Capítulo 1. As Sombras de Casa

2693 Palavras
O som da chuva foi a primeira coisa que Elena ouviu. Pingos ritmados batiam no vidro, como dedos insistentes tentando chamar sua atenção. Abriu os olhos devagar. A luz cinzenta do amanhecer invadia o quarto, filtrada pelas cortinas grossas. Por um instante, não soube onde estava. Nem quando. O coração ainda batia acelerado, ecoando o medo do lugar de onde viera — a cela, as correntes, a voz. Mas ao redor havia apenas o quarto de sempre. A cama de ferro. As prateleiras antigas. O relógio parado às três e quarenta e dois. Nada parecia errado. Nada, exceto o fato de estar viva. Levantou-se devagar. Os pés tocaram o assoalho frio, e o ranger da madeira soou alto demais, como se a casa escutasse. Olhou para os pulsos. A pele estava marcada — fina, vermelha, como se algo tivesse apertado ali. As algemas. Elena respirou fundo. “Foi só uma visão”, pensou. Mas a dor era real. Atravessou o quarto. O espelho oval, herdado da bisavó, refletia seu rosto pálido e os olhos fundos. Por um segundo, o reflexo pareceu se mover um pouco fora de sincronia. Elena piscou. O espelho voltou ao normal. Talvez ainda estivesse sonhando. Abriu a porta e saiu para o corredor. O cheiro da casa — madeira velha, incenso e algo levemente metálico — parecia mais intenso do que o normal. As paredes eram cobertas de retratos antigos, todos da família. Os Willon. Rostos sérios, olhos profundos, olhares que pareciam segui-la onde quer que fosse. Desceu as escadas lentamente. Cada degrau rangia como se guardasse lembranças. Do andar de baixo vinha um som familiar: o chiado da chaleira. Alguém estava acordado. Na cozinha, Margaret Willon mexia o chá com movimentos lentos. Os cabelos grisalhos estavam presos em um coque apertado, e o olhar perdido em algum ponto além da janela. Quando ouviu os passos da filha, virou-se. — Dormiu m*l? — perguntou, sem surpresa na voz. Elena hesitou. — Eu… tive uma visão. Margaret pousou a colher sobre o pires. — Outra? — Não como as outras. A mãe observou o rosto da filha, procurando respostas que Elena não sabia dar. O silêncio se estendeu. Apenas o som da chuva preenchia o espaço. Por fim, Margaret disse: — Sente-se. Conte-me. Elena obedeceu. As mãos ainda tremiam. — Eu estava presa. Havia correntes, frio, sangue… — fez uma pausa, tentando organizar as imagens. — E uma mulher. Ela sabia quem eu era. Disse que eu não devia tê-la visto. Margaret ficou imóvel. Nem uma palavra. Mas o leve tremor nos dedos denunciava o medo. Elena percebeu. — Mãe, quem era ela? Margaret desviou o olhar para a janela. Lá fora, a neblina cobria o jardim como um véu espesso. — Às vezes, as visões confundem o passado e o presente — respondeu, escolhendo as palavras com cuidado. — Você precisa descansar. Elena franziu o cenho. — Não foi só uma visão. Eu senti dor. E quando acordei… — estendeu os pulsos. — As marcas estavam aqui. Margaret se aproximou e segurou as mãos da filha. — Existem coisas que não devemos tentar entender, Elena. Ainda não. Os olhos dela tremiam. Havia algo não dito naquela frase. Algo que pesava mais do que o medo. O som de passos no corredor quebrou o silêncio. Henry Willon apareceu na porta, o semblante cansado. — Falando de visões outra vez? Margaret se afastou discretamente. — Ela teve mais uma. Henry suspirou. — Elena, já conversamos sobre isso. Desde a morte da sua tia Sarah, você vem tendo essas… manifestações. Talvez precise de um tempo fora desta casa. Elena o encarou. — Você acha que é tudo imaginação, não é? — Acho que é exaustão. A voz dele era firme, mas o olhar vacilou ao cruzar o da esposa. Algo estava errado. Eles sabiam de algo. Elena se levantou. — Eu não estou louca. Henry deu um passo à frente. — Ninguém disse isso. — Não precisa. — A voz dela saiu baixa, tensa. — Vocês escondem alguma coisa. Desde que a tia desapareceu, esta casa não é mais a mesma. Margaret se virou lentamente. — Sarah fez escolhas perigosas. E pagou por elas. — Que escolhas? — As que quebram o equilíbrio. — A mãe a fitou com seriedade. — O dom não é um brinquedo. Nem uma maldição. É uma responsabilidade. Elena recuou um passo. — O que ela fez? Margaret respirou fundo. — O que você está prestes a fazer se continuar procurando respostas. O silêncio voltou, espesso, quase palpável. A chaleira apitou. Margaret desligou o fogo e virou-se de costas, como se o assunto tivesse terminado. Mas algo, dentro de Elena, sabia que não. As respostas estavam ali, escondidas nas sombras da casa. ****************** O dia passou arrastado. A chuva não cessava. O vento fazia as janelas vibrarem e as velas tremularem nos castiçais. Elena passou horas folheando o velho diário de Sarah, o único objeto que a mãe deixava manter. As páginas eram manchadas, a caligrafia trêmula. Anotações sobre sonhos, símbolos e datas riscadas. E, em várias delas, uma mesma frase: “A água guarda o que os olhos não podem ver.” Elena franziu o cenho. A água. O som. O reflexo. Tudo voltava à visão da cela — o gotejar, o chão molhado, o reflexo do olho na poça escura. Um trovão sacudiu a casa. O diário caiu no chão, aberto em uma nova página. No canto inferior, havia um desenho: o símbolo dos Willon — um círculo cortado por três linhas. Mas ali, um detalhe novo. Um quarto traço. Torto. Como se alguém o tivesse acrescentado às pressas. Elena tocou o papel. A tinta ainda parecia fresca. Mas o diário estava fechado havia anos. Um arrepio percorreu sua nuca. Olhou ao redor. A sala parecia mais escura do que antes. As velas tremiam, embora não houvesse vento. Um estalo soou no andar de cima — madeira se partindo, lenta, pesada. Ela subiu as escadas. Cada passo fazia o som ecoar mais alto. No corredor, as luzes estavam fracas. O relógio continuava parado às três e quarenta e dois. O mesmo horário da cela. Elena parou. O som da casa mudou. O silêncio ficou espesso, como se o ar segurasse a respiração. E então, veio o sussurro. — Elena… A voz era baixa, distante, mas claramente feminina. Vinha do fim do corredor, de trás da porta do antigo quarto de Sarah. Aquele que ninguém mais abria. Elena sentiu o corpo gelar. A mão hesitou sobre a maçaneta. Mas algo dentro dela — talvez o mesmo dom que tanto temia — a empurrou para frente. Girou o trinco. O quarto estava intacto. As cortinas fechadas, o espelho coberto por um lençol, o ar parado. Mas o cheiro… O mesmo da cela. Ferrugem. Sangue. Mofo. Ela entrou. O chão gemeu sob seus pés. O ar parecia vibrar. Quando se aproximou da janela, percebeu algo no vidro — um rastro de água escorrendo por dentro, formando palavras. Três letras apenas. S-A-R. Elena recuou. O coração acelerou. A respiração curta. Virou-se, e algo brilhou no espelho coberto. Puxou o pano. O reflexo devolveu sua imagem — e atrás dela, por um instante, o vulto de uma mulher de preto. Olhos brancos. Sorriso humano demais. Elena girou rapidamente. Nada. O quarto estava vazio. Mas o espelho ainda mostrava a mulher, imóvel, observando. E no reflexo, uma coisa a fez congelar: atrás da mulher, havia alguém segurando uma chave. A mesma da cela. O vidro trincou com um estalo seco. As rachaduras se espalharam como teias. E do meio delas, uma voz sussurrou, grave, quase carinhosa: — Você abriu a porta, Elena. A luz se apagou. O som da chuva cessou. Tudo ficou em silêncio. Até que o relógio, parado há anos, moveu o ponteiro com um clique s***o. Três e quarenta e três. Elena respirou fundo, o corpo tremendo. Sabia que algo havia começado. E que, desta vez, a visão não iria embora. Elena ficou imóvel diante do relógio. O ponteiro se moveu outra vez, com um estalo seco que pareceu ressoar dentro do peito dela. Três e quarenta e quatro. O tempo, que antes parecia suspenso, agora voltava a correr. Mas algo dizia que não era o tempo comum — era o tempo das visões. O ar ficou mais frio. O vidro da janela embaçou lentamente, e atrás do véu de vapor formou-se uma silhueta. De uma mulher, parada do lado de fora. Olhos brancos. Imóvel. Elena piscou e a figura desapareceu. Mas as marcas da mão ficaram no vidro, como se a carne tivesse queimado o gelo. Um estalo veio do espelho quebrado. Os pedaços refletiam ângulos diferentes do quarto, mas um deles mostrava algo que não estava ali — o reflexo de uma porta aberta, mesmo que, na realidade, ela estivesse fechada. Elena se aproximou, fascinada e assustada. Cada passo soava como um aviso. Ao se ajoelhar diante dos cacos, viu dentro do reflexo uma escada descendo, envolta em sombras e neblina. O porão. O reflexo piscou. E por um segundo, Elena viu a si mesma lá embaixo, acorrentada. O mesmo rosto. Os mesmos olhos de medo. Depois, nada. O espelho se apagou. Elena recuou. O corpo tremia. O ar cheirava a metal e fumaça, como se algo antigo tivesse despertado. Olhou de novo o símbolo riscado no diário, ainda sobre o chão — o quarto traço. O símbolo agora parecia pulsar, como se respirasse. Um leve som veio dele, quase inaudível: batimentos. Como um coração. Do corredor, ouviu o som de passos. Pesados. Lentos. Ela virou o rosto, o coração acelerando. — Mãe? — chamou, sem resposta. Os passos pararam diante da porta. Silêncio. O ar pareceu se comprimir. Então, algo bateu — uma pancada seca, forte, que fez o batente tremer. Elena deu um passo atrás. A maçaneta girou lentamente, sem ninguém tocar. A porta rangeu e se abriu alguns centímetros. Nada do outro lado. Apenas o corredor escuro. Mas algo atravessou a f***a — uma corrente de ar fria, úmida, com cheiro de terra e ferro. O mesmo da cela. Elena segurou firme o diário. Desceu o corredor em passos curtos, a respiração entrecortada. As velas piscavam, projetando sombras que pareciam se mover com v*****e própria. No meio do corredor, o retrato de Sarah Willon — o único que Margaret nunca permitia retirar da parede. Elena parou diante dele. O olhar da tia era sereno, mas os olhos… Os olhos estavam diferentes. Não eram mais castanhos. Eram brancos. Vazios. O mesmo olhar da mulher do espelho. Elena recuou. O quadro balançou, os pregos gemeram, e um ruído seco ecoou — algo caindo atrás dela. Virou-se. Um espelho oval jazia no chão, partido em dois. No reflexo, o corredor atrás estava vazio. Mas quando olhou diretamente, viu uma sombra atravessando o fim do corredor, indo na direção da escada. A mesma altura. A mesma postura da mulher de preto. Elena seguiu, o diário apertado contra o peito. A casa parecia viva — os degraus gemendo, o vento sussurrando nomes nas frestas. Quando chegou ao rodapé da escada, o corredor térreo estava escuro. A lareira apagada. O relógio da parede parado novamente. Três e quarenta e dois. — n******e ser… — murmurou. Uma gota caiu do teto. Depois outra. Tic. Tic. Tic. As mesmas gotas do sonho, caindo no mesmo ritmo. Elena ergueu o olhar. No teto, formava-se uma mancha escura. Algo escorria por entre as tábuas. Um líquido espesso, vermelho. Sangue. O estômago revirou. Mas antes que pudesse reagir, uma voz sussurrou atrás dela — tão perto que o ar mexeu em seu cabelo: — Você voltou cedo demais. Elena girou o corpo. Nada. Só o corredor vazio e o eco da própria respiração. Mas a voz havia sido real. Baixa, quase dócil. Feminina. De repente, a lâmpada do teto piscou três vezes. A cada piscada, uma imagem diferente: 1. A sala vazia. 2. Uma mulher de preto parada na porta. 3. A própria Elena, caída no chão, com os olhos abertos e sem cor. A luz apagou. O silêncio que se seguiu era tão denso que ela podia ouvir o próprio sangue pulsando. Um estalo de madeira veio da sala. Elena deu dois passos à frente. A porta estava entreaberta. Empurrou com cuidado. O ar lá dentro estava mais frio. Um cheiro de cera e ferro tomou o ambiente. As velas da lareira estavam acesas. Todas. E ao redor, símbolos desenhados em carvão no chão — o mesmo círculo dos Willon, mas multiplicado, distorcido. No centro, um objeto que Elena reconheceu na hora: o bracelete com o símbolo da família, igual ao que usava no pulso. Mas este estava coberto de sangue seco. Ela se ajoelhou, o coração disparado. — Tia Sarah… o que você fez? A chama das velas aumentou repentinamente. O calor veio forte, quase queimando o rosto dela. E então, no meio da chama, uma voz surgiu — clara, rouca, como vinda de dentro do fogo: — Ela me viu. Elena se ergueu num salto. A chama tremulava, formando o contorno de um rosto. O rosto da mulher de preto. — O que você quer de mim? — gritou. O fogo estalou, lançando faíscas. A voz respondeu: — Não é de você que quero. É do que carrega. Elena olhou para o bracelete. O metal brilhou com intensidade sobrenatural. O símbolo começou a mudar diante dos olhos dela — o quarto traço se abriu, formando um olho. Um olho perfeito, desenhado em fogo. O ar explodiu em luz. Elena caiu para trás. As velas se apagaram. A escuridão voltou. E, no escuro, ela ouviu o som de algo rastejando pelo chão. Devagar. Pesado. Se arrastando em direção a ela. Tentou recuar, mas algo segurou seu tornozelo. Frio. Úmido. Como uma mão. Ela chutou, gritou, e a voz voltou, agora mais próxima, sussurrando bem ao lado de seu ouvido: — Você abriu o olho, Elena. Agora ele também te vê. Elena soltou um grito e puxou a perna com força. Caiu, engatinhou até a porta e correu. O corredor parecia mais longo, infinito. O ar vibrava, as luzes piscavam, as sombras se moviam. A cada passo, vozes murmuravam seu nome — algumas familiares, outras distorcidas. O som da chuva voltou, misturado a risadas longas, distantes. Chegou ao pé da escada. Olhou para cima. Margaret estava lá. De pé, imóvel, o rosto meio oculto pela penumbra. Os olhos dela refletiam a luz fraca das velas, e o tom de voz foi sereno, quase maternal: — Eu te avisei para não abrir a porta. Elena congelou. A voz não parecia dela. Havia um eco por trás — uma segunda voz, a da mulher de preto, falando junto. As duas misturadas, uma só. Elena tentou responder, mas o som não saiu. O corpo inteiro tremia. Margaret desceu um degrau. Depois outro. E outro. Os pés dela deixavam marcas escuras nos degraus de madeira — como se pingasse algo de suas mãos. Elena recuou. — Mãe…? Margaret parou, a sombra cobrindo o rosto. Quando levantou o olhar, os olhos dela não eram mais castanhos. Eram brancos. Vazios. Idênticos aos da mulher da visão. O vento soprou pelas janelas, e todas as portas da casa se fecharam ao mesmo tempo, com estrondos secos. O som ecoou até o teto. O relógio parou de novo. Três e quarenta e dois. A chama das velas reacendeu sozinha. E na parede, a sombra das duas — mãe e filha — se projetou distorcida, unindo-se em uma só figura. A mulher de preto. Elena caiu de joelhos, o corpo sem força, os olhos marejados. Tentou gritar, mas apenas um sussurro escapou. A figura diante dela estendeu a mão, o mesmo gesto da visão. — Você não devia ter me visto. — disse. — Agora, verá tudo. A luz explodiu em branco. O som sumiu. O mundo apagou. Quando Elena abriu os olhos novamente, estava deitada no chão do quarto de Sarah. O diário ao lado, fechado. O relógio na parede marcava três e quarenta e dois. Mas no espelho rachado, a imagem refletida não era mais a dela. Era o rosto de Margaret, olhando de volta — e sorrindo.
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