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Eu nunca pensei que chegaria a este ponto. Vestida em uma camisola de hospital, deitada numa cama de hospital, num leito de hospital. E pelas razões erradas. Pensei que a única vez que eu fosse me encontrar em um leito desses seria quando tivesse filhos. Quando eu realizasse o sonho de dar luz à mais uma vida nesse planeta, porém estou aqui por uma tentativa (fracassada) de tirar a minha. A desgraça foi maior ainda quando abri os olhos pela primeira vez após a tragédia a qual eu fui, ao mesmo tempo, a vilã e a vítima. As pessoas me olhavam com decepção, tristeza, raiva, indignação e mais um milhão de sentimentos que são impossíveis de serem descritos em uma única palavra. E ainda: não eram pessoas em seu significado denotativo, do tipo "as pessoas saíram para o jantar" ou "as pessoas no cinema estão esperando o filme começar". Eram pessoas importantes - claro, não importante do tipo presidente da República ou papa. É importante do tipo: pessoas que entraram na minha vida do nada - ou que já estavam nela mesmo antes de eu nascer - e que eu tenho que fazer o maior esforço possível para que elas não saiam do meu vínculo social. Resumindo: minha mãe, meu pai, minhas irmãs, meus dois melhores amigos e meu namorado. Toda aquela gente ao meu redor (isso é permitido pelas regras hospitalares?) me olhando daquele jeito, o que me fazia me sentir cada vez mais culpada e envergonhada e com vontade de ser uma pequena mosca que passava por ali. Ou melhor, uma daquelas partículas de ar com um odor forte de remédios e soros - aquele cheiro comum de hospital.
Eu senti que devia satisfações a toda aquela gente. E pior: eu teria que dar satisfação a todas as pessoas que eram importantes para mim e que não estavam naquele hospital. E ainda: teria que explicar a todas as pessoas que eram importantes para mim, que não estavam ali e que nem faziam ideia de que eu estava, naquele momento, num quarto de hospital. Eu pensei em dar minha explicação em forma de discurso. Sim, um discurso seria perfeito. Eu encheria minhas frases de esperança e poesia, e as pessoas se esqueceriam da gravidade do meu ato e parariam para refletir sobre todo aquele meu posicionamento encorajador e fortalecedor e otimista. Diria que só porque saí da Clínica não queria dizer que eu estava curada - por curada, eu me refiro a todas as doenças diagnosticadas e não diagnosticadas. Diria que viver um dia de cada vez é minha meta e é um trabalho árduo, que eu nem sempre sou capaz de cumprir. Que minha rotina é tão carregada de exposição ao mundo do entretenimento que há dias que dá vontade de fazer coisas muito piores e deixar de fazer parte da sociedade humana, e todo esse blábláblá que de tão repetido chega a ser clichê, previsível e cansativo. Sim, isso entreteria as pessoas, até mesmo aquelas que estavam dentro do hospital, porque, apesar de me conhecerem e saberem que esta é só mais um desvio estratégico do assunto principal, sempre caem na minha lábia pelo simples fato de eu saber omitir bem - omitir, não mentir; há um gigante abismo entre o significado dessas duas palavras. E depois? Depois, seria muito fácil. Era só repetir a mesma história para todos os programas de rádio e televisão que me perguntassem sobre o assunto. A mídia irá aumentar mais ainda a história, e esta, por sua vez, será adicionada ao leque de conquistas e metas alcançadas e superações obtidas por mim. É muito fácil enganar as pessoas, porque basta falar a elas o que elas querem ouvir e pronto; elas querem ser entretidas positivamente. E isso se torna mais fácil ainda para uma pessoa que, como eu, passou a vida inteira vivendo em função de entreter as pessoas. Mas a parte difícil começa quando eu volto para mim. Essa parte de mim que, assim como essas pessoas que estão me encarando, espera uma explicação. Um motivo. Uma razão suficiente para eu ter feito o que fiz. Uma parte de mim também está ali, com eles, de braços cruzados e me encarando com o rosto franzido. Uma parte de mim está, assim como eles, decepcionada. Frustrada. Triste. E até mesmo com raiva. Porém, ao contrário dessas pessoas, essa minha parte correta, normal e julgadora de meus atos não se contentará com esse discurso todo elaborado que eu estou no momento recitando. Eu vejo as pessoas aos poucos cederem, e um brilho de esperança brotar em seus olhos. Sucesso? Não totalmente. Eu "olho" para meu outro eu, e percebo que sua postura continua a mesma. Claro que continua; somente eu sei que, na verdade, todo esse monólogo recitado por mim não significa nada afinal de contas. Eu continuarei me perguntando a razão de tudo isso. De todo esse quase suicídio. Talvez essas pessoas também continuem se perguntando, mesmo após o meu discurso vou-ter-que-lidar-com-isso-pra-sempre-e-não-vai-ser-sempre-que-vou-vencer-essa-batalha termine. Porém, as pessoas tem uma mania de ficarem constrangidas de perguntarem qualquer coisa depois de ouvirem palavras tão bonitas, idealistas e inspiradoras. Quer dizer, todas, menos eu.
"Por que você se deixou levar pela sua cabeça? Não vê que todo seu esforço, por causa de um único ato irracional, se reduziu a nada? Por qual razão você acreditou que, fazendo isso, resolveria todos esses problemas que te rondam? Porque você simplesmente não respirou fundo e fez o que deveria fazer e não no que você queria fazer? Porque você foi tão egoísta em querer arrancar sua própria vida, sem pensar na quantidade de vidas que você iria afetar? Vão começar a te chamar de louca de novo. Vão começar a pensar, mais uma vez, que todos os seus méritos até aqui foram em função de pena das pessoas por causa dos seus problemas. Isso também vai afetar a todas essas pessoas com quem você se importa - e que por sinal, muitas delas você nunca viu na vida e provavelmente nunca verá." Um monólogo na minha boca e outro completamente diferente em minha cabeça - é assim que estou agora. Essa chuva de perguntas e reflexões e sermões que invade minha mente parece não interferir em nada do meu discurso que parece até que foi decorado. Após eu terminar de falar, vários braços me envolvem, várias vozes dizendo que eu tinha razão e que estavam felizes por eu ter me arrependido tão rápido de meu quase suicídio chegam aos meus ouvidos e várias mãos acariciam meus cabelos, meu rosto e minhas marcas - que, por sinal, estão começando a doer. O fato de a dor chegar atrasada não é novidade para mim, que de tanto realizar esse ato, já virei uma profissional no mesmo. Primeiro você sente um alívio, por ter descarregado toda aquela intensidade de emoções e estresse e nervos à flor da pele, mas então vem a culpa. O arrependimento. O vazio. E, o pior de tudo, vem o desespero de alguém ver, porque o alívio é só em curto prazo. A realidade dos acontecimentos e seu efeito sobre você vêm como uma avalanche, e retornam tão rápido quanto foram embora. E só então, depois de toda uma crise de existencialismo, vem a dor. A dor é, embora pareça engraçado, o sentimento menos doloroso que se é sentido em todo o processo. A dor é recebida por mim de braços abertos, porque eu sei que depois da dor não há mais nada. Depois disso tudo, virá a rotina normal - apesar de, nos primeiros meses, um pouco reforçada de reflexões positivas matinais - e todo mundo vai esquecer o episódio do hospital - ou melhor, vai demonstrar que esqueceu. Depois de toda aquela ilustre plateia enfim me deixar sozinha, eu adormeço. Minto, finjo que adormeço, porque a amiga insônia veio matar as saudades. Minha mente, mais acelerada do que uma Maria Fumaça, parece incapaz de parar um minuto para eu conseguir dormir e esquecer, pelo menos por um momento, que aquilo tudo aconteceu. Meu segundo eu parece estar envergonhada de mim, e eu não a culpo. A vergonha é o mínimo que eu posso sentir depois de todo aquele papo de agora-eu-estou-ficando-forte simplesmente desmoronar só porque eu dei um pouquinho de razão a parte mais irracional do meu subconsciente. Porém, a dor veio diferente dessa vez. Ela veio com uma fraqueza assustadoramente forte, que tomou conta de mim desde a raiz de meus cabelos negros as unhas dos dedos dos meus pés. A fraqueza não era conhecida por mim até então, não nesse processo. Era um sentimento novo; parecia que eu estava caindo em um buraco sem fim, sem nunca sentir o impacto de minhas costas contra algum material sólido. Acordada, porém de olhos fechados - a fraqueza me impedia de abri-los -, ouvia o médico murmurando com minha mãe, que, ao contrário de todos, havia retornado à sala depois de meu espetáculo teatral. Frases como "ela perdeu muito sangue" citadas pelo médico eram acompanhadas de explicações esfarrapadas porem verdadeiras de minha mae, como "ela sabe fingir que está bem muito bem, se é que você me entende" A voz da minha mãe era carregada de culpa e tristeza, o que me deixou mais envergonhada e cheia de culpa ainda. Seria mais fácil se eu simplesmente morresse - afinal, não era esse o proposito de todo esse processo? - Como ela se machucou desse jeito, Sra. De La Garza? - Não sei - disse minha mãe, sem emoção nenhuma da voz dessa vez. Ela parecia estar em choque. - Estávamos todos em seu apartamento, e ela de repente sumiu. Quem a encontrou no chão do banheiro foi o namorado dela. - Sei - murmurou o médico - Você pode chamá-lo por mim, por favor? - não ouvi mais nada além de alguma coisa batendo no chão, o que previ serem os sapatos de minha mãe, que deixava a sala. Muitos minutos se passam, e me pergunto se o médico ainda está lá. Será que ele está me encarando, ou simplesmente saiu da sala também? O que será que ele pensava de toda aquela situação? Uma mulher jovem, com tudo para ser feliz, deitada num leito de hospital aos seus cuidados com grave perda de sangue. Será que ele era bonito? Jovem? Ou ele estava naquela profissão há tantos anos que nem se espantava mais com os casos mais absurdos ou ridículos ou surpreendentes que apareciam para ele diagnosticar? Será que tinha filhos? Ou ainda, será que ele tinha uma esposa ou uma namorada o esperando em casa naquele minuto? Qual seria o tipo de vida que ele tinha fora do hospital? Nunca soube as respostas dessas perguntas, pois, quando comecei a lutar contra meus olhos para mantê-los abertos e começar a bater aquele papo básico com o médico, ouvi a voz de Wilmer - pela primeira vez após toda aquela confusão.