Era nessas horas que eu ouvia a minha mãe reclamando na minha cabeça o bendito “eu num te avisei, Yara?”. Sim, mainha. A senhora avisou, mas eu sou teimosa demais pra aceitar. E também, me recuso a dar ouvidos a alguém que sempre tentou competir com a própria filha.
Tantas vezes ouvi minha própria mãe dizendo que eu fazia as coisas pra “provocar” o marido dela. Eu era apenas uma criança, recém feita doze anos, tendo que lidar com dois lobos em pele de cordeiro.
Por fora, éramos a família feliz. Meu padrasto era o homem provedor que cuidava e amava sua família. Minha mãe era a mulher do lar, que edificava sua casa. E eu era a menina que tinha a vida de uma princesa.
Mas por dentro era tudo podridão. Meu padrasto me aliciava, minha mãe me culpava por aquilo, e eu achava que era realmente minha culpa. Sem saber e entender que aquilo não era por minha causa. Mas, devido a esses acontecimentos, tudo foi uma brecha pra pior fase da minha vida que aconteceu aos catorze anos.
A única coisa boa disso tudo foi Abel. Meu pretinho que tem quatro anos de idade. Tive ele com dezoito anos e, desde então, eu tenho vivido por ele, pra manter ele bem. Mesmo que minhas condições sejam ruins.
Pela segurança dele, eu nunca poderia ficar em um lugar só. Preferia cidades pequenas e pacatas porque poderia ficar mais tempo, mas estar no Rio de Janeiro era um pouco difícil. Aqui, se não tivesse cuidado, poderia ser pega facilmente, e é por isso que eu andava pelas ruas quase correndo, com medo de ter alguém me seguindo.
Abel, além de não ser muito grande, era gordo e, se juntasse com a bolsa nas minhas costas com as únicas coisas que temos, eu estava carregando bastante peso.
Tinha apenas um pouco de dinheiro, o que eu esperava que desse pra pagar um hotel ou uma pousada pra essa noite. Amanhã teria que procurar algo pra fazer, senão meu filho ficaria com fome e, só de imaginar aquilo, meu peito doía.
Mas era aquilo: baiana não desiste fácil. Eu sei que tenho as Yabás comigo, e elas não me deixariam desamparada. Fui o caminho todo pedindo ajuda, pedindo mais uma vez pra olharem por mim, e mais uma vez me senti acolhida.
Tinha achado um hotel, que provavelmente eu conseguiria pagar a noite. Porém, não. Tinha apenas uma mixaria que me faria dormir do lado de fora. Deus, eu só queria ter mais forças e condições pra dar o melhor pro meu pretinho.
E de novo fui presenteada com a bondade daqueles que ouviam minhas orações. Não sei de onde aquele homem saiu, mas graças a Deus que alguém tocou o coração dele. Porque ele pagou o quarto pra mim sem cobrar nada em troca, e ainda fiquei com o restante do meu dinheiro pra comprar café pro Abel.
Minha noite de sono era picada. Todo e qualquer barulho eu acordava puxando o canivete que eu carregava pra todo lado, com medo de que alguém tivesse invadido o quarto, e se fosse pra proteger meu filho, eu não teria medo de usar.
Observando meu pretinho ali, dormindo tão tranquilo, me sentia tão grata. Por essa noite ele estava dormindo bem, e então eu poderia pensar em um dia de cada vez. Eu sabia que o dia logo amanheceria e, com ele, todo o desafio que a vida trazia. Mas eu sempre consigo… sempre pelo Abel.
Tinha conseguido tirar um cochilo e, quando acordei, o quarto já estava iluminado pela luz que passava pelas cortinas quase transparentes da janela. Como se não fosse suficiente, tinha pessoas correndo pelo corredor em passos apressados.
Aquilo era o que eu precisava pra me levantar num pulo e correr pra porta pra ver pelo olho mágico. E tudo que senti naquele momento foi uma tremedeira do pé à cabeça ao ver tantos policiais lá fora.
Não tinha como ser por minha causa… isso era muito, até pra mim mesma. Sendo por mim ou não, eu não poderia ficar parada esperando que algo acontecesse.
Com isso, eu visto minha blusa de frio e coloco a bolsa nas costas. Cuidando pra não acordar meu filho, pego ele no colo e enrolo na sua mantinha pra proteger do vento frio que costumava ter a essa hora da manhã.
Juntando todas as forças presentes no meu corpo e tentando não parecer tão nervosa, abro a porta com cuidado e, em passos lentos e confiantes (uma confiança superficial), eu caminho pelo corredor tentando não chamar a atenção dos policiais que estavam ocupados demais tentando saber onde um tal de “d***o” tinha passado a noite.
Quando estava prestes a entrar no elevador, um policial interferiu segurando meu braço e me virando pra ele.
— Qual é o teu nome? Anda, diz logo! — respondeu com toda ignorância do mundo, tentando me avaliar. Por mais que eu estivesse completamente em pânico, mantive a calma pelo meu filho, então respirei fundo enquanto falava calmamente.
— Me chamo Sofia, senhor! Algum problema?
— Preciso saber se conhece o d***o. E o que estava fazendo aqui nesse hotel! Sem mentiras ou então tu vai rodar, ein?
— Oxente, que Deus me livre. Isso lá é nome de gente? Olha só, seu moço, cheguei no Rio ontem pra poder trabalhar. Não tenho envolvimento nenhum com ninguém aqui.
— É de onde? Vai trabalhar de quê?
— Sou do Nordeste, vim pra trabalhar como faxineira. — falei rezando pra que ele me liberasse. Seu olhar de julgamento era grande. Quase como quem diz “com essa cor, só serve pra isso mesmo”, ainda mais ele, todo desprovido de melanina e com esse cabelinho branco.
— Entendi. Olha só, é bom tu não se envolver com as pessoas erradas por aqui, ou então tu vai voltar pra tua família num caixão. E reza pra essa criança não ir junto.
Sua voz grave e forte agora não passava de um eco na minha cabeça.
Ele saiu andando, um sinal claro de que eu já não era importante pra sua busca. Mas meu coração palpitava forte como se aquilo fosse um aviso. Santo Deus! Tinha sido um puto azar ter vindo parar aqui… dessa vez eu saí apressada, sem ligar se chamaria ou não a atenção de alguém.
A verdade que me perseguia de novo caiu sobre mim com uma força incalculável. Eu viveria pra sempre assim, com medo e fugindo. Porque o dia que eu tiver paz, vai ser o dia que eu estiver morta. Ele não vai parar enquanto não me tirar tudo que eu tenho, que é o meu filho.
Sinto uma dor aguda no peito e lágrimas silenciosas caem sobre meu rosto, pingando sobre a coberta do Abel. Será que um dia eu conseguiria viver longe disso? Onde já se viu uma pessoa não ter liberdade? Fui infeliz minha vida toda e agora que tenho algo pra sorrir, só posso me lamentar por ser uma péssima mãe pra ele.
O sol estava começando a esquentar e as pessoas pareciam preocupadas demais com seus próprios problemas pra notar uma louca carregando uma criança com uma coberta, mesmo com calor, e chorando feito um bebê. As lágrimas duraram pouco já que Abel começou a remexer no meu colo e eu descobri ele, vendo seu sorriso mais gostoso do mundo.
— Bom dia pro preto mais lindo da mamãe! — parei no meio da rua pra dar um beijo nele. Que, na mesma hora, grudou meu pescoço num abraço apertado que me reiniciava todos os dias.
— Mainha, eu tô com fome! — foi sua primeira frase do dia, mas tudo que eu fiz foi gargalhar, ainda apertando ele.
Com a intenção de aliviar um pouco minhas costas, eu coloco ele no chão e estico um pouquinho. Depois, guardo a coberta na bolsa junto com sua blusa de frio.
Olhando ao redor, eu tinha andado um monte sem nem ter percebido. Estava tão mergulhada na minha angústia que agora estava longe de onde estava quando acordei. Aqui era muito mais movimentado e tinha várias lojas e comércios.
Levei meu filho pra padaria que estava ali perto. Tinha quarenta reais e, se tivesse sorte das coisas não serem caras, poderia guardar vinte pra pegar um ônibus pra algum lugar. Precisava arrumar um emprego e um lugar pra ficar essa noite.
Mas, exercendo minha função, tentava não demonstrar minha preocupação enquanto ajudava Abel a comer seu pão de queijo com um achocolatado de caixinha. Pra mim, tinha pegado um pão de queijo também e um café. Por fim, ele quis um biscoito recheado e eu comprei, guardando na bolsa pra ele comer mais tarde.
Ainda tinha mais vinte e cinco reais. Seja qual for o nosso destino, as coisas teriam que dar certo. Não passei quatro anos fugindo por nada. Eu ainda lutaria pra ver meu filho crescendo. E quem sabe, no fundo, isso tudo seja em vão? E não tenha mais ninguém atrás da gente.
— Mamãe, você é a melhor mãe do mundo! — o menino se joga no meu braço, me fazendo sentir uma sensação de conforto naquelas palavras. Se pra ele eu sou a melhor mãe do mundo, então eu sou.
Antes que eu pudesse falar, meus olhos vagaram pro jornal que passava na televisão, fazendo meus olhos arregalarem de terror.
— O maior traficante do Rio de Janeiro se hospedou nesse hotel depois do confronto com os policiais. Ele fugiu do morro comandado por ele com seus comparsas, mas, no meio do caminho, descobriram a barragem da polícia e refizeram o trajeto que levou até esse local. — a mulher que estava na frente do hotel, cujo foi o mesmo hotel que eu estava, termina de falar. E assim que as imagens da câmera começaram a passar, tive que colocar a mão na boca pra não gritar. — Na imagem podemos ver o momento que os traficantes chegaram. A recepcionista, que estava com uma cliente, se sente coagida. Mas disfarça quando um deles fala alguma coisa. Tempos depois, o chefão do crime, conhecido como d***o, se aproxima do balcão conversando com as mulheres. E logo em seguida, eles pegam a chave do quarto e sobem.
— Eles chegaram super impacientes. A moça que estava com a criança no colo não estava com a quantidade certa da pernoite. Foi quando o homem se aproximou e falou que pagaria pra ela. — a recepcionista fala como se estivesse acostumada a lidar com aquilo. A repórter pergunta: — Ele pagou a conta ou ele conhecia a mulher? — Ele pagou. Eles pareciam totalmente desconhecidos um do outro.
Quando colocaram novamente as gravações, eu percebi que aquilo ali tinha me fodido de uma forma incrível. A minha sorte era que eu tinha tomado banho e trocado de roupa, caso contrário, as pessoas estariam me reconhecendo agora.
Eu saí da padaria sem nem olhar pra trás. Céus, eu andava mais alerta agora. Sentia que estava sendo vigiada e que alguém ia me abordar a qualquer momento, colocando uma arma na minha cabeça.
Orava baixinho pedindo um lugar seguro pra ficar. Eu precisava urgentemente encontrar um trabalho pra conseguir umas passagens e, quem sabe, ir pro interior de Minas? Ou então Goiás. Onde for mais seguro e longe de câmeras e policiais… era isso que eu precisava.
Mesmo olhando pra todos os lugares procurando uma placa de emprego ou de uma pensão, não tinha visto nada. Foi então que, sem perceber, acabei dando de cara com uma menina que saía de uma loja com algumas sacolas.
Antes que eu pudesse me desculpar, a amiga dela já veio me empurrando, me chamando de louca, de cega. Sem saber que uma coisa que baiana não tem é medo de confusão.
— Pra não tá vendo a gente aqui, só pode tá cega mesmo.
— Primeiro que nem em você eu esbarrei. Qual seu problema? Eu já ia pedir desculpa, mas agora não peço mais. O mundo não gira em torno da sua barriga não, e fale baixo comigo, mulher!
— Ou se não o quê? Vai me bater é? — ela falou debochando, olhando pro Abel no meu colo.
— Para de arrumar confusão à toa, Raíssa. A menina só estava com pressa. Tá tudo bem, moça? Você não é daqui, né? Precisa de ajuda?
Oh santo Deus! Se tinha uma coisa que eu não guardava mais, era vergonha. Aprendi em todos esses anos fugindo a não ter vergonha de falar, pois as pessoas provavelmente saberiam mais do que eu.
— Nossa, sim!! É que eu sou nova aqui, sou da Bahia. Tô precisando de um emprego, nada muito elaborado, sabe? Será que você não sabe de uma pensão que precise de uma ajuda em troca de um lugar pra ficar? Não pretendo ficar muito tempo no Rio.
— Não acredito que tu vai ajudar essazinha, Catarina!
— Olha, conhecer mesmo eu não conheço. Mas meu irmão pode te ajudar. Ele tem umas casas pra alugar. Eu posso convencer ele a te deixar lá até tu conseguir pagar. Vamos, tu vai gostar, e o Otávio é muito tranquilo.
— Tem certeza? Eu não quero atrapalhar! — falo me sentindo meio desconfortável.
— Ai, relaxa! Vamos indo. No caminho eu ligo pro bonitinho e ele vai te emprestar a casa. — diz, pegando o celular e olhando algo.
— E a passagem é cara? É porque só tô com vinte e cinco reais… — sinto minhas bochechas queimando pelo julgamento da tal Raíssa. Ela provavelmente não tinha ido com a minha cara. E tudo bem, já que eu também não fui com a dela.
— Ônibus? Não! — ela solta uma risadinha. — A gente vai de Uber, mas fica tranquila, tá? Eu pago!