(Melissa)
Mitte não se parece em nada com o Porto de Spree.
Aqui, o silêncio tem preço. O ar é mais limpo, os prédios são altos demais para esconder o céu, e as pessoas caminham como se soubessem exatamente para onde vão e quanto aquilo vale. Tudo é organizado, calculado, elegante. Frio.
Talvez por isso seja o território perfeito para eles.
Caminho pelas ruas sem pressa, mãos nos bolsos do casaco, postura relaxada. Aprendi cedo que observar é mais importante do que ser vista. Em Mitte, ninguém repara em quem não chama atenção. Executivos, investidores, advogados… todos parecem iguais quando vestem o mesmo tom de cinza.
Observo vitrines de lojas que jamais entraria por vontade própria. Cafés silenciosos demais. Carros caros estacionados como se fossem comuns. Aqui, o poder não precisa gritar. Ele simplesmente existe.
E eu sinto.
Cada passo que dou neste bairro me lembra de que estou entrando no coração do inimigo. Não o inimigo visível, armado, violento. Mas o outro o que se esconde atrás de contratos, conselhos administrativos e reuniões fechadas. O inimigo que sorri enquanto destrói vidas.
Paro em frente a um prédio espelhado. Reconheço o logotipo discreto no topo. Uma das empresas que pertencem ao império Duarte. Nada ali denuncia sangue, morte ou máfia. Apenas sucesso.
É assim que eles sobrevivem.
Ajusto a alça da bolsa no ombro e sigo andando. Não estou aqui para confrontar ninguém. Ainda não. Estou aqui para entender o terreno. Para sentir o ritmo. Para aprender como Mitte respira.
Homens entram e saem dos prédios falando ao celular, em alemão, inglês, francês. O mundo passa por este bairro. O dinheiro também. Imagino quantas decisões tomadas aqui custaram vidas em outros lugares. Quantas ordens jamais foram escritas, mas perfeitamente compreendidas.
Passo por um café elegante e observo pela janela. Pessoas bem vestidas conversam em tons baixos, inclinadas umas para as outras. Sorrisos calculados. Gestos contidos. Aqui, emoções são fraquezas.
Penso, inevitavelmente, nele.
No herdeiro que cresceu neste ambiente. No homem moldado para nunca demonstrar nada. Não sei como é sua voz, nem seu olhar de perto. Mas sei como funciona o mundo que o criou. Sei o que ele espera de alguém como ele: frieza, controle, obediência.
Sinto um leve aperto no peito e ignoro.
Não vim aqui para sentir. Vim para observar.
Sento-me em um banco discreto próximo a uma praça pequena e silenciosa. Retiro o celular do bolso, mas não o uso. Apenas finjo. Pessoas confiam mais em alguém distraído do que em alguém atento demais.
Um segurança passa. Olha rapidamente ao redor. Não me vê. Ótimo.
Mitte é vigilância constante, mas também arrogância. Eles acreditam que nada ameaça o que construíram. Que estão acima de tudo e todos.
Isso também os torna vulneráveis.
Fico ali por mais alguns minutos, absorvendo cada detalhe. O som distante do trânsito. O eco de passos no chão de pedra. O reflexo do céu nos prédios de vidro. Tudo parece limpo demais. Controlado demais.
É então que percebo: este lugar não tem espaço para o erro. Quem erra aqui não recebe segunda chance.
Levanto-me devagar e começo o caminho de volta. Não há mais nada que eu precise hoje. Já vi o suficiente. Senti o suficiente. Mitte confirmou tudo o que eu já sabia.
O império Duarte não se sustenta apenas pelo medo. Ele se sustenta pela aparência de normalidade.
No metrô, sento-me próxima à porta. O vagão segue quase vazio. Observo meu reflexo novamente no vidro escuro. Morena. Cabelos castanhos presos de qualquer jeito. Olhos cor de mel atentos demais para parecerem inocentes.
Sou jovem demais para carregar isso tudo. Mas não escolhi carregar. Apenas não tive escolha.
Quando desço no Porto de Spree, o ar muda. O peso do bairro me recebe como um velho conhecido. Aqui, ninguém finge. As marcas estão nas paredes, nos rostos, nas histórias m*l contadas.
Chego em casa já no começo da noite. As luzes estão acesas. Abro a porta e encontro minha mãe sentada à mesa da sala, organizando alguns papéis. Ela ergue o olhar imediatamente.
— Voltou. Diz, em tom neutro.
— Voltei.
Tiro o casaco com calma e o coloco no encosto da cadeira. Sento-me à frente dela. Há algo na postura da minha mãe hoje. Mais rígida. Mais formal.
— Você saiu cedo. Ela comenta.
— E voltou tarde.
— Precisava caminhar.
Ela junta os papéis com cuidado, como se organizasse também os pensamentos.
— Caminhar por onde?
Não minto. Apenas escolho o quanto digo.
— Por Berlim.
Ela me observa em silêncio por alguns segundos.
— Berlim é grande. Alguns lugares exigem mais cautela do que outros. Ela responde
— Eu fui cuidadosa.
— Cuidado, nem sempre é suficiente. Minha mãe diz, com voz baixa e controlada.
— Há decisões que nos acompanham pelo resto da vida.
Cruzo as mãos sobre a mesa.
— Eu sei disso melhor do que gostaria.
Ela suspira de leve, mantendo a postura ereta.
— Melissa, permita-me falar como sua mãe e não como alguém que carrega o passado, mas como alguém que teme pelo futuro.
Assinto, em silêncio.
— Há forças em movimento que você não pode controlar. — Pessoas que não lidam com consequências da mesma forma que nós. A proximidade com certos mundos cobra um preço alto.
— Eu não atravessei nenhuma linha. Respondo com calma.
— Apenas observei.
— Observar também é um passo: ela rebate.
— E cada passo precisa ser pensado.
— Eu penso em todos eles, minha mãe.
Ela segura meu olhar, como se tentasse encontrar alguma brecha, algum sinal de dúvida.
— Seu pai acreditava que compreender o inimigo era suficiente. Ela diz, com formalidade contida.
— Ele acreditava que saber como funcionavam bastava para se proteger.
O nome dele não precisa ser dito. Ele vive ali, entre nós.
— Eu não acredito nisso: Respondo.
— Acredito em preparo.
— O preparo exige paciência: Ela diz.
— E limites.
— Eu sei onde estão os meus.
Minha mãe se recosta levemente na cadeira, cruzando as mãos no colo.
— Só peço que se lembre de quem você é! Ela afirma.
— E do que ainda pode perder.
Engulo em seco, mas mantenho a voz firme.
— Eu me lembro todos os dias.
O silêncio que se segue não é hostil. É pesado. Cheio de coisas que não conseguimos resolver agora.
— Jante comigo: Ela diz por fim.
— Está frio.
— Já vou: Respondo.
Mais tarde, no meu quarto, deito-me sem acender a luz. Fico olhando o teto, ouvindo os sons distantes do bairro. Penso em Mitte. Em como tudo lá parece inalcançável. Intocável.
Mas nada é eterno.
Fecho os olhos sabendo que dei apenas o primeiro passo. Ainda não cruzei caminhos. Ainda não falei nomes. Mas o tabuleiro está montado.
E o jogo já começou.