Capítulo Três

2782 Palavras
Dorian possuía estatura mediana, muito magra, fumante e usava o uniforme da SBO, criado por um estilista argelino de 20 anos. Um tailleur cinza-chumbo, que favorecia a silhueta das magras e também das que não o eram. Os homens, terno e gravata. Somente o alto escalão corporativo estava livre para desfilar seus ternos escuros, sobretudo cinza ou preto e, constantes e variados, cachecóis. As executivas, saias justas até os joelhos, calças de costura reta e casaquinhos. Parecia que feminilidade rimava com fragilidade e grande parte delas escondia as curvas. Amanda exibia-as sem descuidar da elegância e discrição. Pisou no acelerador e adentrou no subsolo, onde se localizava o estacionamento da empresa. Quando entrou no elevador panorâmico e apertou o botão da cobertura — o andar com a sala da presidência e o auditório para as conferências — viu-se refletida no espelho. Quase gritou. Como não havia percebido o chupão quase arroxeado no pescoço? Levou a mão à mancha e esfregou-a como se fosse uma sujeira qualquer. Doce ilusão. Só fez irritar a pele deixando-a vermelha ao redor do hematoma. Estava tão encantada com a aventura erótica com Jacques Rodin, que diante do espelho de casa só vira o que lhe interessara. Annie vira o chupão. Que vergonha! Fechou os olhos para apagar a imagem na mente. Quem mais? Quem mais? Quase gritou histérica. Jacques (que ficara quietinho e não lhe avisara), o porteiro do seu prédio (que era meio míope e, mesmo que não fosse discreto como era, nada comentaria, nem sequer uma piadinha), os seguranças da mansão de seu chefe... e... O seu chefe? Oh, céus, por isso aquele olhar estranho, longo e investigativo quando ela entrou no terraço! Amanda tinha um outdoor no pescoço gritando: fui chupada, vejam! A latina que caminhava sobre saltos altos exalando cheiro de primavera e remexia o quadril ligeiramente como se o mesmo tivesse sido deslocado ao nascer, mesmo discreta, daria material para as fofoqueiras da rádio-corredor. Quando as portas do elevador abriram, Amanda vislumbrou o topo da cabeça de Dorian por detrás do balcão alto, de cedro. Bateu com a chave do carro sobre a madeira, e a secretária deu um pulo e arregalou os olhos: — Nossa, Amanda, se você fosse uma cobra me picava... — E se eu fosse o nosso VP? — questionou com a sobrancelha erguida. O vice-presidente da SBO chamava-se Victor Marcell Touleause, tinha 44 anos, graduado na Sorbonne, casado com uma estilista de moda, três filhos e uma vocação incrível para sermões moralistas. Ele exigia a perfeição de todos. Ou seja, devia ter algum problema psicológico. — Nem me fale!, com a sorte que tenho seria ele mesmo. — Calma, Dorian, monsieur Touleause está em Roma e há pouco conversava com o monsieur Brienne. Agora, olha bem pra mim... A secretária parou de digitar e fitou a colega de trabalho. Num minuto, surgiu-lhe na face um olhar malicioso acompanhado por um sorrisinho safado: — Qual o nome dele? Calogero? Amanda sentiu as bochechas pegarem fogo. Ignorou a brincadeira da outra, deu a volta no balcão e pegou-a pelos ombros: — Preciso de base, pó compacto, quero dizer, pancake! Balde de tinta também serve! A secretária revirou o bolsão de couro que deveria conter inclusive sua mobília. Depois de muito “escavar”, estendeu à Amanda a base líquida, com protetor solar, para peles de loiras quase transparentes. O que não era o caso da tez dourada de Amanda. Agradeceu e enfiou-se no banheiro de sua sala que, mesmo anexada à de Jules Brienne, possuía banheiro próprio e outra entrada, lateral, que, caso a porta de comunicação entre os dois escritórios estivesse fechada (e isso raramente acontecia), ela não seria vista entrando. E nem teria visto a personagem alta, sofisticada, com um longo pescoço e imensos olhos verdes, sentada em frente à mesa do chefe. Entretanto, mesmo quase trocando as pernas e segurando o pancake como uma menina inocente segura o “sagrado” anel de noivado, com sua visão periférica, percebeu o ataque felino àquele que, como sua assistente pessoal, deveria zelar, proteger e preservar. Depositou uma farta camada de maquiagem sobre o hematoma e, sem cronometrar, concluiu que levara vinte segundos para a operação. Ajeitou o cabelo e estufou os p****s. Já não era a primeira vez que enfrentava uma mulher com segundas intenções burlar-lhe a segurança. A talzinha não aceitava uma negativa em relação ao cargo oferecido a Jules, não aceitava apenas o polpudo cheque, ah, não... Vinha pessoalmente revirar-lhe os bolsos? Ou, melhor, tirar-lhe as calças? Entrou na ampla sala, de móveis modernos, com poltronas em vez de cadeiras, em frente à mesa de vidro e aço e observou algumas irregularidades. Primeiro, as cortinas ainda estavam cerradas, a máquina do expresso desligada (detalhe: logo que começava o expediente, Jules Brienne nem precisava pedir para que ela preparasse o seu expresso. Ele, sozinho, nem ligava a máquina) e as canecas de cerâmicas com restos de café do dia anterior esquecidas sobre a estante que ladeava uma imensa planta verde, para variar. Antes de qualquer intervenção na cena, Amanda observou os personagens em questão. A linguagem corporal falava tudo e era a comunicação mais verdadeira que existia. Monsieur Brienne, sentado e com as costas relaxadas contra o encosto da poltrona, exibia a atitude de quem ouve um palestrante. Havia em seu rosto uma expressão de alheamento lutando bravamente com a concentração, mais como um gesto de educação e polidez do que fingimento. A face estava relaxada, sem os sulcos entre os olhos quando eles revelavam tensão e reflexão, era mais como se os seus pensamentos estivessem brincando no playground mas, a qualquer momento, seriam chamados ao trabalho duro. Fosse pelo o que a loira tivesse falado anteriormente, ele parecia esperar pela parte “séria” da conversa e talvez isso realmente significasse a visita dela logo pela manhã. Os lábios contraídos, o queixo duro e os olhos sérios e sagazes investiam diretamente no rosto de Geneviève, sem desviar, sem descer para as pernas ou para o notebook aberto à sua frente. Amanda podia morar num apartamento de quarto-e-sala, do tamanho de uma ervilha, dirigir um automóvel popular russo, ralar num emprego sem direito à liberdade condicional, vir de família simples, ter nascido no terceiro mundo, etc., mas ela sabia o que tinha de fazer e como fazer. E fez: —Bonjour, mademoiselle Geneviève — disse com um sorriso profissional, sem mostrar muito os dentes e sem ser arrogante (por um triz!). A outra quase pulou da cadeira ao ouvi-la, estava tão concentrada na Arte de Conquistar que se dissociou do resto do mundo. Ajeitou-se na poltrona, descruzou as pernas e adquiriu uma postura mais fechada, ou seja, retraiu-se na expressão de impessoalidade. Entretanto, ela não sabia que a assistente do presidente já lhe pegara em flagrante. O chefe, por outro lado, parecia aliviado com a sua entrada. Olhou-a de cima a baixo e, num gesto silencioso mas bastante significativo, desviou o olhar para a máquina do expresso. Amanda assentiu e ligou-a. Ouviu o cumprimento baixo de Geneviève, abriu as cortinas e retirou as xícaras usadas. Ao voltar, parou entre ambos e indagou à fulana se gostaria de um café. —Merci. – emendou com um sorriso educado. Boa forma de espichar uma visitinha supostamente profissional. Deixou-os por um momento, pois precisava buscar novas xícaras no refeitório, no quinto andar. Passou por Dorian e endereçou-lhe um sorriso amarelo. A moça aproveitou para chamá-la até o balcão: — Dizem que essa aí será a futura madame Brienne. — depois brincou: — Seja boazinha com ela, oui! — Duvido, ele não gosta de mulher fútil. — Não se engane pelas aparências, Amanda. Mademoiselle Geneviève criou esse centro social a pedido de monsieur Brienne. Parece que a mãe dele apanhava do marido, que, na verdade, era-lhe o padrasto. Ele cresceu vendo a mãe levar uns tabefes, coitado, e ainda por cima era filho único. — E depois dos 17, completamente órfão. — completou Amanda que sabia, aos pedaços, algumas coisas sobre Jules Brienne. Lembrava que sua mãe morrera num acidente aéreo, e quem o acolhera em sua casa e lhe pagara a faculdade fora François Roche e sua mãe, amiga de Vivien Brienne, mãe de Jules. Vinte anos de diferença entre François e Jules, e fora o primeiro que dera todo o suporte para que o segundo se iniciasse no ramo de computadores. Amanda sabia também que François era casado havia uma década e meia com uma professora universitária. — A moça já conseguiu estabelecer um vínculo com monsieur Brienne e quer estreitá-lo ainda mais. — Quanto tempo tem esse centro social?, dois ou três meses, não é? Está me parecendo um vínculo bastante recente. — comentou com desdém. — É, pode ser, mas alguém tem que dar o primeiro passo. A bem da verdade, Amanda, monsieur Brienne não tem ninguém há cinco anos. Ele é homem, um macho alfa, precisa de uma fêmea, non? – indagou sorrindo, divertida. Amanda não estava gostando do rumo da conversa, deu de ombros e disse já se afastando do balcão em direção a um dos elevadores: — No momento, ele precisa mesmo é de cafeína, Dorian. – encerrando o assunto. Quando voltou, preparou os dois cafés e depositou a xícara na mesa do “macho alfa”; em seguida, entregou a outra à Geneviève, que mexeu os lábios simulando um sorriso polido.  Com aquela aparência e pose podia bem ser a nova “madame Brienne”. Além do mais, o chefe, agora, parecia mais interessado na conversa (ou em Geneviève) e, provavelmente, devido ao café forte e quente, uma aura de suavidade atenuava-lhe a feição circunspecta. Talvez quando Amanda descera ao quinto andar, a conversa tenha se encaminhado para algo mais íntimo. O fato era que ela sorria mais e ele, mesmo sem sorrir, apresentava visível prazer em sua companhia. Amanda voltou à sua sala, pegou alguns papéis que precisavam da assinatura do executivo e não se surpreendeu ao ouvir de lá: — Não acredito! Abrirá uma filial em Helsinque? Faz uma semana que voltei da Lapônia, esquiei até quase acabar com meus joelhos. – era Geneviève. — A Finlândia sempre me interessou, mas somente agora surgiu a oportunidade de ter uma subsidiária num país escandinavo. Há um rapaz de lá, Jarkko Koskinen, que fará a ponte entre Paris e Helsinque. – disse, bebendo o restinho do café. — Você precisa passar, pelo menos, um final de semana na Finlândia, mas a passeio. Podemos combinar e irmos juntos, seria bom relaxarmos um pouco. Aliás, Sonia e François também poderiam ir. A mocinha quase bateu palmas, parecia que tinha treze anos de idade. Jules sorriu polidamente, pois sua atenção desviava-se de Geneviève para Amanda, já que a última acabava de voltar à sala segurando duas folhas timbradas com o monograma da SBO. — E a aspirina, mademoiselle Rossi? Amanda girou nos calcanhares e fitou-o como quem diz: o que eu tenho a ver com isso? Mas como ele a olhava duramente, sentiu-se na obrigação de informar que não havia comprado os comprimidos. Geneviève, por sua vez, mexeu-se na poltrona ensaiando uma retirada. — E por que, non? – insistiu, desconfiado. — Já disse: faça a tomografia e eu compro aspirinas. Meu tio tinha dores de cabeça quase todos os dias e acabou sofrendo um derrame cerebral aos 45 anos.  Jules Brienne estreitou os olhos e moveu o lábio inferior ligeiramente para baixo numa expressão de menosprezo, os sulcos entre as sobrancelhas acentuaram-se. O corpo não mexeu um músculo, tenso, preparado para ordenar, ignorava a visita e o fio de sol riscando-lhe parte do maxilar. Amanda lia tudo isso, porque o conhecia e sabia até onde podia ir. Mas tal conhecimento a respeito da sua personalidade não a impedia de fazer o que considerava correto. — Mademoiselle Rossi, compre as aspirinas agora. – disse com estudada calma. — Não quero ser responsável pelo seu derrame cerebral, monsieur Brienne. Caso pretenda ser irresponsável para com sua própria saúde, que o faça por si mesmo, sem cúmplices. – rebateu com calma, como se falasse com uma criança teimosa. Geneviève agitou-se, cruzou e descruzou a pernas, empertigou-se na poltrona visivelmente desconfortável. Do outro lado da mesa, uma fera silenciosa e engravatada erguia-se sem tirar os olhos da assistente. Ops!, havia ultrapassado a fronteira, Amanda concluíra ao perceber que Jules Brienne digeria com dificuldade a insubordinação. — Desde quando é a guardiã da minha saúde? – a voz era baixa, controlada. — Há cinco anos ouço a mesma bobagem, “cadê a aspirina”?, e há cinco anos sugiro a monsieur que faça uma tomografia. Por acaso é uma queda de braço? – ela não só jogou as palavras na cara dele, como também empinou o nariz e deu dois passos para frente, em sua direção. — Cinco anos com dores de cabeça, é perigoso, Jules. – afirmou Geneviève com a voz sumida, tentando amainar o felino preparado para pular no pescoço da assistente. Ele era um executivo, e não um menino birrento. Trabalhara duro para erguer um império que alcançava oito países europeus. Era experiente, culto, pragmático e tinha quase quarenta. Amanda provocava-o deliberadamente, porque às vezes precisava polir o SEU orgulho, o SEU ego e mostrar-lhe os motivos pelos quais ela ainda trabalhava ali: jamais abaixara a cabeça para quem quer que fosse. Além disso, era uma mulher de princípios. E Jules Brienne tinha de fazer uma tomografia cerebral antes de merecer um frasco de aspirinas, ora! De repente, ele desceu os olhos dos seus e contemplou descaradamente o hematoma mascarado com o pancake. Um brilho de sarcasmo serpenteou os olhos escuros e tão cheios de severidade, havia neles, também, um misto de exasperação. Parecia que ele mesmo estava no seu limite e nada tinha a ver com aspirinas e tomografias. Por quê?, ela perguntava-se sem deixar de enfrentá-lo. Num minuto, admirou a própria derrocada. Ele apertou o interfone e ordenou: — Compre dez vidros de aspirinas, mademoiselle Cuvier. Por um segundo ou dois, Dorian não compreendeu a ordem. Entretanto, quando deu por si já sabia que o chefe havia discutido com a subordinada. Geneviève aproveitou a deixa e, uma vez que Jules estava de pé, fez o mesmo e estendeu-lhe a mão. — Jules, foi um prazer. Espero a sua visita no nosso centro social, viu? Ele apertou a mão dela e com um gesto de cabeça assentiu. Resmungou algo e indicou a porta de saída. Amanda acompanhou-a controlando uma crise de risos. Jules comportara-se como um menino desafiando a autoridade e, em seguida fora m*l-educado com Geneviève. Aguentara mais de quarenta minutos de conversa sendo polido para, depois, quase jogar a mulher para fora de seu escritório. Ao voltar-se, encontrou-o ainda de pé, a cara amarrada de sempre, os lábios constritos. — Foi o bom senso que deixou essa marca no seu pescoço? Um buraco, por favor! — Fui ferida gravemente, monsieur. – mentiu, fingindo-se ofendida. — Você representa a presidência e não é nem um pouco sensato de sua parte trabalhar com um hematoma s****l na face. – afirmou com um leve tom de desprezo. Hematoma s****l? — Pardon, mas isso é um ferimento causado por...por... — gaguejou e esqueceu todas as palavras do vocabulário francês. A única expressão que lhe vinha à mente era “je suis désolé”. Hã? Por fim, suspirando exasperada, disse: — Se quiser emborcar os dez vidros de aspirina, posso ajudá-lo com prazer. Dito isso, girou nos calcanhares e encaminhou-se para a sua sala. Sentia todos os músculos das suas costas latejarem e era como se os olhos de Jules Brienne os apertassem um a um. Fogo na nuca, ácido no estômago, garganta seca. Não era uma mulher covarde e tampouco uma Joana D’Arc. Defendia a si mesma e os seus valores, apenas isso. Havia cinco anos que eles discutiam e faziam as pazes sem precisarem pedir desculpas... Epa!, sem que ELE pedisse desculpas. Assim, ela voltou à sala do chefe para lhe falar e o encontrou tirando o paletó: — Retiro o meu pedido de desculpas, monsieur Brienne. — Pedido aceito, mademoiselle Rossi. Ora, bolas! Alguém ali falava grego? Ele ficou um tempo com o paletó na mão, perdido, olhando para os lados. Amanda não resistiu, deixou a irritação de canto e aproximou-se: — Dê-me aqui, tem um cabide no armário para guardá-lo. Como ele podia saber?, Amanda pensou. Toda a vez que chegavam ao escritório pela manhã, retirava o paletó, estendia para a assistente que o guardava no armário. Às vezes, ela tinha até que lhe ajeitar a gravata. Parecia sem jeito quando indagou: — Comprou a colônia certa, pelo menos? — Oui, monsieur.
Leitura gratuita para novos usuários
Digitalize para baixar o aplicativo
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Escritor
  • chap_listÍndice
  • likeADICIONAR