Jacaré narrando
Eu já estava na boca desde cedo. Fui resolver umas paradas e receber a mercadoria que tava pra chegar. O Jaguatirica não apareceu por lá hoje; dei folga pra ele curtir com a família. A mina dele pariu o bacuri, e o mano tá sorrindo de orelha a orelha, todo feliz. Olhei o relógio e percebi que já era de tarde. Saí da minha sala, montei na moto e parti pro meu barraco. Assim que entrei, o cheiro do rango da dona Amélia já invadiu meu nariz. Fui até ela e dei um beijo na testa.
— Onde a Valentina tá? — perguntei.
— Ela ainda não acordou, e eu não tive tempo de ir chamar. — Ela respondeu, distraída.
— Deixa comigo, vou lá acordar minha princesa. — Subi direto pro quarto onde ela dormia.
Abri a porta devagar e me aproximei da cama. Sentei na beirada e passei a mão no rosto dela, contemplando sua tranquilidade. Fiquei pensando como seria se eu fosse pai, se tivesse um moleque, meu sangue. Me peguei nesses pensamentos até que ela se mexeu, abrindo os olhos com um sorriso.
— E aí, princesa? — falei.
— Oi, tio... Que horas são? — ela respondeu, ainda manhosa.
— Já tá na hora de acordar, mocinha.
— Deixa eu dormir mais um pouquinho, tio... — Ela fez aquela cara de cachorro pidão que eu nunca resisto.
— Só mais um pouco, hein? — Beijei a testa dela e desci pra avisar a dona Amélia.
— Cadê a Valentina? — ela perguntou.
— Pediu pra dormir mais um pouco e deixei.
— Você vive acostumando ela m*l. Depois, não me obedece!
— Ah, relaxa, dona Amélia, deixa a menina ser criança enquanto pode.
A comida da dona Amélia ficou pronta. Ela foi chamar a Valentina, enquanto eu me sentei na mesa, aguardando. Pouco depois, Valentina desceu, cabelo molhado, sentou do meu lado, e nos servimos. Quando terminei de comer, fui pra sala ligar o ar e tirar um cochilo. Mais tarde, tinha programado uma carne na brasa com os vapores.
Acordei no meio da tarde, fui pagar uma ducha e me arrumei no maior estilo. Passei aquele Malbec pra dar presença. Jaguatirica foi comigo pro mercado, porque as bebidas eram por conta dele.
— p***a, essas merdas de uísque são tudo caro! — ele reclamou, arrependido.
— Para de chorar, mano. Tu nunca banca nada, e quando banca, reclama do preço. — Dei risada da cara dele.
— Ah, mas tu é patrão, né? Por isso não sente o peso no bolso.
Fui terminar de pegar as carnes e deixei ele cuidando dos uísques. Depois, paguei tudo no caixa e levei as sacolas pro carro, esperando Jaguatirica, que veio carregado como se fosse o fim do mundo.
— Tá precisando malhar esses braços de linguiça aí, hein? — falei, tirando sarro.
— Vai se f***, mano. Continua que eu te levo pras ideia. — Ele disse, fingindo ser bravo.
Deixei ele resmungando e seguimos pro morro. Chegando lá, vi um carro suspeito parado na frente do meu barraco. Desci armado, mas ao entrar, percebi que era o coroa do moleque, sentado no sofá.
— Foi m*l aparecer assim, mas precisava de um tempo pra esfriar a cabeça. — disse ele.
— Tranquilo, pode ficar à vontade. — Respondi.
Guardei as sacolas na cozinha e pedi pra dona Amélia temperar as carnes. Avisei que ela podia tirar o dia de folga, porque ia fazer uma social com os manos. Voltei pra sala e já servi uma dose pra mim e pro coroa.
— Aconteceu alguma treta pra você vir pra cá? — perguntei.
— Sim. Benjamim ficou puto porque comprei uma casa na cidade e saí pra dar uma volta. Quis evitar briga.
— Moleque é cabeça dura, né? Depois do que aconteceu, fica difícil lidar com ele.
Conversei um pouco mais com o coroa antes de ir organizar o churrasco. Jaguatirica e Raquel me chamaram.
— Ei, mano, eu e a Raquel queremos te convidar pra ser padrinho do nosso moleque. — Jaguatirica disse, sorrindo.
— É claro que aceito, mano! Vai ser uma honra.
Enquanto eu processava o convite, um barulho de copo quebrando me fez olhar. Era o coroa, já cheio do uísque, cambaleando. Levei ele pro carro, junto com dois manos, e o deixei em casa. Mas antes disso, o moleque dele me olhou com ódio, jogando umas indiretas. Deixei por isso mesmo, mas algo em mim ficou inquieto.
Voltei pro barraco ainda com aquele olhar atravessado na cabeça. Mas a social com os manos continuou até o dia clarear.
Após o amanhecer, o morro ainda respirava resquícios da festa. Copos espalhados, risadas soltas e os caras se despedindo. Encostei na varanda, sentindo o ar fresco do começo da manhã enquanto observava o sol tímido surgindo por trás das casas. Jaguatirica se aproximou com o moleque no colo e Raquel ao lado.
— Aí, mano, valeu por ontem. O moleque tá dizendo que já tá acostumado com a quebrada! — Jaguatirica falou, rindo.
— Tá em casa, né? Qualquer coisa, vocês sabem onde me encontrar.
Quando eles saíram, sentei no sofá e deixei a cabeça recostar no encosto. Apesar do clima leve da festa, algo no olhar daquele moleque da noite anterior não saía da minha mente. Resolvi me levantar, pegar um café e dar uma volta na rua, esfriar a cabeça.
No caminho, cruzei com alguns conhecidos. O clima da boca já estava agitado de novo, os caras comentando que algumas "mercadorias novas" tinham chegado. Não era dia de eu assumir nada, então continuei caminhando. Fui até o alto do morro, onde costumava ficar pra refletir. Dali, dava pra ver toda a cidade. Apesar de tudo, era aquele pedaço do mundo que eu chamava de meu.
Enquanto olhava pra linha do horizonte, ouvi alguém subindo. Era dona Amélia, com aquele jeito cheio de pressa.
— Precisamos conversar. — Ela disse, ofegante.
— Que foi, dona Amélia? Valentina aprontou alguma?
Ela balançou a cabeça, negando.
— É coisa séria. Ouvi um boato de que os caras do outro lado da cidade estão querendo invadir o morro. Estão achando que tem muito movimento aqui e tão de olho nas bocas.
Isso era preocupante. Já fazia tempo que o morro estava tranquilo, mas essas coisas nunca ficavam assim por muito tempo.
— Quem falou isso? — perguntei, franzindo a testa.
— Ouvi os caras cochichando quando fui buscar legumes na feira. Não quis alarmar ninguém, mas achei que você precisava saber.
Fiquei pensativo, com as palavras de dona Amélia ecoando na minha cabeça. Se aquilo fosse verdade, a coisa podia ficar feia. A tranquilidade do morro era sustentada pela influência que a gente tinha, mas também pela discrição. Qualquer movimento errado e tudo desandava.
— Valeu pelo aviso, dona Amélia. Vou averiguar isso.
Voltei pro barraco e já liguei pro Jaguatirica.
— Fala, mano. Preciso de você aqui agora. Parece que tá pintando problema.
Jaguatirica não demorou a chegar. Veio sozinho, sem a Raquel nem o moleque, como eu esperava.
— Que foi, mano? Tava indo pro mercado de novo comprar o leite da cria. — Ele falou, brincando, mas percebeu rápido pelo meu semblante que a coisa era séria.
— Recebi um papo estranho de que os caras da Zona Oeste tão planejando invadir o morro. Dizem que tão de olho nas nossas bocas.
— p***a, mano... Esses caras tão na pindaíba, só pode. m*l conseguem manter a área deles, e agora tão querendo comprar briga aqui?
— Pois é. Só que não quero esperar pra ver se é verdade ou não. Chama os moleques de confiança, mas sem alarde. Quero checar isso hoje ainda.
O dia que tinha começado tranquilo começou a tomar um rumo diferente. Enquanto os manos organizavam a equipe, fui pra minha sala pegar o rádio e confirmar com os olheiros se tinham notado algo estranho. Uns falaram que viram carros rondando, mas ainda nada concreto. Eu sabia que, nesse meio, o erro era esperar demais. Ou você agia, ou perdia espaço.
Voltei pra casa antes de sair, passei no quarto da Valentina e a vi brincando com uns papéis. Ela olhou pra mim com aquele sorriso, sem saber do que se passava lá fora.
— Tá fazendo o quê, princesa?
— Um desenho pra você, tio. É a gente na moto!
Sorri de canto e dei um beijo na cabeça dela. Aquele mundinho inocente dela era o que eu mais queria proteger.
— Continua aí, tá? O tio vai resolver umas coisas.
Enquanto saía do quarto, me preparei mentalmente. Sabia que, se aquele boato fosse verdadeiro, os próximos dias seriam de tensão e provavelmente sangue. Chegaram os manos e Jaguatirica na porta.
— Tá tudo pronto, chefe. É só dar o comando. — Ele disse.
Eu suspirei fundo e olhei pra rua, sabendo que aquela tranquilidade podia ser a última antes de tudo mudar.