Pré-visualização gratuita PRÓLOGO
O som ecoou pelo vasto quarto de Rebecca Moretti, arrancando-a do sono com um sobressalto. Um choro estridente atravessava as paredes decoradas com papéis de seda franceses. Ela se ergueu, afastando os lençóis de algodão egípcio com pressa, e alcançou o robe de cetim vinho pendurado em um cabide dourado ao lado da cama. Ajeitou os cabelos castanhos desalinhados, prendendo algumas mechas atrás da orelha, enquanto o som insistente da filha guiava seus passos.
Descalça, Rebecca atravessou o corredor extenso e silencioso, onde o eco de seus passos parecia sussurrar segredos de vidas passadas. O Palácio Acireale era imenso, um labirinto de luxo e história, com cada centímetro ostentando a grandiosidade da família Moretti. Criados surgiam de portas laterais, inclinando levemente a cabeça em respeito.
— Signura Moretti — diziam em tom polido, e Rebecca apenas acenava com um gesto breve.
Finalmente, ela alcançou o quarto infantil, uma visão de cores suaves e detalhes minuciosamente escolhidos. O teto abobadado exibia um mural de anjos brincando entre as nuvens, enquanto o lustre de cristal projetava um brilho difuso sobre os móveis brancos e dourados. No centro do cômodo, Anna, sua adorável filha de cinco anos, soluçava inconsolável nos braços da babá.
— Chi fu ca successi? — perguntou Rebecca, a voz carregada de preocupação enquanto avançava para pegar a menina.
A babá, uma mulher alta e robusta de cabelos escuros presos em um coque apertado, parecia nervosa ao responder:
— Signura Moretti, u giucattolu ca ci piacìa cchiù assai 'a carusa spariu.
Rebecca franziu a testa, preocupada.
— Oh, no! U Conigghiu Piccilu! — murmurou, lembrando-se imediatamente do pequeno coelho de pelúcia com jardineira que Anna carregava para todo lado. O brinquedo era mais que um objeto; era um amuleto de conforto para a menina.
— Vogghiu u Piccilu, mamà! — choramingou Anna, enterrando o rostinho molhado de lágrimas no ombro da mãe.
Rebecca estreitou os olhos para a babá, a voz firme.
— Sicura, tu?
A mulher hesitou, mas apenas acenou com a cabeça, encolhendo-se diante do olhar inquisitivo.
— Ppi ora, si libbera — Rebecca ordenou, dispensando a babá.
Assim que ficaram a sós, ela alisou os cabelos ondulados e castanhos de Anna, afastando as mechas que se grudavam em suas bochechas molhadas.
— Nun ti prioccupari, figghia mè amata — murmurou, beijando a testa da criança com ternura. — Nuàutri u truvarìmu.
Com Anna nos braços, Rebecca deixou o quarto infantil e começou a caminhar pelos vastos corredores do Palácio Acireale. A propriedade era uma obra-prima arquitetônica, um testemunho da riqueza e poder dos Moretti. O pátio interno, coberto por uma plataforma de madeira para eventos, refletia o céu da madrugada, e as luzes suaves destacavam o mármore italiano polido. De um lado, o conservatório exibia um brilho fosco, suas paredes de vidro ocultando orquídeas raras.
Rebecca atravessou o salão principal, onde um imenso lustre dominava o espaço, até alcançar o pequeno pub da propriedade. Lá dentro, Salvatore Moretti, imponente e sempre no controle, estava cercado por seus homens, bebendo uísque e jogando bilhar. O som da bola de marfim ricocheteando nas laterais da mesa preenchia o ambiente abafado.
O choro contínuo de Anna fez Salvatore errar a tacada, algo que raramente acontecia. Ele se virou, irritado, o rosto escurecido.
— Ma chi minchia, picchì sta carusa sta chiangennu?
Rebecca se aproximou, balançando a filha para tentar acalmá-la.
— O brinquedo dela sumiu — explicou, tentando esconder sua tensão.
— Dê outro para ela — Salvatore disse, jogando o taco sobre a mesa de bilhar e acenando para seus homens enquanto se afastava. — Ela tem tantos.
— Mas esse era o Conigghiu Piccilu com Jardineira — Rebecca insistiu, seguindo-o com Anna ainda no colo. — O que você comprou quando ela nasceu. Não se lembra?
Ele parou, passando a mão pelo rosto, irritado, antes de resmungar:
— Ah, claro, claro que me lembro, mas esse brinquedo é para meninos.
Rebecca respirou fundo, tentando controlar a irritação.
— O coelho é unissex. E Anna é apegada a ele.
Sem responder, Salvatore entrou na sala de jantar, onde a mesa já estava posta para o café da manhã. Funcionários em uniforme impecável moviam-se discretamente, ajustando os detalhes. Ele se sentou à cabeceira e começou a se servir, sem olhar para Rebecca.
— Sem dúvida está em algum lugar — disse ele casualmente, cortando uma fatia de pão rústico.
— Ninguém encontrou — Rebecca insistiu, enquanto se acomodava com Anna em um dos assentos laterais.
Salvatore ergueu os olhos para ela, mastigando devagar.
— E o que você quer que eu faça?
— Não quero te preocupar com isso — Rebecca respondeu, abaixando o olhar. — Mas talvez eu deva ir até a loja onde você o comprou e buscar outro.
— Missão impossível — Salvatore respondeu, limpando os lábios com um guardanapo. — Nem lembro onde comprei. Isso foi há cinco anos.
Rebecca inclinou-se ligeiramente para frente, determinada.
— Eu lembro. — Sua voz soou firme, mas não desafiadora. — Foi na loja da Via Etnea, perto da Piazza Duomo.
Ele ergueu uma sobrancelha, interessado.
— É mesmo?
— Sim — ela respondeu com um sorriso leve. — Foi um momento especial para nós. Foi o primeiro brinquedo que você comprou para nossa filha, e me fez sentir como se eu fosse a mulher mais sortuda desse mundo. Aliás, eu até já encomendei o coelho, só falta retirar.
Ela deslizou a mão pela mesa, tocando levemente a dele, em um gesto que misturava apelo e nostalgia. Salvatore observou o movimento e, pela primeira vez naquela manhã, sorriu.
— Bom saber disso — ele murmurou, continuando a comer.
Rebecca aproveitou a oportunidade.
— Então, está tudo bem se eu for até a loja com Anna?
Ele deu de ombros, terminando de mastigar.
— Se esse é o único jeito.
Rebecca virou-se para Anna, que já se acalmava no colo, e sussurrou com um sorriso:
— Viri, amuri miu, ni pigghiamu u tò Conigghiu Piccilu arretu.
Eles continuaram o café da manhã. Rebecca ajudava Anna, distraindo-a com frutas cortadas em pedaços pequenos, enquanto Salvatore analisava algo em seu celular, provavelmente relacionado aos negócios. Era uma típica manhã em família. Mas a diferença era que essa era a manhã da família do Capo di tutti capi da Cosa Nostra, Don Salvatore Moretti.
Os negócios liderados por Salvatore iam muito além de Catania, estendendo-se por toda a Sicília e também pelos Estados Unidos. Ele comandava uma rede de atividades criminosas que incluía tráfico de drogas — especialmente cocaína e heroína — em parceria com outros cartéis; extorsão e proteção, com proprietários de negócios coagidos a pagar por segurança contra danos que, ironicamente, vinham da própria máfia; lavagem de dinheiro usando negócios legítimos como fachada; contrabando de armas, cigarros e bens falsificados; controle de jogos de azar ilegais; tráfico humano; fraudes financeiras; e até mesmo a construção civil, onde contratos fraudulentos e materiais de baixa qualidade eram comuns.
Era um império baseado na corrupção e no suborno, sustentado pelo medo e pela violência. Homicídios por encomenda, controle de sindicatos e exploração imobiliária também estavam no centro da operação. Rebecca sabia que muitas pessoas se perguntavam se ela tinha conhecimento de tudo isso quando conheceu Salvatore. A resposta era simples: sim.
Ela olhou para o homem sentado à cabeceira da mesa. Seus olhos estavam fixos no celular, um brilho atento denunciando o envolvimento em algo importante. Sim, ela sabia exatamente quem ele era no dia em que o viu pela primeira vez. Foi na virada de ano, na Piazza IX Aprile, em Taormina. O que ela não esperava era que ele, na época apenas o filho de Tommaso Moretti, o Don da Cosa Nostra, se interessasse por ela.
Rebecca ainda se lembrava da atmosfera da noite: a praça iluminada, as músicas dos DJs ecoando, e ela rindo com suas amigas. Sempre pensara que mafiosos tinham festas exclusivas, mas Salvatore se mostrou diferente naquela noite. Talvez isso a tenha conquistado naquela época. Naquela época.
Seus pensamentos foram interrompidos por Salvatore, que deixou o celular de lado com um suspiro audível.
— O que foi? — perguntou Rebecca, tentando esconder o nervosismo.
— Nada — ele respondeu, a voz carregada de irritação contida. — Só estou ansioso por notícias de Jake Amorielle.
Rebecca franziu o cenho.
— Jake Amorielle? — repetiu.
— Sim. Ele garantiu que a Cosa Nostra entraria em terras brasileiras logo.
— E você confia nele? — Rebecca perguntou, com um tom que ela tentou suavizar.
Salvatore ergueu uma sobrancelha.
— Preciso confiar. Jake é o novo Senhor da Guerra. Quem melhor do que ele para mexer os peões? Será benéfico para todos: os Moretti, os Amorielle, os Gattone, a Cosa Nostra.
Rebecca serviu um copo de suco de laranja para si mesma e ponderou em voz alta:
— Talvez ele esteja fazendo mais pelos interesses próprios do que pelos seus.
Salvatore balançou a cabeça, irritado.
— Jake está fazendo isso porque eu sou o Capo di tutti capi. Ele não se atreveria a se voltar contra mim.
Rebecca assentiu lentamente, mas sua preocupação não desapareceu.
— Ainda assim… Brasil?
— O que tem? — Salvatore perguntou, a voz mais dura.
Rebecca hesitou antes de continuar:
— É um território diferente. Quero dizer, os brasileiros certamente têm suas próprias organizações criminosas. Entrar agora, como peixe pequeno, seria arriscado. Sem dúvida, essas organizações se uniriam para eliminá-los antes que vocês se estabelecessem. Sem contar a Interpol e o tratado entre Brasil e Itália. Eles podem extraditá-los. Parece muito risco para pouco lucro.
A sala de jantar mergulhou em silêncio. Salvatore e seus homens a encararam. O olhar de Salvatore era especialmente perigoso, e Rebecca notou a veia saltada em seu pescoço. Ela sabia que havia ultrapassado os limites.
Então, Salvatore começou a rir. A risada alta ecoou na sala, sendo acompanhada por seus homens. Rebecca forçou um sorriso nervoso, mas não conseguiu relaxar. Salvatore bateu na mesa de repente, perto dela, fazendo-a se sobressaltar.
— Estão vendo? — ele disse para os homens. — É por isso que as mulheres não são chefes da família. Elas são cheias de “mimimi”, frescurinhas e medos. Se dependesse delas, a Cosa Nostra estaria só aqui em Catania.
Os homens continuaram rindo enquanto Salvatore pegava a mão dela. Sua expressão tornou-se subitamente séria ao levar a mão dela aos lábios e beijá-la levemente.
— Você tem sorte de me ter, amore mio. Você não precisa se preocupar com nada disso. Eu cuido dos negócios.
— Eu sei. — respondeu ela, tentando manter a calma. — Só quis dar minha opinião.
O aperto dele ficou mais firme. Seus olhos encontraram os dela, agora sérios e intimidadores.
— Foi uma opinião que eu não pedi. — Ele pressionou ainda mais, fazendo a dor disparar pela mão dela.
A dor começava a irradiar pela mão, mas ela não ousava reclamar.
— Sinto muito. — murmurou, baixando os olhos.
Ele apertou ainda mais, e ela sufocou um gemido de dor. Salvatore inclinou-se levemente para frente, sua voz agora um sussurro afiado.
— É bom mesmo sentir.
Rebecca assentiu, sentindo a pressão aumentar na mão dele.
— Claro, você está certo. Eu não sei o que estou falando.
Salvatore se inclinou em sua direção, sussurrando:
— É por isso que o homem é o cabeça da mulher, como diz a Bíblia.
Ele apontou para sua própria cabeça, citando:
— "As mulheres sejam submissas ao seu próprio marido, como ao Senhor, porque o marido é o cabeça da mulher." Efésios 5:22-23.
Rebecca reprimiu um riso. Era curioso para ela como Salvatore conhecia cada versículo que lhe convinha, ignorando completamente os mandamentos, especialmente o "não matarás".
Anna começou a chorar novamente, o som cortando o ambiente como uma faca. Ela aproveitou a chance.
— Preciso pegar Anna. — disse.
— Você ainda não entendeu. — Ele pressionou ainda mais, os olhos cravados nos dela.
— Entendi sim, — murmurou, segurando as lágrimas. — Por favor, deixe-me pegar nossa filha.
Ele hesitou, os olhos fixos nos dela, antes de finalmente soltar sua mão com um movimento brusco.
— Leve a menina daqui. Ela está insuportável com esse choro.
Ela se levantou, segurando Anna contra o peito, fazendo o melhor para não demonstrar a dor que latejava na mão. Deu um passo em direção à porta quando ouviu a voz de Salvatore novamente.
— Sabe com o que você devia se preocupar? — ele perguntou, a voz carregada de sarcasmo.
— Com o quê? — respondeu, sem se virar, mantendo o tom neutro enquanto segurava as lágrimas que ameaçavam cair.
— Em ligar para a família Falcone e finalizar os preparativos. Você sabe que eles estão ansiosos esperando sua ligação.
Ela apertou Anna contra o peito, respondendo com uma voz quase inaudível:
— Depois farei isso.
— Hoje. — ele disse, o tom casual novamente, como se nada tivesse acontecido.
Sem olhar para trás, ela caminhou em direção ao quarto de Anna, o coração pesado e as lágrimas finalmente escorrendo. Atrás dela, a risada de Salvatore e de seus homens ainda ecoava pelo salão, uma lembrança c***l de quem ele realmente era. O homem que, com um gesto, podia decidir o destino de qualquer um que ousasse atravessar seu caminho.
***
Rebecca ajeitou o laço no vestido florido de Anna, os olhos brilhando de ternura enquanto penteava os longos cabelos castanhos da filha. Anna, sentada com as perninhas balançando, olhou-se no espelho e começou a cantarolar com sua vozinha doce:
— Ciuri, ciuri, ciuri di primavera,
cu stu vestitu pari 'na sincera!
Rebecca sentiu uma onda morna no peito. Sorriu. A canção, uma das mais antigas da Sicília, era também uma das favoritas de sua mãe. Ela se abaixou, olhando a filha nos olhos enquanto cantava com ela:
— Ciuri, ciuri, ciuri di lu me cori,
tu si la stidda, tu si lu me amuri.
Rebecca Moretti prendeu o último botão das costas do vestido florido de sua filha e se afastou um passo para admirar a pequena. Anna rodopiou no centro do quarto, a barra da saia levantando como pétalas ao vento, enquanto continuavam a canção improvisada:
— Ciuri, ciuri, cantamu senza paura,
comu l’aceddi quannu spunta l’ura.
Rebecca deu um beijo na testa de Anna, segurando-a pelos ombros.
— Você é a minha flor, amore mio.” — sussurrou com um sorriso emocionado.
Depois de ajeitar uma presilha de flor no cabelo da menina, Rebecca levantou-se, passou batom com um toque leve e pegou a bolsa. Caminharam de mãos dadas até o andar de baixo, os saltos de Rebecca ecoando no mármore italiano. Quando chegaram ao hall, a imagem de Salvatore fumando um charuto, rodeado por seus homens e envolto numa nuvem de fumaça, os paralisou por um instante.
Ele se virou ao som dos passos, os olhos escuros cravando-se em Rebecca dos pés à cabeça. Um sorriso lento surgiu em seu rosto.
— Pronta?
Rebecca assentiu, firme.
— Sim.
Salvatore virou-se para um dos capangas.
— Mattia, Gabriele, Riccardo e Andrea vão com elas até a Via Etnea, perto da Piazza Duomo.
Rebecca hesitou, a mão ainda entrelaçada com a da filha.
— Salvatore, quatro homens pra comprar um coelho? Isso é um exagero...
Os olhos do marido brilharam perigosamente, mas sua voz manteve-se calma.
— Exagero? Você e Anna são meu maior tesouro. Não é exagero, é proteção.
Ela sorriu, tentando manter o tom leve.
— Mesmo assim, é só a retirada de um coelho. Não precisa tanto alarde.
Num movimento rápido, ele a puxou pela cintura, colando seu corpo ao dele. Rebecca quase tropeçou, mas segurou firme em seu paletó.
— Espero que sim — murmurou ele, o hálito carregado de fumaça e poder.
Ela brincou com a lapela do terno impecável dele, o toque leve, quase provocativo.
— Vai ser tão rápido que você nem vai sentir nossa falta. E, convenhamos, quatro homens chamam atenção demais.
Salvatore analisou-a por um instante, depois tragou profundamente o charuto.
— Tudo bem. Vai só o Mattia.
Rebecca soltou o ar aliviada.
— Obrigada.
— Como quiser — respondeu Salvatore, erguendo o queixo para Mattia. — Vai com elas. E não demorem.
Ele se abaixou para pegar Anna no colo e cobri-la de beijos, fazendo a menina gargalhar.
— Já estou com saudades, picciridda mia.
— Também tô, papai — respondeu Anna entre risos.
Rebecca fez um gesto com a mão.
— Vamos, amore, estamos atrasadas.
Salvatore ergueu uma sobrancelha, desconfiado.
— Atrasadas? Pra retirar um coelho?
— Você não tem ideia de como essa loja ficou famosa nos últimos anos. Quase achei que não conseguiria encomendar.
Ele tragou novamente, desconfiado.
— E por que não pediu pra entregarem aqui?
— Porque eu quis buscar. Aproveitar para respirar um pouco, passear com a Anna. A gente vive trancada aqui.
— Isso é pra segurança de vocês. Pensando bem, talvez seja melhor o Mattia ir sozinho.
— De jeito nenhum! — cortou Rebecca, mais firme. — Além do coelho, vou pegar um vestido que deixei em uma loja faz meses. Pedi mil vezes para você mandar alguém buscar e até hoje nada. Se depender de vocês, esse coelho vira história igual o vestido. Aí eu reclamo, você diz que é assunto de mulher, e pronto — ela deu de ombros. — Ciclo vicioso, lembra?
Salvatore suspirou.
— Tem razão.
Rebecca se inclinou, beijou-o nos lábios e sussurrou:
— Volto logo.
Passou por ele, puxando Anna pela mão. Salvatore ficou parado, observando as duas se afastarem. Anna olhou para trás e acenou. Ele retribuiu com um meio sorriso e um gesto com a mão livre.
No lado de fora, Calogero os esperava ao lado da Lamborghini Urus preta. Rebecca desceu com elegância a escadaria de pedra, o vento leve balançando os cabelos recém-escovados. Calogero abriu a porta para ela e Anna, acenando respeitosamente.
— Signora Moretti.
— Calogero — respondeu com um sorriso.
Mattia entrou no banco da frente. Calogero tomou seu lugar ao volante e, em segundos, estavam a caminho da Via Etnea.
Rebecca tirou os óculos escuros e soltou um suspiro profundo quando finalmente cruzaram os limites da propriedade. Pela primeira vez em dias, sentia-se minimamente livre. Anna encostou-se no ombro dela e perguntou baixinho:
— Mamma… será que meu coelho novo vai ser bonito?
— Vai sim, tesoro. Vai ser o coelho de pelúcia mais lindo da cidade.
Rebecca olhou pela janela, tentando ignorar o aperto no peito. Aquela saída era simples. Um brinquedo. Um gesto de amor. Mas naquela vida, nada era só o que parecia.
E ela sabia: tudo o que fazia, até mesmo comprar um coelho de pelúcia, tinha que ser calculado.
Com um olhar firme, Rebecca sussurrou para si mesma:
— Só mais um passo.
***
Rebecca observava a cidade se desenhar pela janela do carro enquanto a Lamborghini deslizava pelas ruas estreitas e agitadas de Catânia. Os prédios antigos passavam em contraste com os novos empreendimentos financiados por dinheiro sujo — dinheiro que, ela sabia, sustentava o luxo onde sua filha crescia. Anna estava encantada com os movimentos da cidade, o rosto colado no vidro, os olhos brilhando de empolgação.
Mattia mantinha o olhar atento ao trânsito, mas seus olhos varriam frequentemente os espelhos retrovisores. Rebecca percebeu. Ele não era apenas um guarda-costas; era um cão de guarda treinado, um soldado que sabia que a cidade podia engolir qualquer um, até mesmo algum m****o da família do Capo di tutti capi.
Rebecca sorriu com a ironia. O mundo ao redor dela havia perdido a inocência há muito tempo. Ainda assim, naquele momento, cantarolando com Anna, ela tentou agarrar o que restava de normalidade. Era como segurar água entre os dedos, mas ela precisava tentar. Pela filha. Pela mulher que um dia fora.
A Urus finalmente estacionou. Calogero desceu, abriu a porta, e Rebecca desceu com elegância. Os saltos dela ressoaram pela calçada. Ela ajeitou os cabelos com graça antes de soltar Anna, que pulou com entusiasmo, enquanto Mattia se colocava diante das duas, sempre atento.
— Está tudo bem, Mattia — ela disse, tentando aliviar a tensão que pairava no ar. — Só vamos buscar um coelho.
— Com todo o respeito, Signora — ele respondeu, sem desviar os olhos — ninguém busca só um coelho de pelúcia em Catânia, ainda mais sendo esposa de Salvatore Moretti.
— Mamma, posso escolher mais um coelho?
— Pode, amore mio, mas só se prometer que vai cuidar dele.
A loja de brinquedos infantis era charmosa, com vitrines decoradas com flores e uma placa em madeira rústica que dizia “Bottega degli Animali Felici”. Rebecca empurrou a porta de vidro, e um sininho tocou, anunciando sua chegada. Uma mulher de meia-idade, com avental azul e olhos bondosos, reconheceu Rebecca imediatamente.
— Signora Moretti, que prazer. O seu Conigghiu Piccilu com Jardineira está à espera — disse a vendedora, sorrindo. — Mas parece que a senhorita já está escolhendo outro...
Anna estava encantada com um coelhinho branco com olhos vermelhos. Rebecca se aproximou e o pegou nos braços, sentindo a maciez da pelúcia.
— É este?
Anna assentiu, os olhos suplicantes.
— Então é esse — disse Rebecca, sorrindo, entregando o coelho à filha e voltando-se para a vendedora. — Quero esse também, além do reservado.
Enquanto pagava e os funcionários embalavam ambos os coelhos em caixinhas apropriadas, Rebecca percebeu Mattia ainda parado na porta, tenso como uma mola prestes a se soltar.
— Relaxa, Mattia — ela disse em voz baixa, quando passou por ele com Anna. — A única coisa que vai nos atacar hoje é a fofura.
Mas o que Rebecca não viu foi o olhar que Mattia lançou ao outro lado da rua. Um homem num café observava a cena com atenção. O tipo de atenção que não era casual.
De volta à SUV, Calogero ligou o carro e seguiu o trajeto que Rebecca havia indicado. Porém, ela não queria voltar para casa imediatamente. Não ainda. Enquanto ajudava Anna a desembalar os coelhos, Rebecca perguntou:
— Calogero, você pode fazer um desvio pela Via Antonino di Sangiuliano?
Mattia virou-se imediatamente.
— Signora, Salvatore não mencionou nada sobre isso.
— Mencionei agora. E é só um desvio. Preciso passar em uma loja, a que falei mais com Salvatore, para pegar o meu vestido que vocês não tiveram a competência de vir buscar. — disse ela, com firmeza enquanto segurava o coelho branco escolhido pela filha.
O capanga hesitou, mas não respondeu. Calogero também não. Apenas ajustou o percurso, e Rebecca recostou-se, enquanto via a filha entretida com o Conigghiu Piccilu com Jardineira, sentindo o peso das decisões pequenas — que, naquela vida, pareciam sempre grandes demais. Era nisso que ela pensava quando seu celular vibrou.
Salvatore.
Ela hesitou antes de atender.
— Já pegamos o coelho da Anna, agora estamos indo até a loja pegar o meu vestido — disse antes que ele perguntasse qualquer coisa.
Do outro lado da linha, ele ficou em silêncio por alguns segundos.
— Ainda bem — respondeu, a voz carregada de algo que Rebecca não soube decifrar de imediato. — A loja de vestido fica na Antonino di Sangiuliano, não fica?
Rebecca congelou. O silêncio dela respondeu por si.
— Não se preocupe — continuou ele. — Eu pedi para um amigo passar por lá e ver se deu tudo certo com o coelho e ele me avisou que vocês mudaram a rota. Então, ele viu vocês entrando na loja de vestido. — E então, com um tom mais leve: — Se você for prová-lo, me envia uma foto para ver se ficou linda?
— Como sempre — ela respondeu, forçando um sorriso que ele não veria, mas talvez percebesse na ausência de entusiasmo.
— Está bem. Nos vemos em casa — disse ele, e desligou.
Rebecca guardou o celular e respirou fundo antes de e encarou seu reflexo no espelho retrovisor. Sabia que estava sendo vigiada. Sempre estivera. Era o preço de ser casada com Salvatore Moretti.
***
A loja de vestidos ficava numa esquina charmosa, rodeada por jasmim e madressilva, as flores derramando-se pelas grades de ferro forjado que emolduravam a fachada. A placa em dourado delicadamente entalhada dizia Maison di Grazia. Calogero permaneceu no carro, atento, com as mãos sobre o volante, os olhos varrendo a rua. Mattia desceu primeiro, abrindo a porta do passageiro com rapidez.
Rebecca desceu com graça estudada, o salto ecoando suave no calçamento, enquanto ajudava Anna a sair. A pequena segurava Conigghiu Piccilu com força — o coelho de pelúcia vestindo uma jardineira azul. O outro coelho, o branco , havia ficado no banco de trás, esquecido por ora.
— Fique com Calogero — disse Rebecca a Mattia, ajeitando os óculos escuros no rosto. — Não vou demorar. — Mas, Signora...
— É uma ordem. — Ela o cortou, firme. — Não vou demorar. Só vim buscar o vestido.
Mattia hesitou, os olhos escurecendo com desconfiança.
— Mesmo assim... eu vou entrar. São as ordens de Don Salvatore.
Rebecca suspirou, sem discutir. Sabia que era inútil quando Mattia recebia uma ordem de Salvatore . Ele a seguiria até o inferno se preciso fosse — e, de certa forma, já estavam bem perto.
As atendentes reconheceram-na de imediato. Uma delas, jovem e loira, correu a atendê-la.
— Signora Moretti! O vestido está pronto, arrumamos os ajustes que pediu, mas precisamos que a senhora prove para garantir que está tudo perfeito.
— Ótimo. Vou experimentar, sim — respondeu Rebecca, com um sorriso polido.
Ela segurou a mão de Anna, que agora estava distraída com o coelho, e caminhou em direção à parte interna da loja, onde ficavam os provadores. As luzes eram suaves, o perfume no ar era de lírios e alfazema. Mattia tentou seguir, mas foi barrado pela mesma atendente.
— Me desculpe, senhor. Homens não podem entrar nessa área.
— Sou segurança da Signora Moretti — ele respondeu, tentando passar.
— Ainda assim, continua sendo homem. — O tom da jovem era cortês, mas firme.
Rebecca se virou, lançando um olhar de alerta.
— Mattia, espere aí. Eu já volto.
Ele hesitou, mas acenou com a cabeça.
— Tudo bem.
A atendente lhe entregou um cartão branco.
— Provador oito.
Rebecca pegou o cartão e guiou Anna pelo corredor revestido de cortinas de veludo e espelhos emoldurados em dourado antigo. Parou em frente ao provador indicado, olhou para os dois lados, então entrou e fechou a porta. O silêncio ali dentro era acolhedor, abafado. Apenas a respiração dela e de Anna preenchia o ar.
Sentou a filha sobre o pequeno puff rosa no canto.
— Fique bem quietinha e faça tudo que eu pedir. Entendido?
— Tudo bem, mama.
Rebecca se virou para o cabide com a capa preta pendurada. Abriu o zíper.
Não havia vestido.
No lugar, encontrou uma jaqueta, uma camiseta branca, um boné preto, uma calça jeans e tênis. Para ela. E, cuidadosamente dobrado, um moletom cinza infantil para Anna. No bolso da jaqueta, um bilhete.
Leu com rapidez:
"Use o que está aqui. Veja o que tem no coelho de sua filha."
Rebecca virou-se de volta para Anna. Pegou Conigghiu Piccilu das mãos dela.
— Mãe! — protestou Anna. — Você vai machucar ele!
Ignorando o choro, Rebecca apertou o coelho com força. Sentiu algo duro dentro. Virou o brinquedo de costas, tateando a jardineira.
— Mamãe, não! Vai matar ele!
— Shh... — murmurou.
Enfiou a mão no forro escondido da jardineira e puxou de dentro um celular preto e pequeno, desses de modelo antigo. Ligou. A tela m*l acendeu, e uma chamada entrou. Número desconhecido.
Ela atendeu.
— Alô?
— Você tem cinco minutos. Vista-se e vá para os fundos da loja. Um carro estará esperando.
A chamada foi encerrada.
Sem tempo para hesitar, Rebecca arrancou o vestido de grife que usava e vestiu a camiseta branca, a calça jeans e a jaqueta. Tirou os brincos, o colar, o anel. Disfarçou tudo com o cabelo preso num coque rápido preso com o boné. Depois, vestiu Anna com o moletom, mesmo com a filha reclamando.
— Tá quente, mamãe... Não gosto...
— Já vai melhorar, prometo — disse Rebecca, fechando o zíper do moletom. — Só um pouquinho mais.
Entregou de volta o coelho à filha, guardou o celular e saiu do provador sem olhar para trás.
Mas, ao invés de seguir para a entrada, Rebecca desviou pelo lado oposto. Atravessou discretamente o corredor lateral, contornou o balcão onde as funcionárias se distraíam com risos abafados enquanto arrumavam alguns vestidos e entrou no estoque da loja. Prateleiras de caixas, manequins desmontados, araras com vestidos luxuosos, tudo amontoado. Continuou andando, os passos cada vez mais rápidos.
Anna olhava ao redor, confusa.
— Mãe, pra onde a gente tá indo?
— Fica comigo. Tá tudo bem.
Encontrou uma porta cinza com uma pequena placa: USO EXCLUSIVO – FUNCIONÁRIOS. Forçou a maçaneta. Estava destrancada. Abriu. Do outro lado, o calor da manhã a atingiu em cheio.
No beco dos fundos, um táxi a aguardava. O motorista, de boné e óculos escuros, abriu a porta de trás.
— Rebecca?
Ela assentiu. Entrou com Anna, acomodando a filha no banco, o coelho entre as pernas.
O carro arrancou rápido, sem perguntas.
— Você sabe pra onde estamos indo? — perguntou ela.
O motorista olhou pelo retrovisor, os olhos impassíveis.
— Aeroporto Internacional de Catania-Fontanarossa.
Rebecca assentiu, tentando controlar a respiração. Pegou novamente o coelho de Anna e, dessa vez, abriu a costura da barriguinha dele com as unhas. De lá, retirou dois passaportes falsos — um com o nome Carla Romano, outro com Isabella Romano. Ambos com fotos convincentes. E, dentro ainda, um maço grosso de euros.
— Está certo? — perguntou o motorista.
Rebecca, com o coração acelerado, respondeu sem hesitar:
— Está perfeito.
Olhou para Anna, que agora a observava em silêncio, os olhos grandes e assustados.
Rebecca a puxou para mais perto e sussurrou, com a voz firme:
— Vai ficar tudo bem, meu amor. Eu prometo.