. Mas o trampo é puxado. Quer tentar?
— Quero.
— Então sobe pela viela do lado da barbearia. A lanchonete tem uma faixa vermelha na porta. Pergunta pela Elza mesmo, diz que o Gordo mandou.
— Obrigada. E... qualquer coisa, se o Abel acordar e eu não tiver voltado, ele pode ficar aqui do lado? — ele arregalou o olho.
— Tu vai deixar o menino sozinho em casa?
— Só por uns minutos. Ele vai estar dormindo. Tranco a porta e ele fica lá dentro. — ele suspirou fundo, coçou a barriga e assentiu com a cabeça.
— Tá. Se ele chorar, eu bato na porta. Mas volta logo.
A ladeira até a viela era íngreme, e eu já tava suando antes mesmo de chegar na entrada da rua principal. Lá em cima, o movimento era outro: gente indo pro trabalho, menino vendendo bala, mototáxi acelerando sem medo, o som de rádio tocando samba antigo num volume baixo.
A lanchonete era apertada, com cheiro de óleo e pão na chapa. Lá dentro, uma mulher forte, de avental manchado e olhar afiado, organizava bandejas de salgados.
— Dona Elza? — chamei, com a voz firme. Ela levantou o rosto e me encarou.
— Eu mesma. Quem é você?
— Yara. O Gordo disse que a senhora talvez estivesse precisando de alguém pra ajudar na cozinha. — ela me olhou por uns bons segundos, depois voltou a mexer nas bandejas.
— Tu sabe lavar louça direito?
— Sei.
— Aguenta ficar em pé o dia todo?
— Aguento.
— Tem filho pequeno?
— Tenho. Um.
— Vai dar conta?
— Preciso dar. — ela parou de mexer nas bandejas e me encarou de novo. Agora com menos dureza.
— Amanhã, seis da manhã, aqui. A roupa tem que ser escura. E cabelo preso.
— Obrigada. De verdade. — ela deu um meio sorriso e voltou pro trabalho. Desci a viela com o coração acelerado. Não era muito, não era o que eu sonhava, mas era um começo.
Naquele dia, pela primeira vez desde que cheguei no Rio, senti que tava construindo uma chance. Nem que fosse do zero.
Voltei pra casa com as pernas doendo, mas com o peito quente. Eu tinha um "sim". Um trabalho. E isso, pra quem vive pulando de cidade em cidade, era quase um milagre.
Empurrei a porta devagar, rezando pra não acordar Abel. Mas ele já tava sentado no colchão, com o cabelo todo bagunçado e o olhar perdido.
— Mainha... cê foi embora? — corri até ele e o abracei apertado.
— Fui não, meu amor. Só fui ali rapidinho, buscar nosso futuro. — ele encostou a cabeça no meu ombro e soltou um suspiro.
— Eu pensei que cê tinha me deixado.
— Nunca, meu filho. Nunca. Aonde você for, eu vou junto.
Fiquei ali um tempo só balançando ele no colo, até ele dormir de novo. Tava cansadinho, e eu também. Deitei do lado e fechei os olhos por uns minutos, mas minha cabeça não parava.
Seis da manhã. Tinha que estar lá seis da manhã. O barulho da panela do vizinho voltou. Agora era arroz refogando. A vida seguia em movimento constante ali, e eu precisava me adaptar ao ritmo.
Levantei com cuidado, tomei banho com a água fria de novo, e comecei a organizar o que eu podia deixar pronto pra amanhã. Separei a roupa escura. Lavei o copo que usei. Arrumei a mochila com uma blusa extra pro Abel, caso precisasse sair de casa comigo cedo.
Mas como é que eu ia fazer com ele? Não tinha escola. Não tinha creche. E o Gordo não era babá. Eu precisava achar uma solução rápida, porque bastava um dia faltar no serviço pra perder tudo.
Na parte da tarde, decidi descer de novo. A Rocinha era enorme, e eu ainda me perdia. Mas fui perguntando, com o jeitinho que só baiana tem, e logo descobri que perto da Associação tinha uma mulher que cuidava de criança em casa mesmo.
Bati na porta com o coração disparado.
— Pois não?
— Oi, boa tarde. Me falaram que aqui... a senhora cuida de criança?
A mulher era morena clara, cabelo preso num coque e a cara de quem não levava desaforo. Mas seus olhos eram gentis.
— Cuido sim. Só eu e meu menino pequeno moramos aqui. Você quer deixar o seu?
— Quero... Quer dizer, preciso. É só de manhã, até umas duas da tarde. Posso pagar uma ajuda, não muito, mas eu faço questão. — ela cruzou os braços, me analisando.
— Quantos anos tem?
— Quatro.
— Ele é tranquilo?
— É sim. Só fala demais. — ela riu.
— Tá bom. Traz ele amanhã pra gente testar. Não precisa trazer nada além do lanchinho dele.
— Deus lhe pague, viu?
— Aqui é a Jó. Qualquer coisa, me chama.
— Eu sou Yara. E ele é o Abel.
Voltei pra casa aliviada, como se tivesse riscado mais um item de uma lista imaginária de sobrevivência. Agora tinha onde deixá-lo, e onde trabalhar. Não era vida de novela, mas era começo de paz.
Preparei um cuscuz pra janta, com ovo frito. Comprei com o restinho de dinheiro que me sobrou. Ele comeu tudo, lambendo os dedos e dizendo que era o "melhor cuscuz do mundo". E eu nem discuti.
Naquela noite, antes de dormir, encostei a cabeça no travesseiro e pensei: "Só por hoje, eu venci." Amanhã, a guerra recomeçava.