Capítulo 9

1387 Palavras
Giorgio Mancini Idiotas. Era o que eles eram. A discussão dos dois ainda ecoava pelas paredes, mesmo depois de já terem saído do meu escritório. Luca, sempre impulsivo, achando que o mundo era um palco onde ele podia improvisar. Pietro, mais contido, mas tão cego pela própria fúria quanto o irmão. Os dois se engalfinhavam como crianças por um brinquedo que não sabem como usar. Como pode ser tão burros ao ponto de pensar que eu entregaria a Cosa Nostra para um estranho? Sorri sozinho. Um sorriso frio, quase irônico. Os dois não faziam ideia do quanto soavam patéticos discutindo por uma mulher como se ela fosse uma boneca prestes a ser colocada numa prateleira. Uma mulher, aliás, que estava dentro desta casa porque eu permiti. Porque eu tomei as decisões que precisavam ser tomadas, como sempre fiz. Dei mais um gole no conhaque e encostei as costas na poltrona de couro que rangeu sob meu peso e os anos acumulados nas minhas costas. Eles pensam que estou ficando velho. Que talvez tenha amolecido. Idiotas. Se acham que eu daria meu império a um estranho, é porque não entenderam nada do que é ser um Mancini. Se acham que abdicaria do que construí, do sangue que derramei, da honra que sujei com as próprias mãos, por um nome que não carrega nosso sangue... é porque não são homens prontos para liderar p***a nenhuma. O trono não se entrega. Se conquista. E Sofia... bem, Sofia é uma peça nesse jogo muito maior do que ela mesma entende. Mas ela tem o rosto da mãe. O olhar duro por fora, o coração molhe por dentro. Às vezes, quando ela passa por mim com aquele queixo erguido, eu quase consigo ouvir a voz da Clara me dizendo que eu estava indo longe demais. Que eu precisava lembrar quem éramos antes disso tudo. Mas eu já não me lembro mais. Mas sei que minha mulher morreu fiel. Morreu acreditando nesse império. E eu não posso permitir que a filha dela, a menina que ela me fez prometer que cuidaria, seja jogada entre lobos sem dentes. Sofia precisa de alguém que saiba guia-la. Que saiba controla-la e que entenda o que significa tê-la nas mãos. Não posso proteger meu legado para sempre. Mas posso escolher quem vai governar exatamente como eu. Preciso fazer com que meus filhos sigam meus passos. Quero saber até onde estão dispostos a ir para obter o que desejam, por isso joguei um contra o outro, porque na briga pelo poder, o amor, mesmo que de irmãos, não deve os impedir, meu amor não me impediu. O celular vibrou sobre a mesa. O nome na tela me fez franzir o cenho: Silvano. Um dos informantes mais antigos e leais do Norte, alguém que não costuma ligar sem um bom motivo. — Sim? — atendi, direto. — Don Mancini — a voz do outro lado soava quase nervosa, como se estivesse hesitando entre o respeito e o medo. — Desculpe incomodar em horário impróprio, mas acredito que o senhor vai querer saber disso. Fechei a cortina do escritório com um movimento brusco. — Fale. — Minha voz saiu mais baixa do que o usual, mas com o peso de quem carrega um império nas costas. — Um homem... tem circulado pelo submundo do Piemonte, Don. Ninguém sabe exatamente quem é. Não aparece em registros. Usa o nome de Serpente de Nero. Endireitei a postura na cadeira, o nome ecoando como um sussurro envenenado nos corredores da minha mente. Engoli seco. Era como se aquele título trouxesse consigo o prenúncio de uma guerra esquecida. — E o que esse maldito tem a ver comigo? — Ele tem feito contatos silenciosos. Discretos. Mas com nomes importantes. Velhos conhecidos da Cosa Nostra. Alguns que... preferimos acreditar que estavam fora do jogo. — Nomes? — Alguns informantes disseram que ele se reuniu com Nicolò Serretti, o velho contrabandista de armas da Calábria. Houve também menção a Fortunato D’Amico, que tinha jurado lealdade à Mancini anos atrás. E... — houve uma pausa desconfortável — ...o nome de Baldassare Morelli também foi citado. O soco que dei na mesa ecoou como um trovão no escritório. — Esse filho da p**a está revirando os fantasmas da velha guarda. — Meu maxilar travado deixava claro o quanto aquilo me atingia. — Sim, senhor. E... recentemente, pediu informações sobre a senhorita Sofia. A garganta secou por completo. — O quê? — Isso mesmo. Não diretamente. Mas pagou muito caro pra obter registros. Fotos. Relatórios antigos. O tipo de coisa que só alguém com um objetivo muito específico buscaria. Silêncio. — Isso é tudo? — Não, senhor. Ele parece saber demais. Demais sobre o passado de Clara... e sobre os movimentos que levaram à queda da família Valente. Valente. Aquele nome quase desapareceu da minha memória. Quase. — Continue vigiando. Mas não interfira — ordenei, deixando claro que essa era uma caçada minha. — Me avise sobre qualquer novo movimento. E... descubra tudo o que puder sobre esse homem. Tudo. Até a p***a do lugar onde ele toma café. — Sim, senhor. — E os nossos negócios em Cuneo? — Têm sofrido pequenas interferências. Alguém está tentando testar os limites das nossas rotas. Os carregamentos da última semana chegaram atrasados, e dois dos nossos homens desapareceram ontem. Ainda não temos confirmação, mas os boatos... os boatos dizem que alguém está comprando lealdade com ouro. — Ouro é para covardes — rosnei. — Continue investigando. Se mais um homem sumir, vou querer sangue em troca. Está me ouvindo? — Alto e claro, Don. — E o cassino? — Ainda de pé. Mas o gerente... Matteo... parece estar escondendo algo. Os números não fecham. E um dos fornecedores foi visto em reunião com representantes da Família De Santis. — Mateo tem até amanhã para trazer as contas em ordem. Se não fizer isso, você já sabe o destino dele. — A raiva crescia em mim como um vulcão que nunca adormece. — Entendido, Don Mancini. — Algo mais? — Só um comentário, senhor... — a hesitação da voz me fez estreitar os olhos — ...dizem que esse tal Serpente Nero anda com um crucifixo preto pendurado no pescoço. E que ele nunca tira. Nunca. Um crucifixo preto. Meu sangue gelou. — Continue na escuta. Me informe de cada passo. Se ele respirar mais fundo do que o normal, quero saber. — Sim, senhor. Desliguei o telefone com os pensamentos girando. A lembrança do crucifixo de Clara veio com a força de um murro no estômago. E se...? Não. Não podia ser. Desliguei antes de ouvir mais. Fiquei ali, parado, encarando o vazio como se ele pudesse me devolver as respostas. Um fantasma mexendo as peças do tabuleiro. Mexendo em um nome que não se pronuncia há anos. Serpente de Nero. Um nome que me dizia mais do que eu gostaria de admitir. Não era coincidência. Nada nesse jogo é coincidência. Levantei e fui até a estante, puxando um dos livros antigos que escondia a velha caixa de madeira onde guardo segredos demais. Segredos que construíram impérios e enterraram nomes. Abri a tampa e encarei a foto já amarelada de Clara com a filha no colo, o olhar dela tão firme quanto era na juventude. Eu devia tê-la ouvido mais. Talvez eu devesse ter tentado mais, protegê-la da forma certa. Mas, naquela época, eu era um outro homem. Agora... talvez não seja tão diferente assim, posso ter me tornado até pior, foi bom que ela não tenha conhecido essa minha versão. Soltei um longo suspiro e me aproximei da janela. Lá fora, a mansão ainda respirava silêncio entre os gritos abafados. Vi Sofia, ao longe, levando Giovanni até a entrada como se o escoltasse para fora da jaula. Ela parecia a mãe. Não apenas no rosto, mas na maneira como suportava as pressões que ninguém além dela compreendia. Eu sabia que ela não era fraca. Ela só confiava demais em nós, e queria seu lugar na família, mas não era fraca. Mas mesmo os fortes... precisam de aliados. E se meus filhos não forem dignos de lutar por ela, talvez Giovanni se prove útil. Por enquanto. Talvez. Mas, por hora, eu ainda sou o Don. E ninguém, absolutamente ninguém, vai arrancar o legado das minhas mãos sem pagar o preço.
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