Luca Mancini
Caminhei até o centro do escritório, as mãos cerradas, o sangue fervendo tanto que doía manter a respiração minimamente controlada. Pietro, ao meu lado, estava exatamente como sempre: frio por fora, um vulcão por dentro. A mandíbula dele travava tanto que, se apertasse mais um pouco, provavelmente quebrava os próprios dentes.
E lá estava nosso pai.
Sentado naquela maldita poltrona de couro, exatamente no centro do império que ele construiu com sangue, ferro e ossos. A postura impecável, os olhos duros, inquebrantáveis, como se tudo isso fosse só mais um problema burocrático.
O problema é que, dessa vez, não era.
Dessa vez, era sobre ela.
Pietro foi o primeiro a explodir, como sempre.
— O que foi isso, pai? — A voz dele saiu baixa, cortante, feita de veneno e aço. — Você não pode simplesmente aceitar isso.
Eu sorri, sem humor, cruzando os braços, me jogando na poltrona em frente à mesa, mas meu corpo inteiro tremia de tensão.
— Não, sério. — Inclinei o corpo pra frente. — Me explica qual parte da sua cabeça achou uma ideia genial colocar um estranho, um bastardo, dentro da nossa casa. Dentro da nossa família.
Giorgio sustentou o olhar, tão calmo e imóvel que era como se eu tivesse apenas feito um comentário sobre o clima.
— Não é problema de vocês. — A voz dele era uma lâmina, seca e direta. — Não quando vocês não estão fazendo o que deveriam fazer.
Pietro deu um passo. Apertou os punhos. O corpo inteiro dele parecia prestes a quebrar.
— Você não pode permitir isso, pai. — A voz estava tão rouca que parecia saída de um peito rasgado. — Você tá colocando um estranho dentro da nossa família. Tá dando ela... para o filho de outra família.
Senti o estômago revirar só de ouvir isso em voz alta.
Pisquei forte, balancei a cabeça, e, quando voltei a olhar para ele, o sangue já latejava nas têmporas.
— Isso não faz o menor sentido. — Minha voz subiu, e eu não me importei. — Você não pode estar falando sério. Não pode. Porque, se isso for sério, então... — Soltei uma risada amarga. — Então eu começo a achar que você está velho demais para isso aqui.
Giorgio soltou o corpo na poltrona, cruzou as pernas, apoiou os cotovelos nos braços da cadeira e juntou as mãos. Observou nós dois como quem observa dois ratos brigando por migalhas.
E foi aí que ele jogou a bomba. Sem alterar o tom. Sem piscar.
— Se vocês dois... — Ele olhou primeiro para mim. Depois pra Pietro. —... não são capazes de conquistar uma única mulher... me expliquem, então. Como diabos vocês acham que vão comandar a máfia?
O silêncio que se fez foi tão pesado que parecia que o teto inteiro da mansão tinha desabado sobre nós.
Por um segundo, eu travei. Nem respirei. Mas foi só um segundo.
Levantei tão rápido que a cadeira escorregou para trás, batendo no tapete com força.
— Você está brincando comigo, né? — Minha voz tremia. — Você está falando sério, pai? Quer mesmo jogar isso na nossa cara?
Pietro deu um passo. Depois outro. As mãos cerradas, os olhos escuros, transbordando uma mistura de dor e fúria que eu nunca tinha visto nele.
— Isso... isso não é sobre ser capaz ou não. — A voz dele era mais baixa, mais perigosa. — É sobre não permitir. Sobre você não colocar um bastardo aqui dentro. Sobre você não jogar a nossa...
— Ela não é de vocês. — Giorgio cortou, afiado. — E vocês dois sabem disso.
Meu peito doeu. Uma fisgada tão forte que quase achei que fosse parar.
Pietro parou. Travou no lugar. Piscou. O corpo inteiro dele ficou rígido. E o meu... o meu parecia prestes a explodir.
— Não é ainda. — Falei entre os dentes. — Ela não é uma coisa, pai. Não podemos tratar como se fosse apenas um acordo, ou um pedaço de carne. Sofia vive com a gente desde os quinze anos, é parte da família.
— Então me provem. — A voz de Giorgio subiu, finalmente. E quando ele fala assim... ninguém respira. — Me provem que podem. Me provem que ela vale mais. Que vocês são capazes. Que vocês não são dois moleques mimados, que querem tudo na mão, mas que não conseguem nem manter uma mulher sob controle.
Bati as mãos na mesa, me inclinando, o rosto quase colado no dele.
— Isso não é um jogo.
Ele sorriu. Frio. Aquele sorriso que só quem matou e enterrou centenas de homens tem.
— Claro que é. — respondeu, calmo, c***l. — Sempre é sobre o jogo de poder, e vence quem souber jogar melhor.
O silêncio que veio depois foi como um soco no estômago.
E então ele jogou o último fósforo no galão de gasolina:
— Vocês sabem qual era o acordo. — A mão dele deslizou sobre a mesa, pegando o anel da famiglia e girando devagar, como quem saboreia cada segundo da tortura. — Quem ficar com ela... herda a máfia.
Meu corpo inteiro congelou e o sangue deixou meu rosto.
Pietro ficou tão imóvel que parecia uma estátua de mármore.
— Não pode brincar com uma coisa dessas. — Minha voz saiu falha.
— Eu nunca falei tão sério. — Giorgio cruzou as mãos novamente, sustentando nossos olhares. — Vocês não têm ideia do que é estar no comando... e, francamente, olhando para vocês agora... — Ele balançou a cabeça, decepcionado. — Começo a achar que talvez Giovanni seja uma escolha melhor.
O barulho que saiu da minha garganta foi algo entre uma risada e um grito.
— Você enlouqueceu. — Passei as mãos pelos cabelos, puxando, quase arrancando. — Você perdeu completamente a p***a do juízo.
Pietro respirou fundo. E, quando falou, a voz dele parecia mais uma faca atravessando metal.
— Isso não fica assim. — Ele apontou para Giorgio. — Você não vai jogar ela nos braços de um babaca qualquer e dar a ele o que é nosso por direito.
Giorgio se inclinou para frente, apoiou os antebraços na mesa, e, pela primeira vez, deixou o controle escorregar só um pouco.
— Então, façam alguma coisa — rosnou. — Porque, até agora, tudo que eu vejo... são dois homens incapazes de segurar o que querem.
O silêncio que se fez era feito de pólvora e não suportamos mais ficar ali.
Nos viramos e saímos do escritório.
Parei no corredor. E Pietro também. Não precisou nenhum acordo pra isso. Era como se nossos corpos já soubessem que essa hora ia chegar, e que, daqui pra frente, não tinha mais volta.
Nossos olhos se encontraram. E eu vi. Juro que vi. Pela primeira vez, o olhar do meu irmão não me reconhecia mais como família.
Ele me olhou como quem olha um rival. Um homem a ser abatido. Um obstáculo no caminho.
A tensão entre nós parecia ganhar vida. Era algo que se podia quase tocar, quase sentir o peso esmagando os ombros, apertando o peito, comprimindo os ossos.
— Você me conhece, Luca. Isso não vai acabar bem.
Cruzei os braços, forçando uma calma que não existia nem no meu DNA, porque o sangue latejava tão forte nas minhas têmporas que parecia querer explodir de dentro para fora.
— É claro que não vai — respondi, inclinado para o lado, deixando a coluna encostar na parede, os olhos fixos nos dele sem piscar. — E, pra ser sincero, eu conto com isso.
Ele avançou um passo. Eu não me movi.
— Você acha... — apertou os dentes, cada músculo da mandíbula pulsando — que vai ser você? Que ela pode te escolher?
Inclinei a cabeça, sorrindo torto, segurando a explosão no peito.
— Eu acho se um dia ela te quis, Pietro, você fez o favor de f***r com tudo. O que é maravilhoso, para mim.
O maxilar dele travou tanto que parecia que ia trincar. As mãos se fecharam, e por um segundo eu achei que ele ia partir par cima de mim.
— Você é patético — cuspiu, sem conseguir controlar mais a voz. — Sempre esse moleque desesperado, implorando por atenção, por aprovação. E agora acha que pode ter alguma chance?
Empurrei o corpo para frente, me afastando da parede, e por Deus, o sorriso morreu na minha boca como se tivesse sido arrancado com faca.
— Engraçado ouvir isso de você — falei, e a voz saiu mais baixa, mais carregada, mais suja. — O homem que passou a vida inteira fingindo que não sente nada, que não quer nada, que não precisa de ninguém... e agora está surtando porque, pela primeira vez, alguém tirou seu brinquedinho.
Pietro apertou os olhos, respirou fundo, mas a respiração dele já saía cortada, tremida, cheia de tudo que ele tentava conter.
— Você não faz ideia do que está se metendo, Luca. Isso aqui... isso aqui não é só sobre ela. É sobre tudo. É sobre o trono. Sobre a nossa família. Sobre o sangue que corre nas nossas veias. Você quer brincar comigo? Então que seja. Mas eu te juro... — ele se inclinou para frente, tão perto que eu podia sentir o cheiro do perfume dele misturado ao cheiro de raiva e ameaça —... quando isso acabar, você vai implorar para nunca ter começado.
Não desviei. Não pisquei. Não dei um passo sequer.
— É isso, então? — soltei, num tom que saiu tão firme que até me surpreendeu. — A partir de agora, somos isso. Dois homens. Correndo na mesma direção. Mas, no caminho, se for preciso... eu te derrubo, Pietro.
O olhar dele não vacilou.
Por alguns segundos, o ar ficou tão pesado que respirar parecia errado. Meu peito subia e descia, as mãos tremiam de tanto segurar o impulso de quebrar ele ali mesmo.
Puxei o ar devagar, ajeitei a gola da jaqueta, e soltei:
— Que vença o melhor.
O silêncio depois disso foi tão absoluto que qualquer barulho no mundo inteiro parecia ter sumido.