Narrado por Murilo Ferreira
A gente subiu o morro feito tropa que volta de missão — suado, rindo alto, zoando até a alma.
Neguim vinha com o boné torto, dançando funk inventado na hora:
— “Eu sou o terror do papai, bagulho doido da escola, quem fala da Melissa já apanha na sacola!”
Faísca se dobrava de rir.
— “Vai tomar no cu, Neguim! Essa rima merece um Grammy da quebrada.”
Pulga fazia beatbox com a boca, e Gargalo batia palma como se fosse batida de palma no culto do crime.
— “Cês viram o playboy chorando, mano?” — Pulga gritou. — “Tava igual calopsita no temporal, tremendo e pedindo abracinho!”
— “Eu juro que vi ele mijar,” — completou Gargalo, sério. — “Não tô brincando. Um filete de medo escorreu ali, ó.”
Eu ria baixo, só observando o bonde se esbaldar.
Tava estampado na nossa cara: missão cumprida.
E o morro sentia.
A cada viela, a cada quebrada, alguém gritava, assobiava, acenava.
— “Aí, Murilo! Diz que foi tu que quebrou o nariz do riquinho?”
— “Cês tão famosos, hein! Já vi até meme no grupo da quebrada!”
Neguim inflava o peito como g**o de briga.
— “A gente é viral agora, c*****o!”
— “É o bonde da escola particular, p***a!” — gritou Faísca. — “E ainda ensinaram ética na porrada!”
Pulga quase tropeçou de tanto rir.
— “Se continuar assim, vamos virar tema de redação do ENEM: ‘a importância da surra no processo pedagógico’.”
Chegamos na ladeira principal da Vila.
Dava pra ver a laje da minha casa lá do alto. E, mais embaixo, o miolo do morro — onde a boca funcionava no ritmo do lucro e da bala.
Foi quando o soldado da boca veio na direção da gente, apressado, já acenando com a cabeça:
— “Ô Murilo… teu pai mandou chamar. Todos vocês. Agora.”
Silêncio.
A zoeira morreu no ar.
Faísca passou a mão no rosto, como quem limpa a coragem.
— “Ih…”
Pulga engoliu seco, fingindo leveza:
— “Cês acham que ele viu o vídeo que postamos no status? Aquele com Yuri no chão que o Gargalo filmou em câmera lenta?”
Gargalo levantou as mãos:
— “Eu só gravei por segurança jurídica!”
Neguim resmungou:
— “Fudeu, viado…”
Eu não falei nada.
Só ajeitei o boné na cabeça, dei dois tapas na bermuda e disse:
— “Vambora. Se o Aderbal chamou, é porque não vai ser recado.”
A gente desceu em silêncio, mas com o peito em riste.
Porque uma coisa era bater em boy de condomínio.
Outra era encarar Aderbal Ferreira de frente.
E se ele queria falar com o bonde…
Era porque, a partir daquele momento,
a zoeira ia ter consequência.
Ou coroa.
A gente desceu a viela principal em fila torta, igual moleque que aprontou na escola e agora ia encarar a diretora — só que no nosso caso, a diretora era meu pai.
Aderbal Ferreira.
Nome de respeito na quebrada. Voz grossa, olhar que pesa, e uma mão que já ensinou muito moleque a andar reto — ou a andar torto com medo.
Chegamos na frente da boca.
O cheiro de cigarro, pólvora e dinheiro velho já anunciava o território.
Dois soldados abriram passagem.
Todo mundo em volta calou.
E a gente entrou.
O barraco do miolo da operação era simples por fora, mas por dentro era outro jogo. Sofá de couro, TV maior que ego de político, e um altar de São Jorge do lado da geladeira. O trono de Aderbal era uma cadeira de madeira reforçada, dessas que parece que até o peso do mundo pode sentar que ela não quebra.
E ele tava lá.
Sentado.
Com a perna cruzada, camisa aberta no peito, e o semblante de quem já sabia de tudo.
Sem pressa, sem sorriso.
Só o olhar.
Aquele olhar que atravessa.
— “Entraram pra história hoje, né?” — ele falou, sem levantar a voz.
A gente não respondeu. Nem riu. Nem fingiu.
Neguim coçou a nuca. Pulga baixou o boné. Faísca limpava o tênis com a sola no chão. Gargalo assoprava o cigarro sem tragar.
Eu fiquei firme.
Porque aquele era o meu pai.
E com ele, quem vacila perde até a confiança.
— “Bando de palhaço,” — ele soltou, se levantando. — “Viral no zap agora é currículo pra ser enterrado?”
Deu um passo.
Veio direto no Faísca.
POC.
Um cascudo seco no topo da cabeça.
Faísca arregalou o olho, mas nem ousou xingar.
— “Por zoar na frente da escola particular com câmera ligada.”
Deu meia-volta e PÁ — cascudo no Pulga.
— “Por postar vídeo no status com legenda ‘aula dada, trauma cobrado’.”
Pulga segurou o cocoruto, murmurando um “foi m*l”.
Aderbal olhou pro Gargalo.
— “E tu, cinegrafista do crime…”
TOC.
Mais um cascudo.
— “Quer filmar? Vira repórter da Record, caralho.”
Gargalo mordeu o lábio, tentando não rir nem chorar.
Virou pro Neguim.
— “E tu, i****a, dançando funk no meio do morro? Tá achando que é baile, p***a?”
PUM.
Neguim tomou o dele também. Nem reclamou. Só assentiu, respeitoso.
Aí ele me encarou.
Silêncio.
— “E tu, Murilo.”
O coração deu aquela apertada.
Mas eu não baixei a cabeça.
Ele chegou mais perto. Olhou nos meus olhos.
— “Meu filho. Meu nome.”
E PÁ.
O cascudo mais forte de todos.
Doeu mais no orgulho que na cabeça.
— “Pra tu aprender que liderança não é só porrada. É também saber mandar os o****o calar a boca.”
Ele deu as costas, voltou pro trono.
Acendeu um cigarro com calma. Soprou a fumaça devagar.
— “Agora senta aí. Come alguma coisa. E escuta o que eu tenho pra dizer.”
E a gente sentou.
Porque quando Aderbal bate…
ele bate ensinando.
A gente sentou em silêncio, mas era aquele silêncio barulhento — cheio de respeito, de vergonha abafada e do tipo de medo que não paralisa, mas endireita.
Pulga pegou um pastel de carne da mesa, mastigando devagar como quem espera a sentença. Faísca encheu o copo de mate gelado, mas nem teve coragem de brindar. Gargalo acendeu outro cigarro, agora tremendo um pouco, e Neguim puxou a corrente do pescoço, tipo amuleto de proteção.
Eu fiquei com o olhar no meu pai.
Aderbal tragou fundo. Cruzou as pernas de novo. E falou com aquela calma que metia mais medo que grito.
— “Vocês acham que isso aqui é filme? Hein? Que vão resolver tudo no soco e virar herói de quebrada?”
Pulga tentou abrir a boca, mas engasgou com o pastel.
Aderbal ignorou.
— “Hoje foi Yuri. Amanhã é quem? Outro filhinho de papai? Um playboy armado? Ou a p***a de um policial disfarçado? Porque é isso que vocês esquecem. Que enquanto vocês tão rindo... tem gente vigiando.”
Faísca engoliu em seco.
— “A intenção não foi explodir…”
— “Não foi, mas explodiu,” — cortou seco. — “Cês tão achando que a Vila não tem inimigo? Que o mundo lá fora não adora ver preto se fudendo pra ter motivo de invadir aqui dentro?”
Silêncio.
Ele se inclinou pra frente, o cigarro queimando entre os dedos.
— “Cês têm nome agora. E não é só aqui, não. Tão em grupo de polícia, grupo de professor, grupo de político. Acham que tão virando lenda? Tão virando alvo, porra.”
Gargalo bufou, baixo:
— “Mas também não dá pra abaixar a cabeça pra qualquer otário...”
Aderbal apontou pra ele.
— “Concordo. Mas aprende isso de uma vez: porrada boa é aquela que ninguém vê. Que não vira vídeo, nem viral. Que não chama polícia, nem enterro. Se tiver que bater, bate na sombra. E se tiver que sumir com alguém... que suma sem deixar digital.”
Neguim fez que sim, com os olhos.
O bonde tava aprendendo. Na marra.
Aderbal encostou de novo, puxou um novo cigarro, riu pelo canto da boca e falou com a voz mais baixa:
— “Agora... que foi bonito ver o moleque caído, foi.”
A gente se olhou.
Riso contido. Vergonha querendo escapar.
Ele deu uma tragada longa e soltou:
— “Só faltou legenda no vídeo: ‘Aqui se educa com amor e soco’.”
Pulga explodiu de rir.
Faísca bateu a mão na mesa, gargalhando.
Gargalo quase cuspiu a fumaça.
Neguim rolava no sofá.
E eu...
Eu ri.
Mas daquele jeito orgulhoso.
Porque mesmo com bronca, com cascudo, com sermão e lição...
Aderbal sabia.
A gente podia ser problema.
Mas era problema com disciplina.
Problema com dono.
E ninguém fodia com o bonde do Ferreira.