ISADORA MONTENEGRO NARRANDO.
Me olhei no espelho do elevador e quase não me reconheci. O rosto inchado, os olhos vermelhos, as olheiras fundas, como marcas visíveis da dor que eu carregava por dentro. O cabelo ainda úmido e a blusa, mesmo trocada, parecia não esconder o desalinho do que eu me tornei.
Assim que as portas da loja se abriram, respirei fundo. Era como atravessar uma barreira invisível. Lá fora, o caos interno precisava ser disfarçado. Lá fora, eu tinha que fingir que estava tudo bem, ou pelo menos tentar.
— Isadora? — a voz da Kristen veio seca assim que botei os pés dentro do escritório.
Ela me olhou de cima a baixo, com aquele olhar de impaciência misturado com desdém. Eu não esperava um abraço, mas aquele olhar me feriu mais do que qualquer palavra.
— Você tá péssima — disse, num tom frio e quase científico. — O que aconteceu com você?
Engoli seco. Eu podia mentir, inventar uma gripe, dizer que não dormi bem. Mas algo em mim já estava farto de fingir.
— Peguei meu noivo transando com a minha melhor amiga — falei de uma vez, sem respirar.
Kristen piscou devagar, como se estivesse processando, mas o rosto permaneceu imóvel, sem qualquer sombra de compaixão.
— Nossa… sinto muito — disse, com um tom que contradizia completamente as palavras. — Mas, olha… você não tem tempo pra sofrer. A loja precisa de você.
Fiquei parada, sem reação. Como alguém podia ser tão fria?
— Vai até o banheiro, lava o rosto, passa uma maquiagem decente. Você tá deplorável. Hoje temos três clientes VIPs e eu preciso de você apresentável, funcionando, viva. Entendeu?
Assenti. Não tinha forças pra discutir. Nem dignidade pra reagir. Caminhei até o banheiro como quem arrasta um corpo sem alma. Quando fechei a porta, o silêncio me engoliu.
Me encarei no espelho.
— Você tá deplorável.
As palavras dela ecoavam dentro de mim. E o pior é que era verdade.
Abri a torneira e joguei água fria no rosto. Peguei o nécessaire que sempre deixava ali, e com as mãos trêmulas, passei base, corretivo, rímel, blush. Tentei devolver alguma cor pro rosto morto.
Na última passada de batom, forcei um sorriso.
Ficou horrível.
Mas era o melhor que eu podia fazer.
Voltei pra loja. Meus colegas me olharam com curiosidade, mas ninguém disse nada. Ou talvez todos já soubessem. O tipo de traição que eu vivi se espalha rápido, e Nova York pode ser grande, mas o veneno das pessoas corre depressa.
Tentei focar no trabalho. Organizei prateleiras, conversei com clientes, mostrei a nova coleção de sapatos italianos. Falei de saltos como se aquilo tivesse importância. Sorri, ri, atendi o telefone com uma voz doce que não combinava com o vazio dentro de mim.
Mas entre um atendimento e outro, o celular vibrava.
Carolina: Isa, por favor, me escuta…
Bloqueei a tela. Ignorei.
Minutos depois:
Carolina: Me deixa te explicar, não foi assim…
Meus dedos coçaram de raiva. Joguei o celular na gaveta e respirei fundo.
Eu sabia que ela ia tentar. Carolina sempre tentava. Era o tipo de pessoa que fazia besteira e depois vinha com voz doce, se fazendo de arrependida, como se tudo se resolvesse com um “desculpa”. Mas não existia desculpa pra roubar o noivo da sua melhor amiga.
No meio da tarde, enquanto eu arrumava uma vitrine, o celular vibrou de novo. Peguei com força.
Carolina: Eu não queria que fosse assim. Aconteceu. Eu ainda te amo como amiga, por favor…
Joguei o celular na bancada. A tela quase rachou.
Respirei fundo. Uma, duas, três vezes.
Kristen, do outro lado da loja, ergueu uma sobrancelha.
— Tudo certo aí, Isadora?
— Tudo sim — respondi, tentando controlar a voz.
Mas não tava. Não tava nada certo.
Na minha cabeça, tudo era um looping. Eu via Júlio e Carolina na cama. Nus. A mão dele nas costas dela. Os gemidos. A música. O cheiro.
E lembrava do quanto confiei nela. Do quanto ela sabia sobre mim. Cada detalhe do meu relacionamento. Cada insegurança. Cada medo. Ela era a pessoa com quem eu dividia meus sonhos.
E ela destruiu tudo.
No final do expediente, depois de atender uma cliente indecisa que me fez sorrir por uma hora inteira, finalmente me permiti sentar no estoque.
As lágrimas vieram. Silenciosas, pesadas. Escorriam pelo rosto como se viessem direto da alma. Encostei a cabeça na parede fria e respirei fundo.
Ninguém podia me ver fraca. Não ali.
Kristen apareceu na porta, cruzando os braços.
— Não me leve a m*l, Isadora. Mas a vida é assim. As pessoas decepcionam. Cabe a você decidir se vai desmoronar ou levantar. Eu escolhi levantar. Sempre.
Fechei os olhos. Era o máximo de empatia que ela seria capaz de demonstrar. E talvez… fosse o suficiente por hoje.
Levantei. Enxuguei o rosto com um lenço, silenciei o celular, dez mensagens da Carolina, uma ligação perdida do Júlio.
Ignorei tudo.
Tranquei a dor dentro do peito e voltei pra loja.
Fingindo que ainda havia algo inteiro dentro de mim.
O relógio marcou seis da tarde. A loja esvaziou, as luzes começaram a apagar, e o peso do dia me desabou sobre os ombros. Tudo em mim doía. Eu só queria ir pra casa, me esconder do mundo.
Peguei a bolsa, desliguei o celular e caminhei até a saída.
Mas assim que empurrei a porta de vidro e pisei na calçada fria, o vento cortando o rosto… eu vi.
Ela estava lá.
Encostada em um carro na esquina. O cabelo preso de qualquer jeito, o rosto sem maquiagem, e a expressão de desespero estampada.
— Isadora! — Carolina veio correndo na minha direção.
Meu coração disparou. O estômago revirou.
— Não. — levantei a mão como um escudo. — Não, Carolina. Vai embora.
— Por favor, eu preciso falar com você! — ela insistiu, chorando. — Me escuta, eu tô desesperada…
— Vai embora! — gritei, sem me importar com os olhares ao redor.
— Aconteceu, Isa… aconteceu! — ela se aproximou, soluçando. — Eu nunca quis te magoar. Mas eu e o Júlio… a gente se ama. A gente percebeu isso e foi mais forte do que a gente…
Foi como levar outro soco no peito.
Eu ri. Uma risada amarga, cheia de ódio.
— Se amam? — cuspi a frase com nojo. — Você tá falando isso pra mim, Carolina? Pra mim? Depois de tudo? Depois de todos os anos em que eu te defendi, te apoiei, te levei pra dentro da minha casa, pro meu relacionamento? Depois de tudo que eu confiei em você?
Ela estendeu a mão, tentando me tocar.
— Foi uma fraqueza, Isa… eu me arrependo, eu juro! Mas…
— Mas nada. — avancei um passo, sentindo o sangue ferver. — Você teve todas as chances de sair daquela cama antes de destruir a minha vida. Mas ficou. Porque quis. Porque você é uma cobra, Carolina. Uma traidora. Uma vergonha.
Ela chorava, sem conseguir se defender.
— Eu te amo como irmã, Isa…
Pá.
O som do tapa ecoou na calçada. Alto, seco, doído.
Minha mão tremia. O rosto dela virou pro lado, a marca vermelha estampada na pele.
Algumas pessoas pararam. Eu não me importei. Não senti culpa. Só raiva.
— Nunca mais chega perto de mim. Nunca mais fala comigo. Nunca mais pronuncia meu nome. Eu juro por tudo que existe em mim, Carolina… se eu te ver de novo, não respondo por mim.
Ela levou a mão à bochecha, muda, com os olhos arregalados.
Virei as costas, o peito subindo e descendo rápido. As lágrimas voltaram, a raiva queimava.
Andei pelas ruas como um furacão. A cidade pulsava viva, buzinas, vozes, luzes…
Mas dentro de mim, tudo estava morto.