• Maria •
Marchando pela cidade, o que sobrou da minha facção segue caminho até sua base. Eric, que ainda está desmaiado, é carregado por dois soldados de maneira desajeitada. Tori marcha com uma carranca brava no rosto, mostrando sua raiva pela decisão de não matar Eric.
Quando chegamos no complexo da Audácia, Eric é encaminhado para a prisão e todos nós pegamos armas de paintball. O plano é atirar em todas as câmeras para que a Erudição não possa nos vigiar.
Enquanto atiro nas câmeras da sala de treinamento, me dou conta de que toda a Erudição viu as cenas quentes que Eric e eu protagonizamos aqui, há algumas semanas. Isso faz com que eu fique nervosa.
— Fez um ótimo trabalho, Maria. — Drew diz entrando sem camisa e todo colorido
— Atiraram em você? — pergunto rindo
— A Jessie começou uma verdadeira guerra lá fora. Vim te chamar para ser minha aliada.
Drew era meu melhor amigo, mas nós não tivemos tempo de conversar sobre o que rolou na Amizade, um pouco antes de termos que sair correndo.
Não sei se quero ter essa conversa algum dia e perceber que ele sente alguma coisa por mim. Não quero perder sua amizade e nem que as coisas fiquem esquisitas entre nós.
— É uma boa ideia, já que terminei por aqui. — digo tomando caminho pra saída
— Então vamos. — ele ri e caminha ao meu lado
Quando chego no corredor, vejo Quatro, Tris e Jessie com suas armas apontadas para mim. Eles gritam rindo e estão coloridos de tinta. Eu protejo o rosto e tento correr, mas Drew me segura e então sou alvejada de tinta pelos três.
É bem capaz que, depois de hoje, eu tenha tinta até onde o sol não bate, mas hoje eu também tive a prova do porque eu escolhi a Audácia. Estamos vivos, somos corajosos.
Eu sou a Audácia!
• Eric •
Abri os olhos sentindo-os mais leves, finalmente. Eu não faço ideia de quanto tempo apaguei e nem de como vim parar nessa prisão, mas eu reconheço o lugar. Estou de volta ao complexo da Audácia, mas desta vez as paredes estão com marcas de tiro de paintball e as câmeras estão todas pintadas. Sorrio ao imaginar que Jeanine deve estar se descabelando por não conseguir nos ver mais.
Está muito quente aqui, então eu tiro a jaqueta, jogando-a na cama. Da cela em que estou, não consigo ver o início da ala, então não sei se tem alguém aqui embaixo comigo.
Me sento no chão, com as costas na parede, e passo a mão na nuca, sentindo o exato lugar onde Jeanine me injetou o dispositivo da simulação. Eu não sei como, mas ela conseguia me monitorar, como se eu fosse um boneco de ventríloquo. Sinto ainda mais ódio daquela vaca. Eu seria capaz de apertar minhas mãos em seu pescoço até que ela mudasse de cor.
Não sei exatamente quanto tempo se passa, mas ouço passos se aproximando. Torço para que seja o carcereiro para que eu possa pedir, ao menos, um copo d'água.
Com os olhos fechados, respiro fundo e monitoro os passos. Eles param após um tempo e eu tenho certeza de que a pessoa está parada na minha cela.
— Serviço de quarto.
Abro os olhos ao ouvir a voz familiar de Maria. Ela sorri pra mim e carrega uma bandeja com bolo, duas garrafas d'água, uma maçã e uma quentinha. A prisão da Audácia, assim como todo o complexo, têm uma iluminação singular. Há apenas algumas lâmpadas de led pelos corredores para iluminar as celas. Eu não sei se é dia ou se é noite, mas Maria na minha frente é como uma manhã ensolarada.
— Imagino que você esteja com fome. — ela diz e passa a bandeja pela brecha das grades
— Acertou em cheio. — me levanto e pego a bandeja
— Joanne está conversando com o cara que está encarregado de ficar de olho em você. — ela diz — Quatro e Tori me proibiram de chegar perto daqui, mas sua amiga é boa em enrolar pessoas.
— Você nem imagina. — murmuro e me sento no chão, com a bandeja no colo — Mas por que Quatro e Tori te proibiram? Que poder eles têm? — abro uma das garrafas de água e bebo um longo gole
— Houve uma votação e foi decidido que Joanne, Quatro e Tori são nossos novos líderes. — ela explica e se senta no chão, com as mãos nas barras de ferro — Eles votaram entre si e decidiram adiar sua execução. Ganhamos tempo, pelo menos.
— Por que não deixou que me matassem? — eu a olho
— Porque eu não podia. — ela me olha — Você salvou minha vida.
— Não me deve nada, Sol.
— Sol? — ela franze o cenho
— É o seu nome, não é?
— É estranho ter alguém de fora da Amizade me chamando assim. — ela ri fraco — Mas confesso que saiu bem, vindo de você.
Ficamos em silêncio por alguns segundos e eu decido comer apenas um pedaço do bolo, por enquanto.
— Está gostando de ser irmã do líder? — pergunto
— Quatro e eu seguimos normais. — ela dá de ombros — Acho que não existe ninguém que realmente seja íntima dele, sem ser a Tris. Independente dele ser meu meio-irmão, acho que seremos sempre apenas colegas de facção. E, é claro, serei grata por ele ter me ajudado na segunda fase.
— Ah, claro. — murmuro — Você é divergente.
— Imaginei que já soubesse.
— Eu já sabia mesmo antes de te ver acordada na Sala de Controle. — assumo — Ouvi Quatro e Tris conversando sobre.
— Você me acha uma aberração?
— No início, fiquei preocupado. Eu acho a divergência algo desconhecido e, como qualquer pessoa, também tenho medo de coisas desconhecidas.
Assumir meus medos agora não me parece errado.
Não importa mais.
Eu não sei por quanto tempo mais ficarei vivo. Quero ser sincero com Maria, quero conseguir aceitar o que está dentro de mim.
Estar tão perto dela e não poder tocá-la é frustrante.
— Mas ainda assim salvou minha vida.
— Não importa mais. — dou de ombros
— A minha vida ou o seu ato?
— A minha vida, o meu ato, a sua divergência. Nada disso me importa mais, porque estou condenado à morte pelas merdas que eu fiz.
— Você ainda pode ser perdoado.
— E virar um Sem-Facção? — a olho — Ou uma marionete da Jeanine? Não, obrigado. Prefiro a morte.
— Se odeia tanto a Jeanine, por que ficou ao lado dela?
— É complicado.
— Então descomplica. Eric, Joanne me disse que você precisava de alguém para investir em você. — ela parece séria ao me encarar — Eu quero investir, de verdade, mas preciso saber no que eu estou investindo.
— Num buraco escuro de dor. — murmuro
Silêncio de novo.
Era como se eu estivesse na beira do abismo. Eu tinha a opção de pular ou continuar lá em cima. Se eu pulasse, seria minha libertação. Se ficasse, seria o meu fim.
Pulei.
Decidi pular de cabeça na loucura de sentimentos dentro do meu peito.
Eu amo a Maria, isso é um fato aqui dentro, mas a melhor maneira de aceitar isso, é dizendo em voz alta. Preciso me permitir confiar nela. Me permitir amá-la, embora eu não me sinta nem um pouco digno desse sentimento.
— Quando eu tinha dez anos, minha mãe ficou doente. — começo — Ela tinha uma doença degenerativa, mas eu não vou explicar isso, ok? É muito complicado. — digo e vejo Maria acenar com a cabeça para que eu continue o desabafo — Meu pai foi ficando ainda mais distante do que já era e o casamento deles passou a ser mais esquisito ainda. Um dia, eu voltei da escola e fiquei sabendo que minha mãe havia ido parar na ala médica da Erudição. Ela havia piorado e estava entre a vida e a morte. Quando eu entrei para vê-la em seu leito, ao lado dela, meu pai estava. Mas ele não estava segurando a mão dela ou cuidando dela. Ele estava beijando a Jeanine.
Reviver essas lembranças na minha cabeça já não era mais doloroso e nem raivoso. Eu não sentia mais nada ao lembrar disso. Parecia que eu era telespectador. Que estava observando a vida de outra pessoa. Parecia que não era eu.
— Em silêncio, eu o vi afastar Jeanine e a ouvi dizer que não era culpa dele. Minha mãe piorou porque havia flagrado os dois juntos. Meu pai teve um caso com a Jeanine durante anos, depois que o amor da vida dela trocou de facção. — olho para Maria — Eram os três mosqueteiros da Erudição. John Coulter, Jeanine Matthews e Logan Prince.
Fico um pouco em silêncio observando Maria absorver a história. Ela franze o cenho e parece analisar lembranças silenciosamente.
— Minha mãe morreu na madrugada daquele mesmo dia e, desde então, eu passei a viver meio que por conta própria. — dou de ombros — Eu queria ser o melhor, porque achava que, ao ser o melhor, meu pai voltaria a prestar atenção em mim, mas Jeanine já havia sugado tudo dele. Há três, meu pai morreu. Eu não soube o motivo e nem pude ver o corpo. Disseram que ele se jogou da ponte da cidade, caindo no rio. Estava muito destruído. Foram meses depois da morte de Logan Prince.
— Eu não sei o que aconteceu com o meu pai também. — ela diz — Eu via que Jeanine o visitava as vezes e ele não gostava muito. Dizia que ela pedia para que ele fizesse favores pra ela, mas ele sempre recusava. Até que, um dia, me disseram que houve uma briga dos Sem-Facção e...
— A Audácia precisou interferir e, por isso, ele morreu. — eu a interrompo
— Conhece essa história?
— Eu já era líder da Audácia nessa época. — afirmo
— Recentemente eu descobri que meu pai foi esfaqueado por um homem sem facção, mas eu também não vi o corpo. Lana disse que ele já estava no crematório, quando ela chegou.
— Eu estava armado e acompanhado de uma patrulha para interferir naquele confronto. — a olho — Eu vi um sem facção esfaquear seu pai quatro vezes na barriga e jogar o corpo dele no mesmo rio onde meu pai foi achado meses depois.
Maria arregala os olhos e vejo lágrimas descerem pelo seu rosto. Pela primeira vez em anos eu me sinto m*l por alguém. Quero abraçá-la, colocá-la em meu colo e mexer em seus cabelos, mas as grades da cela me impedem.
— Sinto muito, Maria. — sou sincero
— Sinto muito, Eric. — ela parece sincera, se referindo a minha história
— Fiquei ao lado de Jeanine porque ela ameaçou minha liderança, mas hoje isso não me importa mais. Depois de ver você sob a mira de uma arma, nada mais importou.
— Eu jamais imaginaria as merdas que você passou.
— Ninguém sabe como é ser o homem fodido por trás dos olhos azuis frios. — murmuro
Maria fica de joelhos e estica os braços, passando-os pela grade. Suas mãos alcançam meu rosto e me fazem olhar para ela. Ela sorri fraco para mim e acaricia meu rosto.
— A primeira vez que disse isso, estava sob o efeito do Soro da Franqueza, num interrogatório. — diz e eu franzo o cenho — Mas preciso falar agora, pra você ouvir.
— O que? — sussurro
— Eu te amo.
— Eu não mereço isso.
— f**a-se o que você acha. — ela ri fraco — Já era, é tarde demais pra gente lutar. Eu sou i****a o suficiente pra amar você.
Me ajoelho no chão e chego pra mais perto das grades, passando os braços por elas e segurando seu rosto com as duas mãos. Maria e eu colocamos nossas bocas na brecha de uma grade e outra e nos beijamos. Um selinho demorado, já que as barras não nos permitem beijar melhor, mas já é um alívio poder sentir um ao outro.
— Por favor, quando eu tiver divagando, me puxe de volta pra realidade. — peço — Eu não quero ser o cara mau. Não pra você. — sinto meus olhos arderem — Eu amo você, Maria.