Benjamin Narrando
Ainda era cedo quando abri os olhos. O sol m*l passava pelas cortinas, mas o peso daquela noite anterior não me deixou dormir além. Levantei-me devagar, tentando espantar a dor de cabeça e o gosto amargo na boca. Um banho rápido, e logo depois já estava sentado no salão do hotel, empurrando o café mais forte que consegui encontrar garganta abaixo.
Não demorei ali. Peguei minha xícara e fui até a varanda. A brisa fria da manhã balançava as folhas das palmeiras, mas nem isso acalmava o redemoinho de pensamentos na minha cabeça. Esperei meu pai aparecer, encarando as ruas ainda vazias.
Eu precisava de respostas. Como diabos ele teve coragem de chegar naquele estado? Bêbado, tropeçando em si mesmo, e, como se não bastasse, acompanhado do desgraçado que, não há muito tempo, quase acabou com a minha vida. Meu pai devia explicações. Eu estava pronto para exigir cada uma delas, por mais dolorosas que fossem.
O café esfriou na minha mão enquanto a paciência se esgotava em silêncio. A porta do quarto do meu pai permanecia fechada lá dentro, como se ele soubesse que a tempestade o aguardava aqui fora. Fiquei alternando entre a vista da cidade e a xícara vazia que girava nos meus dedos.
Meu peito estava apertado. Mil perguntas pululavam na minha mente: Por quê? Desde quando você sabe quem ele é? O que ele está te oferecendo para você abrir espaço para ele na nossa vida? Eram perguntas que eu nem sabia se estava preparado para ouvir as respostas.
Finalmente, ouvi passos pesados no corredor. Virei o rosto devagar, tentando aparentar mais calma do que sentia. Lá estava ele, o homem que sempre vi como meu exemplo, arrumando a gola da camisa e parecendo mais abatido do que nunca. Ele parou ao me ver sentado ali. Não disse nada. Aquele silêncio, na verdade, foi o primeiro golpe da conversa.
— Senta aqui, pai. — Apontei para a cadeira à minha frente, a voz firme apesar de o nó na garganta tentar me trair.
Ele hesitou, mas cedeu. Sentou-se com um suspiro longo, apoiando os braços pesados sobre a mesa. Os segundos pareceram horas antes que eu finalmente falasse, direto, sem rodeios:
— Me explica, porque eu realmente não consigo entender. Você apareceu ontem bêbado. Até aí, tudo bem, eu poderia até relevar. Mas você trouxe ele. O que você estava pensando? Por que deixou que um cara como ele entrasse na nossa vida?
Ele desviou os olhos. Apertou as mãos com força sobre a mesa, como se ali encontrasse coragem para o que viria a dizer. Quando sua voz saiu, era mais grave, arrastada, cheia de algo que parecia um misto de vergonha e arrependimento.
— Não é tão simples assim, Benjamin. Eu precisava encontrá-lo. Precisava ter certeza de umas coisas. — Ele pausou, parecia escolher as palavras com extremo cuidado. — Você não conhece a história toda.
— História toda? Que história, pai? A que explica por que você estava sentado bebendo ao lado do homem que quase destruiu tudo o que a gente tem?
Ele não respondeu imediatamente. Passou a mão pelo rosto, os olhos perdidos em algum lugar além do meu. Foi nesse momento que me dei conta: o que quer que ele estivesse prestes a dizer, iria mudar as coisas para sempre.
Meu pai respirou fundo, o olhar cansado voltado para a mesa. Quando ele falou, sua voz tinha um peso diferente, como se carregasse algo que ele guardava há muito tempo.
— Filho, escuta... Eu sei o que você pensa dele, o que ele já fez. Sei que o Jacaré tem uma história complicada, mas ele não é só isso. Ele não é o monstro que você imagina.
Fiquei encarando meu pai, a incredulidade se espalhando pelo meu rosto. Eu abri a boca para contestar, mas ele ergueu a mão, pedindo que eu o deixasse terminar.
— Eu passei anos alimentando essa mesma ideia, achando que o mundo era preto e branco. Que quem fazia o que ele fez não podia ser mais do que aquilo. Mas as coisas não são tão simples, Benjamin. O Jacaré... ele é uma boa pessoa, no fundo. Talvez você ainda não veja isso, mas eu acho que deveria se dar uma chance de conhecê-lo melhor.
— Uma boa pessoa?! — Eu não consegui mais conter a voz. — Pai, o cara tentou me matar. Que parte disso pode ser explicada com “ele é uma boa pessoa”?
— Ele tinha seus motivos — disse meu pai, com uma calma que só fez meu sangue ferver ainda mais. — Não que isso justifique o que aconteceu, mas você tem que entender que ninguém faz escolhas dessas à toa. Ele passou por coisas que nenhum de nós imagina. E eu, bem... eu não posso ignorar isso.
Aquela explicação soava absurda para mim. Meu pai parecia outra pessoa, alguém que eu m*l reconhecia. E então ele veio com a segunda bomba da manhã.
— Tem mais uma coisa. Eu não queria que você soubesse assim, de repente, mas... eu comprei aquela casa nova na cidade. E aluguei a nossa.
Minha cabeça girou. Tantas emoções conflitantes me golpearam de uma vez que eu tive que me apoiar na mesa para não levantar e sair dali.
— O quê?! Sem nem me avisar? Você alugou a nossa casa? É a nossa vida que você está mudando, pai. A gente sempre viveu ali. Era o que a gente tinha!
— E a gente sempre vai ter — ele tentou suavizar, mas minha indignação queimava como fogo. — Isso é o melhor para todos nós. Precisamos de um recomeço. Um lugar diferente, longe de certas lembranças ruins... Eu sei que é difícil aceitar, mas, por favor, não fica chateado comigo por isso.
Fiquei em silêncio, o olhar preso ao meu pai enquanto ele desviava os olhos. Eu não sabia o que responder. A sensação de ser traído por quem eu mais confiava era pesada, sufocante. Ali, sentado naquela varanda, percebi que tudo o que conhecia estava escorrendo pelas minhas mãos. Meu pai não era o mesmo. Nosso mundo estava mudando, quer eu quisesse ou não.