Capítulo 3 – Prisão com Vista para o Inferno

996 Palavras
Isabela A porta do quarto se fechou com um clique metálico que reverberou dentro de mim como um selo. Era oficial. Estava trancada. Isolada. Presa. O quarto era amplo, limpo, decorado com bom gosto, mas estéril. Paredes em tons neutros, cortinas pesadas, uma cama grande demais para uma pessoa só, móveis de madeira escura. Tinha até uma penteadeira de vidro. Bonito. Quase aconchegante... se não fosse o fato de que cada detalhe parecia gritar que eu estava ali porque alguém me colocou ali. Soltei minha mochila no chão e andei pelo cômodo como uma fera em uma jaula. Me aproximei da janela, mas, claro, estava trancada também. Grades invisíveis protegendo um reino de concreto. A vista dava para o morro inteiro — luzes fracas espalhadas entre as vielas e barracos, contrastando com o luxo do quarto em que eu me encontrava. Prisão com vista para o inferno, pensei, com um riso amargo escapando da garganta. Caio Moreira. O nome dele rodava na minha mente como um mantra perverso. A forma como ele me olhou. O tom de voz calmo, perigoso. Ele não precisava levantar a mão. Ele era ameaça pura, destilada nos olhos. Deixei meu corpo cair na cama. Firme, fria. Enfiei o rosto no travesseiro e, pela primeira vez em muito tempo, chorei sem tentar me controlar. Chorei pelo meu pai, que me vendeu. Pela minha mãe, que ficou impotente. Por mim. Pela Isabela que existia até ontem. A menina que sonhava em ser fisioterapeuta, em sair dali, fazer faculdade. A menina que acreditava que poderia ter uma vida normal, longe daquele mundo de crime, medo e submissão. Agora, tudo isso parecia tão distante quanto o céu visto através das grades. *** Não sei quanto tempo fiquei ali, deitada, tentando sufocar o soluço na roupa de cama que nem me pertencia. Até que ouvi passos do lado de fora. Fortes. Determinados. Eles pararam em frente à porta. Meu corpo gelou. A maçaneta girou com lentidão, o clique da tranca se desfez. E por um momento, eu prendi a respiração. Mas quem entrou foi uma mulher. — Você é a Isabela, né? — perguntou, com uma voz suave, mas contida. Vestia uma roupa discreta, os cabelos presos num coque. Assenti, sem forças pra falar. — Meu nome é Lúcia. Trabalho aqui há três anos. Vim trazer o jantar. Ela carregava uma bandeja prateada com dois pratos, suco e um pão. — Não estou com fome — murmurei, me levantando. — Vai precisar de energia — ela disse, com uma calma ensaiada. — Aqui não é bom ficar fraca. Especialmente no começo. No começo. Aquelas duas palavras me atravessaram como faca. — Quanto tempo você acha que vou ficar aqui? Ela hesitou. O silêncio foi a resposta mais clara que eu podia receber. — Eu posso ir embora? Ela me olhou com pena. Abaixou os olhos. Depois pousou a bandeja sobre a mesinha ao lado da cama. — Caio não costuma devolver o que toma pra si. Me sentei devagar, encarando a comida sem tocá-la. — E o que mais ele costuma fazer com... com quem ele toma? Lúcia me encarou por alguns segundos. Depois se aproximou, baixou a voz e disse: — Ele quebra primeiro o corpo. Depois a mente. E por fim, o orgulho. E quando você perceber… já não vai se lembrar de quem era antes dele. Ela saiu logo depois, deixando a porta aberta por uns segundos, só pra mostrar que não era minha escolha ficar ali — era ordem. Dois seguranças estavam posicionados do lado de fora. Um de braços cruzados, outro com a mão próxima à cintura, onde a arma descansava no coldre. Eu estava cercada. Fechei a porta devagar, com medo do que encontraria se tentasse ultrapassar aquele limite. De volta à solidão do quarto, caminhei até o banheiro. Era tão luxuoso quanto o resto. Toalhas dobradas com perfeição, sabonetes caros, piso aquecido. Como se tentassem mascarar o horror com conforto. Tirei a roupa lentamente, cada peça como uma camada de defesa sendo removida. Quando me olhei no espelho, quase não me reconheci. Os olhos estavam vermelhos, o rosto pálido, os lábios trêmulos. Mas havia algo por trás do medo. Uma semente. Raiva. Liguei o chuveiro e entrei, deixando a água escorrer pelo meu corpo. Quente, intensa, como se pudesse arrancar de mim a sujeira daquele dia. Mas a dor… essa não saía fácil. Era interna. Silenciosa. Como uma marca feita a ferro. Saí do banho com o corpo mole. Enfiei a primeira camisola que encontrei no armário. Branca, de seda. Óbvio, pensei. Do jeito que ele deve gostar. E, claro, com o comprimento curto demais. Senti vergonha. Mas não tirei. Estava cansada demais para enfrentar outra batalha naquele momento. Voltei para a cama e me encolhi. O quarto estava escuro, mas não silencioso. Do lado de fora, o morro seguia vivo: vozes, barulhos de moto, risadas, discussões abafadas. Mas aqui dentro… o mundo parava. Fechei os olhos. E quando o sono finalmente ameaçou chegar, ouvi passos novamente. Mais leves. Mais lentos. Mais… conhecidos. Meu corpo inteiro enrijeceu. A maçaneta girou. E dessa vez, não era a empregada. Caio entrou no quarto sem dizer uma palavra. Vestia a mesma camisa preta de antes, agora com os botões abertos até o meio do peito. Os olhos cravados em mim. Predador. Fiquei sentada na cama, sem saber se devia levantar, falar, me esconder. — Só vim ver se você estava bem instalada — disse ele, num tom arrastado. — Estou ótima na minha cela de luxo — rebati, antes que minha prudência me mandasse calar a boca. Ele sorriu de lado. — Gosto de mulheres com língua afiada. Me dá mais gosto em domar. Minha respiração falhou por um instante. Ele se aproximou da cama e puxou uma mecha do meu cabelo, com um toque leve demais pra ser inocente. — Boa noite, Isabela. E saiu. A porta se fechou. Trancou novamente. E eu sabia. A noite estava só começando.
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