Capítulo 02 Cérbero

1625 Palavras
Cerbero Narrando Hoje o dia já nasceu azedo. Antes do sol pintar o céu, eu já tava de pé, com o pensamento acelerado e o corpo em alerta. No meu mundo, descanso é artigo de luxo. Aqui, se tu pisca, tu morre. Nem cheguei no chuveiro e o rádio já começou a chiar no canto da sala. Voz do Boquinha cortando a manhã: tinha uma novinha na barreira, mala na mão, pedindo canto. Ignorei. Cria que é cria resolve, não precisa me chamar pra migalha. Entrei no banheiro, tirei a cueca com uma mão e já fui direto pra água gelada. Estralei o pescoço, a tatuagem nova ardendo no ombro. Cada risco no meu corpo tem nome. Cada cicatriz é uma história. Sou filho da rua, criado sem pai nem mãe. Sou cria da noite. Meu nome não precisa ser falado, minha presença já pesa. As marca no meu corpo falam por mim. O rádio chiou de novo. Dessa vez era o Perü. Rádio On — Chefe, tá na escuta? — a voz dele entrou seco, como quem não queria incomodar, mas sabia que precisava. Já tava me enxugando, passei o desodorante, joguei a toalha em cima da cômoda e caminhei até o rádio, pelado mesmo. — Que pørra é essa logo cedo, caralhø? Fala logo que eu não sou de chá de bom dia. — Desculpa aí, patrão, mas o bagulho é sério. Boquinha tentou falar contigo, o Macabro não respondeu, e... cê tá ligado que se eu tô chamando é porque a fita é quente. — o filha da p**a gaguejou, mas deu o papo. — Solta a voz, pørra. Espero que seja coisa séria de verdade, senão tu vai acordar com a cara virada pro chão. — falei enquanto puxava uma cueca da gaveta. Uma mão no rádio, a outra ajeitando o paü dentro da cueca. — Então... é o seguinte. Tem uma mina lá na barreira. Tá desde cedo, com mala e tudo, dizendo que precisa de um canto. Já tem uns 40 minutos lá em pé. Não arredou. — Ele falou e eu ri. Deboche puro. — O Turano virou o quê agora? Pousada? AirBnb? Tô abrindo vaga no Booking, pørra? — Já fechei a cara e continuei: — Vocês tão ligados que aqui não entra morador novo sem meu aval, caralhø. Ainda mais nesses tempos... Mas vocês sabem identificar no olhar, entao se viram. O que essa pørra tem de especial? Não tô entendendo que pørra é essa que vocês me chamam pra resolver isso, mano? Joguei o rádio em cima da cama, puxei uma bermuda, dei aquela borrifada de perfume na marra e já fui calçando o tênis. — É por causa das últimas ordens, chefe. Ninguém deixou a mina subir sem tua palavra. O papo é: se tu liberar, a gente vê um canto e cobra o justo. Fechou? — Perü mandou com receio, achando que tava agradando. Puxei o celular e coloquei o cordão no pescoço, prata pesada. Aquele que eu só uso quando sei que o dia vai ser cabuloso. — Já subiu e já desceu gente aqui que passou por tu, pelo Macabro, pelo Boquinha, até pelo Curupira... sem passar por mim. Nunca fiquei no escuro, vocês sempre tiveram visão. E agora tu vem me encher o saco com pørra de novinha pedindo abrigo? Tomar no cü, Perü. Eu não sou síndico dessa pørra. Resolve ai caralhø, se der b.o, tu já sabe é tu que será cobrado. Desliguei o rádio seco. Sou cria do Turano. Não sei quem me botou no mundo. Não sei quem pariu. Não tive colo, não tive berço, não tive ninguém. Tive o chão frio, o estômago roncando e a rua me moldando na porrada. Aprendi cedo que quem sorri demais morre cedo... e eu nunca fui muito de sorrir. Meu nome é Cérbero desde os 13. Me chamaram assim porque diziam que eu era igual o cão do inferno — o que guarda os portões e não deixa alma sair. Só que eu não guardo. Eu puxo. Eu arranco. E não devolvo. Nunca tive pai, mas tive o ex-dono do morro. Foi ele que me olhou quando ninguém olhava. Me deu uma arma antes de me dar comida. Disse que viu em mim um monstro frio, calculista. Me adotou não por amor, mas por respeito. E eu retribuí matando por ele — e depois, matando ele também, quando chegou a hora de tomar o trono. Assumi o Turano com 17 anos. De lá pra cá, nunca mais soltei. Tenho 38. Um metro e noventa de altura. Corpo todo riscado com história que ninguém precisa saber. Eu não explico nada pra ninguém. Só dou ordem. E minha ordem é sentença. Ou vive, ou morre. Comigo não tem segunda chance. E não importa se é novato ou cria antiga. Não importa se é mulher ou homem. Pisou fora da linha, eu risco da história. Quem fala demais morre cedo. Então eu escuto. Sempre escutei mais do que falei. Quando eu falo, é pra resolver. Comigo não tem massagem. Se eu falar: “faz”, já era pra ter feito. No meu comando, o Macabro e o Perü são minha linha de frente. Curupira comanda os vapor. Boquinha segura o cerco. Todo mundo sabe que se der merda e chegar em mim... a cobrança vem sem recibo. Amor? Isso aí nunca me pertenceu. Mulher, pra mim, é só corpo. Usou, largou. Se tentar se apegar, eu mesmo meto o pé ou bala. Se for daquelas que entende o jogo, aí talvez repita a dose. Mas coração... esse bagulho eu não tenho não. Nunca tive. E é por isso que o Comando escuta minha voz antes de decidir. Porque eu não penso com emoção. Eu penso com sangue frio. Sou o guardião do inferno. Sou Cérbero. Coloquei a peça na parte de tras da bermuda celular e rádio no bolso, peguei a chave da moto. Desci do alto do Turano com o sol ainda nem dando o ar da graça direito. O motor da minha moto roncava forte, cortando o silêncio da quebrada enquanto eu rasgava a ladeira. Meu destino era certo: a lanchonete da dona Alzira. Primeira a abrir, última a fechar. Clássico da quebrada. Não tem erro. Quando eu paro a moto na frente, não precisa nem falar. A velha já sabe o que eu gosto. — Tá tudo certo, dona Alzira? — encostei no balcão, puxando o boné um pouco pra trás. — Tudo indo, patrão — ela sorriu, entregando o copo com 200 ml de café preto, o pão com tudo dentro e o suco de beterraba na sequência. — Mas como sempre, o senhor é o primeiro… Tirando os cria que tão no plantão, né? — É isso, né? Favela não dorme — dei aquele sorriso leve, só no canto da boca. — Movimento tá fraco? — Tá começando agora, né? Mas vai ferver já já — ela deu uma risada cansada. — Licença, que vou ali dentro rapidinho. Sentei na mesa de costume, canto da lanchonete com visão da entrada. Dei a primeira mordida no pão, café na sequência, e antes mesmo de conseguir mastigar direito, escuto a voz do Macabro. — Aê, prepara um pra mim também, dona Alzira! — Macabro mandou puxando a cadeira e sentou de frente pra mim. Chegou com o olhar de quem não dormiu direito, mas nada fora do normal. — E aí, tá tudo de boa? — perguntei, mastigando ainda. — Na paz, mano. Tirando umas parada aí, tá suave. — Qual é da moradora nova? Vi uns falatório. Macabro bufou, se ajeitando na cadeira. — Ah, mano… É só uma mina que não tinha pra onde correr, tá ligado? Chegou com umas duas bolsas, olhar perdido, assustada. Só queria um canto pra dormir. Mas aí veio aquele papinho do Perü e do Boquinha, enchendo o saco como se ela fosse ameaça. Soltei um risinho pelo nariz, tomei um gole do café e balancei a cabeça. — Também achei estranho... Cês já liberaram tanta gente subir e descer esse morro, justo hoje cês foram cobrar logo cedo... logo hoje que eu tô sem paciência. Tenho que resolver aquele BO lá e não dá pra mandar qualquer um… tamo falando da máfia russa, irmão. Não é qualquer trampo. Macabro balançou a cabeça, comendo devagar. — Aí cê vai sozinho? Ou quer que eu vá contigo? — Não, vou levar o Boquinha. Sei que o Toddynho e o Esquerda vão tá lá também, então tá suave. Tu fica na contenção. Qualquer coisa tu resolve por aqui e depois me dá o papo. Finalizamos o café em silêncio. Só os barulhos da lanchonete e da quebrada acordando. Macabro terminou de tomar o suco e levantou. — Vou meter o pé também. Preciso passar no campo de concentração antes de subir pra boca. — Vai com Deus, cria — bati na mão dele com força. Subi na moto e fui direto pra boca. Quando parei, vi logo a Gleice encostada no beco, vestida como se tivesse indo pro baile. Short mínimo, top colado, salto alto, barriga de fora. Quase nua. — Que que tu tá fazendo aqui, pørra? Ela deu uma risada safadä e encostou no meu tanque. — Vim te dar o café da manhã... Soltei uma gargalhada daquelas irônica que ecoa no beco. — Já comi, tô de barriga cheia. — Dei o papo e ela se inclinou mais perto, a boca quase no meu ouvido. — Chega muito perto não. — Falo já com a peça na mão. — Mas eu não tô... tô com fome, e tô precisando de leite... Me afastei com a cara fechada. — Püta que pariu, tu ta pedindo vara logo cedo, pørra... Continua....
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