Prólogo

2047 Palavras
O cheiro de ferrugem queimava as narinas de Elena. O ar era denso, úmido, pesado, como se cada respiração arranhasse por dentro. Ela abriu os olhos com dificuldade. A pálpebra direita inchada pesava, e o sangue seco colava em sua pele. Tudo estava escuro. Só um feixe de luz passava por uma f***a no teto, iluminando poeira suspensa — grãos dourados girando no ar como se o tempo ali tivesse parado. Tentou se mover, mas o corpo doía. Os pulsos ardiam, e ao tentar levantar percebeu o ferro frio das correntes. Presas. Ela estava presa. A corrente tilintou quando tentou puxar mais uma vez, e o som ecoou pela sala vazia. O coração acelerou. Olhou em volta, piscando para se acostumar à escuridão. As paredes eram de concreto úmido, manchadas por mofo e marcas que pareciam arranhões antigos. No canto, um balde enferrujado. Um rato correu perto de sua perna, sumindo em uma rachadura na parede. Elena engoliu em seco. A garganta ardia. A língua tinha gosto metálico, sangue. Tentou lembrar o que havia acontecido. Nada vinha. A mente era uma névoa densa, feita de fragmentos confusos e flashes sem ordem. Rostos que não conseguia reconhecer. Vozes. E sangue. Fechou os olhos e respirou fundo. De repente, um som dentro de sua cabeça. Um estalo. E então, como se algo a puxasse para dentro de um pesadelo, a lembrança veio. Ela estava em casa. Chovia lá fora. A tempestade batia nas janelas e as luzes piscavam. Tinha sentido um peso no ar, uma sensação que conhecia bem. A visão estava vindo. Correu para o quarto e acendeu as velas. A chama tremia. Os olhos ardiam, e ela sentiu o chão girar. A cabeça tombou para frente, e em segundos tudo se apagou. O que veio depois foi um caos. Rostos distorcidos, vozes sobrepostas, como se alguém tivesse misturado várias cenas em uma só. Pessoas gritando. O som de algo se quebrando. E então, um homem dizendo: — O que faremos com ela? A voz ecoou dentro de sua mente. Era familiar, mas impossível de identificar. Elena tentou lembrar de onde conhecia aquele tom, aquele timbre. Mas a lembrança fugia, escorregava, como se sua mente estivesse tentando protegê-la de algo. Outra voz respondeu. Feminina, calma e cortante. — Não me importo. Ela vai se arrepender amargamente de ter cruzado o meu caminho. O som era gélido, quase sem emoção. Elena sentiu um arrepio percorrer o corpo mesmo dentro da lembrança. As imagens tentavam se formar — sombras se movendo, uma lâmina brilhando, algo caindo no chão. Mas antes que pudesse ver o rosto da mulher, a visão se desfez. O corpo inteiro de Elena tremeu. A sensação de frio a trouxe de volta para a cela. Ela abriu os olhos novamente, agora respirando com dificuldade. Alguma coisa pingava do teto. Tic. Tic. Tic. Caiu uma gota no chão, misturando-se com outra mancha escura. O silêncio pesava. Só o som distante do vento passando por frestas quebrava a imobilidade. Elena tentou falar, mas a voz saiu rouca: — Tem alguém aí? Nada respondeu. Apenas o eco fraco de sua própria pergunta voltando das paredes. Por instinto, puxou as correntes mais uma vez. As algemas cederam um pouco, o metal rangeu. Sentiu a pele s*******r e o sangue escorrer pelos pulsos. Ela se encolheu, tentando controlar o pânico. Sabia que precisava pensar, precisava entender. Mas a mente pulsava, as imagens vinham em fragmentos rápidos, como flashes de um filme queimado. Sussurros. Gritos. O som de passos. E uma risada. A risada. Veio alta, clara, como se a mulher da visão estivesse bem ali, ao lado dela. Elena virou a cabeça rapidamente, o coração quase saindo pela boca. Mas não havia ninguém. Só o som do vento e o som do rato voltando. Ela fechou os olhos com força. Tentou respirar fundo, controlar o tremor. Mas sentiu de novo — não um som, mas uma presença. Como se algo a observasse da escuridão. O frio aumentou. Um arrepio subiu pela espinha. E então veio o som metálico. Um estalo. Um trinco girando. A porta de ferro estava sendo destrancada. O som do ferro girando ecoou pela sala, arrastado, pesado, como se o próprio tempo estivesse abrindo caminho. Elena prendeu a respiração. Cada músculo do corpo se enrijeceu. A luz fraca do teto balançou com a vibração do portão. A corrente em seus pulsos gelou. Ela instintivamente recuou até encostar as costas na parede. O concreto estava úmido, frio, e pareceu sugar o pouco de calor que ainda restava nela. A fechadura fez mais um estalo. Depois outro. E então, o som final — um clique seco, definitivo. A porta se abriu lentamente, gemendo. Um feixe de luz invadiu o ambiente, cortando a escuridão. Elena piscou várias vezes, os olhos se adaptando. Tudo parecia distorcido. A visão duplicava as sombras, como se houvesse mais de uma pessoa ali. Uma figura parou no batente. Uma silhueta alta, imóvel. Luz atrás, rosto invisível. Elena tentou falar, mas a garganta falhou. A única coisa que conseguiu foi um som rouco, quase um sussurro: — Quem está aí? Nenhuma resposta. A figura apenas respirava, lenta, profunda. O som era familiar. O ritmo, o modo como o ar saía entre os dentes. Alguém que ela conhecia. Elena apertou as correntes, o metal cortando a pele. Queria recuar mais, mas não havia para onde. O espaço era pequeno, e o ar parecia encolher a cada segundo. A figura deu um passo. Depois outro. Os sapatos fizeram barulho no chão molhado. Ploc. Ploc. Ploc. Elena manteve os olhos fixos na luz atrás da pessoa. Tentava distinguir detalhes — uma sombra de cabelo, uma curva de ombro. Mas tudo parecia se mover, flutuar, como se o ar estivesse vivo. A voz veio por fim. Baixa, controlada. — Você não devia ter saído de casa, Elena. O nome. Ela sentiu o estômago afundar. Aquela voz… Tentou lembrar, mas a mente falhou novamente. Tudo era neblina e dor. — Quem é você? — conseguiu dizer, forçando a voz. A pessoa avançou mais um passo. Agora, parte do rosto apareceu sob a luz. Um contorno que Elena conhecia. Mas havia algo errado — os olhos. Vazios, quase negros. O ar gelou. O corpo de Elena reagiu antes da mente compreender. Ela tentou puxar as correntes com força, o ferro gritou, o som se espalhou. — Fique longe de mim! A figura riu. Baixo. Um riso que começou quase humano e terminou como um eco distorcido, grave, metálico. Soava igual ao riso da mulher de sua visão. Elena sentiu o coração disparar. As lembranças voltaram em ondas curtas: a tempestade, o quarto, as velas, a voz, o sangue. Tudo se sobrepôs — realidade e visão misturadas. A luz piscou. Por um segundo, a figura pareceu se duplicar. Havia duas. Duas silhuetas. Duas vozes. Uma sussurrou perto do ouvido dela: — Você não devia ter me visto. Elena se virou bruscamente. Nada. Apenas o eco da voz. A outra figura ainda estava na porta, imóvel. O medo virou desespero. — O que você quer de mim?! A resposta veio lenta, arrastada: — Você sabe o que quero. Você só não lembra. A cabeça de Elena latejou. Imagens piscavam dentro da mente — uma casa antiga, uma mulher de preto, uma lâmina, alguém caindo no chão. E depois, escuridão. Ela gritou. O som ecoou, devolvido pelas paredes, multiplicado. Gritou de novo, até a voz falhar. A figura não se moveu. Apenas observava. De repente, algo metálico caiu no chão, perto da porta. Um pequeno objeto, que fez um som seco ao bater no concreto. Elena olhou. Parecia uma chave. Mas antes que pudesse reagir, a figura estendeu a mão — e a luz piscou novamente. Tudo ficou escuro. O som da porta batendo fechou o ar. Um estrondo profundo, final. E então, silêncio. Elena ficou imóvel. Só ouvia o próprio coração, acelerado, tentando escapar do peito. O ar parecia mais pesado, mais frio. As sombras dançavam nas paredes, vivas, como se a cela respirasse com ela. A risada voltou, distante, ecoando lá fora. E a voz, a mesma de antes, murmurou algo quase inaudível: — As visões são apenas o começo. Elena fechou os olhos e, pela primeira vez, desejou que fosse uma visão. Mas o gosto de sangue e o ferro nas mãos diziam o contrário. A cela estava mergulhada em um breu quase sólido. Elena continuava imóvel, o corpo tenso, os olhos fixos onde antes estivera a luz. A escuridão agora parecia viva. Respirava. Ou talvez fosse ela quem respirava rápido demais. O coração martelava. A mente tentava organizar os fragmentos — a voz, o riso, a chave caída. A chave. Ela engoliu em seco e começou a tatear o chão com as mãos presas. O ferro raspava contra o concreto. O som era fino e nervoso. O ar cheirava a mofo, ferrugem e sangue. Depois de alguns segundos, sentiu o toque frio de metal. A chave estava ali. Pequena, com dentes tortos, coberta de ferrugem. As correntes eram pesadas, mas antigas. O encaixe era grosso, gasto. Talvez coubesse. Elena respirou fundo. Forçou o corpo para frente e tentou introduzir a chave no cadeado da algema. Os dedos tremiam. Girou. Nada. De novo. Girou outra vez. Um estalo. Fraco, mas real. O metal cedeu. O pulso esquerdo ficou livre. O direito ainda preso. Ela respirou fundo, os olhos marejando. Liberdade parcial, mas era o suficiente. Usando a mão livre, forçou o outro cadeado. O ferro arranhou a pele, mas o sangue ajudou a deslizar. Mais um estalo. Livre. O som ecoou. Elena congelou. Esperou. Silêncio. Devagar, se levantou. As pernas fraquejaram, o corpo inteiro pesava. Cada passo era uma luta. Mas andou. A porta estava trancada de novo. Sem maçaneta, só uma a******a minúscula por onde a luz escapava. Colou o ouvido ali. Nada. Um vento frio atravessou a f***a e tocou seu rosto. Por um instante, sentiu cheiro de terra molhada e madeira queimada. Reconheceu o aroma — o mesmo da casa antiga de sua família. O mesmo cheiro das visões. Elena se afastou lentamente. O chão sob seus pés tremeu. Não um terremoto — algo mais profundo, como se a estrutura viva respirasse. O som cresceu, misturando-se a sussurros. Vários, vindos de todos os lados. Ela tapou os ouvidos. As vozes aumentaram. Sussurravam seu nome, palavras em línguas que não conhecia. Uma frase se repetia, clara: — O tempo acabou. O ar pareceu sumir. As paredes pulsavam, a luz piscava, e de repente o chão desapareceu sob seus pés. Elena caiu. Caiu por um túnel de sombras e sons, como se tivesse sido engolida por suas próprias visões. As vozes se fundiram em gritos. O corpo girava. O sangue latejava nas têmporas. E, por um breve instante, tudo ficou em silêncio. Um campo aberto surgiu diante dela. O céu cor de chumbo. As árvores retorcidas. No meio, uma mulher de preto. Elena tentou se mover, mas estava paralisada. A mulher virou lentamente o rosto. Os olhos eram brancos. O sorriso, humano demais. — Você abriu a porta, Elena. — disse a mulher, a voz ecoando dentro da cabeça dela. — Agora não há volta. O vento soprou forte. A mulher ergueu a mão. No pulso, Elena reconheceu algo que a fez congelar: um bracelete idêntico ao seu, o símbolo dos Willon gravado no metal. O chão tremeu outra vez. A mulher avançou, e o rosto se transformou — de repente, era o de alguém conhecido. Uma lembrança antiga. Familiar. Impossível. Elena gritou e o mundo explodiu em luz. Caiu de novo. O impacto foi seco. A cela voltou. O ar voltou. A dor voltou. Ela abriu os olhos. A luz da f***a piscava, e alguém estava ali, do outro lado da porta. Respiração pesada. Sombra humana. A tranca girou. A porta se abriu devagar, rangendo. Elena, ainda caída, ergueu o olhar. Os olhos dela se arregalaram. O medo virou choque. — Você!! A palavra saiu entre o susto e a descrença. A figura entrou um passo, e a luz revelou o rosto. Elena m*l conseguiu respirar. Não era a mulher de preto. Era alguém que ela amava. Alguém que jamais esperaria ver ali. A porta se fechou atrás. O som do ferro ecoou como o ponto final de uma sentença. Escuridão.
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