Acordei com o som insistente de batidas fortes, secas, quase impacientes. Três toques curtos, um intervalo, depois mais dois. Nada de campainha, nada de educação, o tipo de toque que não pede, ordena.
Abri os olhos devagar, o quarto ainda meio embaçado pela luz fraca que entrava pelas frestas da cortina. O coração disparou antes mesmo de entender o motivo. Peguei o celular do criado-mudo: 7h42 da manhã. Cedo demais pra qualquer visita.
— Quem é? — perguntei alto, tentando parecer firme, mas minha voz soou rouca, arranhada pelo sono.
Silêncio. Só o som de passos pesados do outro lado. Mais batidas. Um arrepio subiu pela minha nuca. Vesti rápido o short que estava jogado na cadeira e uma blusa qualquer. Caminhei até a porta, cada passo pesado, o chão frio sob os pés descalços.
Olhei pelo olho mágico, e o ar travou no peito. Um homem alto, magro, com tatuagens subindo pelo pescoço até o rosto. O cabelo raspado, o olhar fixo, vazio, daquele tipo que não pisca nem por educação. O sorriso, se é que dava pra chamar assim, era mais um corte do que um gesto.
Coringa. Eu sabia quem ele era. O tipo de nome que a gente ouve sussurrado no morro, nas histórias que o Heitor nunca queria que eu escutasse.
Meu corpo travou, o coração acelerando num ritmo que parecia furar o peito. Hesitei por alguns segundos, os dedos ainda no trinco. Parte de mim queria ligar pra polícia, a outra sabia que seria inútil. Se o Coringa estava ali, é porque alguém mandou.
Abri a porta devagar. A luz do corredor invadiu o apartamento e iluminou o rosto dele por inteiro, tatuagens antigas, cicatrizes finas, olhos que não expressavam nada além de impaciência.
— O que você quer? — perguntei, tentando manter o controle, mas senti a voz falhar no final. Ele inclinou a cabeça, analisando o apartamento com o olhar de quem mede um território.
— Vim te buscar. — Falou simples, direto. — Ordem do chefe.
— Que chefe? — retruquei, mesmo já sabendo a resposta. O sorriso dele se alargou, e por um instante senti o estômago revirar.
— O Fantasma.
Aquela palavra pareceu cair pesada no ar. É claro que eu me lembro dele, de quando eu era mais nova. Poucas vezes que eu vi ele, claro, cercado de mulheres.
— O Heitor pediu pra ele cuidar de você — completou, dando um passo à frente. — E eu vim garantir que tu vai comigo sem fazer cena.
Senti o chão fugir por um segundo. Meu irmão... preso... e agora mandando alguém como o Coringa pra me buscar.
— Leva bastante coisa, só pro precaução...
As palavras arrepiaram meu corpo. Acelerando meu coração. Como eu ia conseguir levar muitas coisas, se nem tinha concordado em ir?
Fui para o meu quarto, peguei uma mochila e coloquei algumas peças de roupa, higiene básica e o meu notebook. Peguei o celular e o guardei no bolso, mesmo sabendo que provavelmente não adiantaria muito.
E coloquei um vestido, tentando ajeitar meu cabelo. Quando voltei pra sala, ele já estava perto da janela, observando a vista como se nada fosse estranho.
— Bora. — disse, seco, apontando pra porta.
Tranquei o apartamento, o coração batendo alto demais, cada som da fechadura parecendo um eco final. Enquanto desci as escadas atrás dele, uma certeza pesada se formava dentro de mim: Eu estava ferrada!
O carro esperava parado em frente ao prédio, uma BMW preto de vidro escuro e motor ronronando baixo, como se respirasse junto com o asfalto. O sol da manhã já estava forte, queimando a pele e ofuscando os olhos, mas o ar ali tinha outra temperatura, tenso, pesado, carregado de um silêncio estranho.
Coringa abriu a porta traseira sem dizer nada. Seu olhar me atravessou como uma sentença. Entrei devagar, tentando disfarçar o medo que escorria pelas veias. As mãos tremiam, mas eu as escondi no colo, forçando um controle que eu não sentia.
O banco cheirava a couro e gasolina. O motorista, um homem que eu nunca tinha visto, usava boné baixo e não olhava pra mim, apenas esperava. Coringa entrou no banco da frente, jogou o corpo pra trás e deu uma risada curta, o tipo de som que faz o estômago se revirar.
— Pronto, princesa. Viagem rápida. — Ele olhou pelo retrovisor, o sorriso torto ainda preso no rosto. — O Fantasma não gosta de atrasos.
Aquele nome de novo. Fantasma. O dono do morro. O homem que meu irmão respeitava como se fosse lei.
O carro começou a andar, e cada rua que a gente deixava pra trás parecia me afastar da vida que eu conhecia. Passamos pela orla, o mar cintilando distante, livre, um contraste c***l com o que eu sentia. Logo as ruas foram ficando mais estreitas, os muros pichados, as fachadas descascadas, as janelas cheias de roupa pendurada.
A cada curva, o morro se erguia mais vivo, mais real. Gente nas calçadas, crianças correndo descalças, homens encostados nas esquinas observando. O barulho do funk misturado com o cheiro de churrasco, de pólvora, de fumaça, tudo tão caótico que parecia pulsar.
Mas o que mais me assustava não era o cenário, era o jeito como tudo se movia quando o carro passava.
Olhares se desviavam, conversas paravam. Ninguém encarava diretamente o veículo preto que subia a ladeira.
Parece que viver seis anos longe, me deixou como uma estranha no próprio lugar que eu nasci.
Coringa mexia no celular o tempo todo, sem pressa, como quem sabe que o destino está no controle dele, não o contrário.
— Teu irmão é esperto — murmurou de repente, sem olhar pra mim. — Sabe que o Fantasma é o único que pode garantir que não encostem um dedo em você.
Engoli seco, olhando pela janela. Lá embaixo, o mar já era só uma linha azul distante, separada por telhados tortos e becos apertados. Eu me sentia presa entre dois mundos, o de onde vim e o que estava prestes a engolir tudo que eu era.
— Ele tá bem? — perguntei, finalmente, a voz mais fraca do que queria. Coringa deu de ombros.
— Tá vivo. Por enquanto, isso é o suficiente.
O carro virou uma última curva e começou a subir por uma estrada de concreto que cortava o morro. Lá em cima, eu vi: uma casona cercada por muros altos, portão de ferro, câmeras, seguranças armados. Diferente de tudo ao redor. Como se fosse um outro universo, encravado no meio da pobreza.
O carro parou. O portão abriu devagar, com um rangido metálico. O som do motor morreu, e eu fiquei ali, olhando pra fachada cinza e imponente, o coração batendo alto demais.
Coringa abriu a porta e me olhou com aquele sorriso de sempre, o tipo que não diz nada, mas ameaça tudo.
— Chegou, princesa. O Fantasma te espera.
Saí do carro devagar. O ar ali em cima era diferente: quente, denso, com cheiro de fumaça e ferro. A casa parecia viva, observando, julgando.