Pré-visualização gratuita Capítulo 1 - Aqueles Olhos
A noite descia pesada sobre a Rocinha.
O ar estava quente, úmido e carregado de fumaça. Lá do alto, dava pra ver o Cristo Redentor iluminado, distante — quase debochando da escuridão que dominava o morro.
Na boca principal, o som dos rádios estourava, o cheiro de pólvora e maconha se misturava com o do churrasco improvisado num tambor de ferro.
Homens armados vigiavam as vielas, atentos a qualquer passo estranho.
Era território dele.
Território de FK.
Sentado no fundo do escritório, atrás de uma mesa de madeira escura, ele observava as câmeras no monitor. O olhar fixo, frio, vazio. Os dedos marcados por cicatrizes tamborilavam o tampo da mesa, impacientes.
Um cigarro queimava esquecido entre os dedos.
— O bagulho deu r**m lá na parte de baixo, mano — disse PH, entrando com o semblante fechado. — Os cara da facção rival tentou interceptar o carregamento.
FK nem olhou pra ele.
Puxou o cigarro, soltou a fumaça devagar.
— E por que tu tá me falando isso como se fosse novidade? — a voz dele era calma, quase monótona, mas carregada de ameaça. — Eu pago pra não ter erro, PH. Se teve erro, alguém vai pagar.
PH respirou fundo.
— Já resolvi, irmão. Dois dos moleques que vacilaram tão sumido já.
FK finalmente ergueu os olhos. Cor de mel, mas gelados, sem vida.
— Sumido não. — Ele apagou o cigarro no cinzeiro de metal, o som seco ecoou pelo ambiente. — Morto. Eu não deixo ponta solta, tu sabe.
Silêncio.
Do lado de fora, dava pra ouvir os tiros esporádicos vindos de longe.
Na Rocinha, a paz sempre tinha prazo de validade.
— E a entrega? — perguntou FK, cruzando os braços.
— Chegou completa. — PH respondeu. — O dinheiro tá no cofre, lá atrás.
FK assentiu com um leve movimento de cabeça.
Levantou-se. O corpo alto e forte parecia ocupar o espaço todo do escritório. As tatuagens pelos braços e pescoço contavam histórias de guerra e sangue.
— Tu cuida disso. Eu vou dar um pulo lá na pista — disse, pegando a pistola na mesa e encaixando na cintura.
PH arqueou a sobrancelha. — Agora?
— Agora. — Ele deu um meio sorriso que nunca chegava aos olhos. — Quero ver se o morro ainda lembra quem manda aqui.
Quando FK saiu, os olhares se desviaram.
Ninguém olhava direto pra ele.
Ninguém ousava.
O ar pareceu ficar mais denso.
O nome FK ecoava por cada viela, cada esquina, como um aviso.
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Do outro lado do morro, Cecília subia as escadas cansada, as pernas doendo depois do expediente na loja do shopping.
A mochila pendurada num ombro, o uniforme amarrotado, o cabelo preso num coque bagunçado.
Ouvia ao longe os barulhos da noite — motos acelerando, gargalhadas, o som pesado do funk que vinha da quadra principal.
Nunca tinha ido num baile.
Nunca teve tempo pra isso.
A cada degrau, pensava se a mãe ainda tava acordada, se o pai tinha bebido, se as irmãs estavam em casa.
O coração dela era leve, mesmo no meio do caos.
Sonhava em sair dali, juntar dinheiro, estudar, dar uma vida melhor pra mãe.
Quando entrou em casa, o barulho de garrafas caindo ecoou da cozinha.
O pai gritava, a mãe chorava.
Cecília abaixou a cabeça e correu pro quarto, fechando a porta devagar.
Sentou na cama e olhou pro livro em cima da mesinha — o mesmo que lia toda noite, tentando esquecer o mundo lá fora.
Lá fora, o inferno comandava.
E ela nem imaginava que o m*l tinha nome — ou melhor, um vulgo.
FK.
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Lá em cima, ele descia do carro preto blindado, cercado por dois seguranças.
O baile fervia. Luzes piscando, corpos se movendo, o som ensurdecedor.
As mulheres se jogavam pra ele, mas o olhar dele atravessava todas — vazio, desinteressado.
Nenhuma o prendia.
Nenhuma o marcava.
Ele era o rei.
E o rei não se mistura com súditos.
Mas o destino, naquela noite, começava a se mexer.
Lá embaixo, na parte mais esquecida do morro, uma menina de olhos verdes dormia, sem saber que o próprio inferno um dia bateria na porta dela — com um olhar cor de mel e uma arma na cintura.
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O sol já batia forte sobre a Rocinha quando Cecília saiu de casa.
O rosto cansado, as olheiras leves, mas ainda assim havia algo nela que chamava atenção — uma pureza que destoava do caos ao redor.
Carregava a mochila surrada nas costas, o cabelo solto e molhado, e os fones no ouvido com uma música calma que tentava abafar os gritos da vizinhança.
Antes de descer pra pegar o ônibus pro shopping, ela passou na lanchonete da Ivonete, como sempre fazia, pra comprar um pão de queijo e um café.
Aquele era o único lugar no morro onde ela se sentia em paz.
Ivonete a tratava como filha, e Maia, sua melhor amiga, trabalhava no caixa — sempre risonha, sempre perguntando se ela tava bem.
— Bom dia, Cê! — gritou Maia, enquanto limpava o balcão. — Tá com a cara de quem dormiu três horas.
Cecília sorriu de leve. — Nem isso... papai chegou tarde, gritando.
— De novo? — Maia suspirou. — Tu tem que sair dessa casa, menina.
— E ir pra onde? — respondeu, dando de ombros. — Um dia, quem sabe.
A conversa foi cortada pelo ronco pesado de um motor.
Um carro preto parou em frente à lanchonete.
Silêncio.
Todo mundo que tava do lado de fora se afastou.
Os olhares se cruzaram, o clima mudou.
Até o vento pareceu parar.
O carro abriu a porta lentamente — e ele desceu.
FK.
Calça de moletom preta, camiseta justa, o corpo coberto de tatuagens à mostra.
Relógio caro, corrente grossa, olhar duro.
O som dos passos dele era pesado, autoritário.
Dois homens armados ficaram do lado de fora, vigiando.
Maia endireitou o corpo, nervosa.
— Caraca... é o FK... — sussurrou.
Cecília não respondeu.
O coração acelerou.
Ela nunca tinha ficado tão perto dele.
Sabia quem era — todo mundo sabia — mas nunca o tinha visto de verdade.
Ele entrou na lanchonete sem olhar pra ninguém.
A presença dele enchia o lugar, sufocava o ar.
PH veio logo atrás, com o filho pequeno pela mão.
— Fala, dona Ivonete! — disse PH, abrindo um sorriso. — Traz dois cafés e o pão de queijo do chefe aí mãe.
Ivonete veio do balcão dos fundos, meio cansada, limpando as mãos no avental.
— Bom dia, FK.
Ele apenas assentiu, sentando na mesa do canto, de onde via a rua toda.
O olhar dele varreu o ambiente, e por um instante, parou.
Nos olhos dela.
Cecília.
Ela congelou.
O coração bateu forte demais.
Tentou desviar, mas o olhar dele prendia, firme, quase c***l.
Havia algo de estranho ali — ele não parecia vê-la, parecia analisá-la, como quem estuda uma presa.
Ela baixou a cabeça, fingindo mexer no celular.
Mas sentia o olhar dele queimando na pele.
PH notou.
— Deixa a menina, irmão. É amiga da minha irmã, a Cê trabalha lá no shopping.
FK continuou olhando por mais alguns segundos, depois desviou.
— Eu não falei nada.
Mas o tom era perigoso.
Não precisava falar.
Cecília respirou fundo, pegou o café que Maia trouxe e tentou ir embora rápido.
Só que, ao passar pela mesa dele, a alça da mochila enroscou na cadeira.
O som do tecido rasgando ecoou.
Ela se virou apavorada.
— M-me desculpa, eu não vi... — a voz dela falhou.
FK levantou o olhar.
Devagar.
Sem pressa.
Os olhos cor de mel dela encontraram os dele — e o mundo pareceu parar.
— Olha por onde anda, garota. — A voz dele era baixa, rouca, mas cortante.
— Eu... eu não quis...
Ele se inclinou pra frente, os cotovelos sobre os joelhos, o olhar fixo nela.
— Eu sei que não quis. Mas aqui em cima, “não querer” não impede ninguém de morrer, entendeu?
Ela engoliu seco, o rosto pálido.
Maia se aproximou correndo.
— Tá tudo bem, FK. Ela não fez nada, foi sem querer.
Ele desviou o olhar pra amiga, depois voltou pra Cecília, estudando cada detalhe — o tremor nas mãos, a respiração curta, o medo sincero.
E aquilo o incomodou.
A pureza dela o irritava.
— Some daqui. — disse por fim, com frieza.
Ela obedeceu.
Saiu apressada, o coração disparado, sentindo o olhar dele nas costas até a esquina.
PH olhou pro amigo e deu um meio sorriso.
— Que foi isso, irmão? A menina quase desmaiou de medo.
FK recostou na cadeira, os olhos fixos na rua.
— Medo é bom. Mantém o povo no lugar.
PH riu de canto. — Sei não... tu olhou pra ela de um jeito diferente, hein.
FK pegou o café, levou à boca e respondeu sem emoção:
— Eu olho pra todo mundo assim antes de decidir se mato ou deixo viver.
Mas dentro dele, algo se moveu — pequeno, incômodo.
E ele odiava se sentir assim.
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