Rotina

883 Palavras
Bruna Eu olhava pela janela, o céu azul parecia tão longe de mim… tão inalcançável. Era vasto, limpo, como uma promessa de liberdade que eu nunca soube o que significava de verdade. Parecia uma lousa em branco, cheia de possibilidades, mas, ao mesmo tempo, trazia aquele frio no estômago, um lembrete c***l de tudo que eu nunca tive. As lembranças vinham como facas afiadas. O bunker... escuro, apertado, sem cheiro de vida. Só o mofo, o frio das paredes e aquele silêncio pesado, que parecia gritar o tempo todo. Eu me lembro do cheiro de umidade, da sensação do chão gelado contra a pele, do medo que parecia morar comigo, dia e noite. A p.ior parte era a tela da televisão. Era a única janela que eu tinha pro mundo, mas ela não era minha amiga. Não me libertava, só me lembrava do que eu não podia ter. Eu assistia filmes, desenhos, pessoas sorrindo… e eu? Eu só queria estar lá dentro da tela, queria entrar e fugir dali, ser livre por um segundo, sentir o vento no rosto, o cheiro da rua, qualquer coisa que não fosse o vazio daquele lugar. O sofrimento era constante. Viver ali não era viver, era sobreviver em um espaço que parecia sugar tudo de mim. Eu me lembro de me encolher no canto, abraçando os joelhos, tentando me fazer pequena, quase invisível, esperando o tempo passar, mas o tempo nunca passava. O medo era o meu companheiro mais fiel. Estava em cada canto escuro, em cada barulho que ecoava naquele silêncio c***l. Medo do amanhã, medo do que ele poderia fazer, medo de nunca sair dali, o medo de ser tocada, me fazia vomitar algumas vezes. E, no meio de tudo, eu perguntava: "Por quê, papai?" Por que ele tirou tudo de mim? Por que ele destruiu tudo que eu poderia ter sido? Agora, olhando para o céu, eu pensava em liberdade, mas ela parecia um sonho distante, como uma música esquecida que eu nunca consegui aprender a cantar. Eu queria entrar naquele mundo lá fora, mas o medo ainda me segurava… porque, no fundo, eu não sabia se era forte o bastante para enfrentar tudo isso. A voz de Adelson me tirou daqueles pensamentos, como um puxão de volta para a realidade. — Vem, pequena. Vamos tomar café lá fora, junto com os outros. Você precisa pegar sol. Amanhã, vamos na fazenda, e você pega sol com a Renata na sua piscina. Renata… Ela era a mulher do Grego, que cuidava da fazenda que Adelson tinha comprado. Eu segui para fora, colada nele, me sentindo mais segura ao seu lado. Eu nunca gostei da proximidade dos outros homens, aquilo me incomodava, me deixava tensa, como se a qualquer momento algo pudesse acontecer. Xandy colocou uma bandeja na nossa frente, cheia de frutas, pão fresco e o suco de manga com abacaxi que eu gostava tanto. Dei um aceno de agradecimento, discreto, mas sincero. Adelson, como sempre, tomou um café forte e comeu um pedaço de bolo, simples, direto, do jeito dele. Algumas caminhavam, uma criança pediu uma fruta e eu enteguei e dei um abraço nela, criança era bom. — Vai sair? — perguntei, num fio de voz, sem conseguir esconder o desconforto da ideia de ficar sem ele por perto. — Vou. Não posso te levar hoje, mas trouxe uma caixa de livros novos. E, à noite, levo você na missa. A promessa me acalmou um pouco. — Espero por você fora da igreja , e você vai ver a esposa do padre Jarbas. Ainda era estranho para mim pensar em um padre casado. Eu achava esquisito, diferente do que eu tinha aprendido, mas Adelson me explicou que na igreja oriental era permitido. E Lavínia, a esposa do padre, era minha amiga de verdade. Depois do café, Adelson me levou de volta para casa,.. — Não quer andar um pouco pelo lugar? — perguntou __ É seguro, nenhum homem vai chegar perto de você. — Não… não me sinto confortável. — A resposta saiu baixa, mas verdadeira. Ele não insistiu, só assentiu com aquele jeito calmo de quem entendia mais do que eu conseguia explicar. — Minha irmã vem da Inglaterra passar uns dias… você vai ter companhia, minha pequena. Não gosto de ver você presa aqui, mas logo a quantidade de trabalho vai diminuir, e a gente vai poder passar mais dias na fazenda. Todos os finais de semana, prometo. Vou ensinar você a montar a cavalo e nadar. Antes de sair, ele me deu um beijo no topo da cabeça. Aquele gesto, simples, sempre trazia um conforto estranho, e eu sabia que com ele, eu estava seguro. Assim que ele foi embora, eu me refugiei nos livros que ele sempre trazia. Eram maravilhosos, cheios de histórias que me levavam para longe dali, para um lugar onde o bunker não existia. Naquele dia, comecei a ler Momo e o Senhor do Tempo. Um livro cheio de imagens bonitas, com cores vivas e detalhes que pareciam mágicos. Cada página era um pedaço de liberdade que eu nunca tinha sentido de verdade. Ali, entre as palavras e os desenhos, eu conseguia esquecer um pouco da dor, do medo… e por alguns momentos, era só eu, o livro e a paz que ele me trazia.
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