CAPÍTULO 1
Anos atrás...
Medo...
Dor...
Fome...
E a frieza da chuva piorando tudo.
Será que a vida tem alguma régua, alguma medida invisível que determina até onde um ser humano pode suportar? Ou será que somos apenas peças de um jogo c***l, lançado a um destino que brinca conosco, decidindo nos testar até o limite?
E não, não é sentimentalismo. É realidade. É o que sinto agora, enquanto caminho pelas ruas gélidas, com uma criança em meus braços.
O vento frio cortando a minha pele, a chuva escorrendo pelas ruas, e a sensação como se em cada gota tivesse o peso de tudo que perdi, de tudo que deixei para trás.
Eu nunca imaginei ter que fugir embaixo de uma tempestade... Mas é isso o que estou fazendo, não tive escolha, foi necessária essa decisão.
A chuva forte não é apenas água caindo do céu. Mas um açoite que tenta me destruir e apagar a minha existência, um reflexo do caos que habita dentro de mim agora.
O pequeno guarda-chuva que seguro m*l protege nossas cabeças, treme a cada rajada de vento, e meus braços doem com o peso do meu bem mais precioso e frágil que possuo: a minha pequena, a minha luz. Que dorme aninhada contra meu peito, alheia ao perigo e à dor que estou sentindo. Mas em um juramento silencioso, prometo para ela que nenhum m*l acontecerá a ela, enquanto eu puder impedir. E que se um dia alguém tiver que pagar o preço desta fuga, que seja eu.
As roupas que visto não têm nada a ver com a noite gelada. Uma calça fina, uma blusa simples com capuz e um par de chinelos, foi só o que consegui. Não tive tempo de pensar em nada melhor, não tive como me preparar. Estava prestes a ser entregue como uma mercadoria após aquele maldito documento, e fugir foi a única escolha que me restava. Parti assim mesmo, desprotegida, porque não existia outra chance... só essa. E eu agarrei com todas as forças.
O frio corta como lâminas. A fome queima como fogo.
Minha barriga dói, um vazio latejante que parece me engolir por dentro. Já são dias sem comer de verdade, dias trancadas em um quarto sufocante, apenas esperando pelo meu destino. Eles me queriam domada, submissa, pronta para ser entregue como um objeto. Mas eu não cedi. Não esperei. Eu fugi. Era agora ou nunca.
E por isso agora estou aqui. Correndo pela rua molhada, cada passo ecoando como um desafio contra aqueles que ainda podem me caçar. E a cada batida do meu coração, cada voz que ouço nas ruas, sinto o medo querer me paralisar... mas é esse mesmo medo que me impulsiona a seguir.
Aperto contra o peito a bebê em meus braços. No ombro a minha mochila, quase ridícula de tão leve. Carrega apenas algumas roupinhas dela, uma mamadeira de leite e um punhado de dinheiro suado que talvez compre um pouco de tempo e o passaporte para uma nova vida. Nada que seja realmente suficiente para uma vida tranquila. Mas foi tudo que pude arrancar antes que fosse tarde demais.
O vento sopra forte, batendo no meu rosto, como se tentasse me empurrar de volta. Respiro fundo, e o ar frio entra como gelo nos meus pulmões. Estou cansada. Tão cansada. Mas não posso parar. Não quando cada sombra pode esconder olhos que me buscam. Não quando atrás de mim existe apenas uma certeza: a prisão.
— Coragem... — sussurro para mim mesma, mas a palavra sai fraca, quase quebrada.
E então as lembranças vêm. Implacáveis e Cruéis.
O rosto da minha mãe surge primeiro. Doce, sereno, envolto em uma luz que só ela tinha. Foi ela quem me ensinou a amar as estrelas. Dizia que, mesmo escondidas pelas nuvens, nunca deixavam de brilhar. Eu quis acreditar nisso tantas vezes... e ainda quero. Mas como acreditar em estrelas quando tudo ao redor virou escuridão, concreto, grades e ameaças?
Logo depois, é meu pai quem aparece na memória. Alto, firme, com um olhar que atravessava qualquer medo meu. Ele sempre dizia que minha força estava em não ceder, em resistir, em ser esperta. Que a coragem não estava em ser dura o tempo todo, mas em não deixar que ninguém me moldasse contra a minha vontade. Talvez tenha sido exatamente por isso que o ódio deles contra mim cresceu quando ele partiu.
Quando a morte o levou, nós duas eu e minha irmã fomos jogadas aos lobos.
Éramos tão iguais, mas tão diferentes no jeito de enfrentar o mundo.
Eu era fogo. Ela, calmaria. Eu explodia. Ela silenciava.
No fundo, éramos metades opostas da mesma dor. E foi ela quem caminhou comigo durante boa parte da minha vida, até que chegou o momento em que precisei vê-la partir.
E então restou apenas eu. Todos que eu amava se foram. E eu continuei.
Continuei... nas mãos de quem deveria ser abrigo, mas transformou nossa vida em corrente. Ele não queria cuidar. Queria controlar. Queria apagar.
E quase conseguiu.
Porque na visão dele não éramos família. Éramos dívida. Peso.
A cada dia, eu aprendia que alguns cárceres não têm grades de ferro. Têm sobrenomes.
Mas eu não fui moldada. Eu não quebrei. Eu sobrevivi.
E agora, enquanto corro pela rua escura com a pequena contra o peito, percebo que só permaneci porque ainda havia quem me prendia ao chão: minha mãe, meu pai, minha irmã. Cada um, ao partir, levou um pedaço de mim.
Eu fiquei. Eu lutei. Eu suportei.
Mas agora... agora não resta mais ninguém. Só eu. Só ela.
Olho para o rostinho adormecido em meus braços. Seus lábios se movem num suspiro leve, e por um instante parece sorrir em sonho. Tão pequena... e ainda assim capaz de sorrir. Isso me dilacera e me fortalece ao mesmo tempo.
— Eu vou te proteger — murmuro, com a voz embargada. — Juro que nunca vai sentir a dor que eu senti. Juro que você vai ser livre, minha estrelinha.
A chuva engrossa, cada gota batendo como punhos contra o guarda-chuva que ameaça se virar. Um trovão explode no céu, rasgando a noite como um aviso c***l. Meu coração dispara, pedindo aos céus que me deem apenas um pouco mais de tempo. Preciso chegar até o ponto de encontro antes que percebam minha ausência. Antes que tentem me arrastar de volta para as correntes que forjaram para mim.
As ruas parecem desertas, mas eu sei que não estou sozinha. Existe algo no ar, um peso que faz cada passo ecoar como se denunciasse minha presença. Meus olhos varrem os becos, os cantos escuros, qualquer movimento mínimo que possa significar perigo. Cada sombra é uma ameaça, cada estalo distante soa como uma sentença.
Meu corpo inteiro pulsa em alerta. O instinto de sobrevivência é o que me mantém andando, mesmo quando minhas pernas imploram para parar. Não existe espaço para fraqueza. Não existe espaço para distração.
De repente, o som de um motor rompe o silêncio da madrugada. Meu coração dispara. Um carro se aproxima devagar, os faróis rasgando a escuridão até me encontrar. A luz invade meu rosto, e em segundos que parecem uma eternidade, sinto que fui exposta, como se o mundo inteiro pudesse me ver ali.
Congelo. Minhas pernas se recusam a obedecer. O pânico sobe pela garganta, sufocando qualquer resquício de ar. Aperto a bebê contra meu peito, desesperada, e ela se agita, soltando um choro frágil que corta meu coração. É como se ela também soubesse, como se sentisse que estamos sendo caçadas.
Meu primeiro instinto é correr, mas seria loucura. Então, prendo a respiração e me arrasto para a sombra de um prédio abandonado, encolhendo o corpo contra a parede fria, tentando desaparecer. Rezo para que os faróis passem reto. Para que não notem nada. Para que eu seja apenas mais uma sombra entre tantas.
Os segundos se arrastam, e só quando o carro finalmente segue adiante é que consigo soltar o ar preso nos pulmões. Minhas forças vacilam, minhas mãos tremem, mas eu não cedo. Não posso. Não agora.
A bebê em meus braços abre os olhos. Me olha com aquele semblante assustado, tão frágil, como se buscasse em mim uma certeza que eu mesma não tenho. Mas eu finjo. Sorrio em meio às lágrimas e aperto-a ainda mais contra meu peito, como se pudesse blindá-la do mundo. A mãozinha dela encontra meu pingente de estrela, herança da minha mãe. Seguro o metal frio, como quem segura um norte.
— Mesmo atrás das nuvens, elas continuam lá. — ela sempre dizia e hoje, eu preciso acreditar nisso para manter os pés em movimento.
Os passos ecoam dentro de mim como um tambor de guerra. Cada batida do coração é um aviso: o tempo está acabando. Estou perto. Preciso estar.
O cheiro da maresia se mistura ao da chuva, trazendo um sopro de esperança. O mar está próximo. Mesmo sem vê-lo, sinto suas ondas rugindo ao longe, como cúmplice da minha fuga. Cada onda que se quebra contra as pedras é como um chamado: Siga. Não olhe para trás.
E então, à frente, uma luz. Fraca, vacilante, mas real. A lamparina brilha no escuro como um farol de sobrevivência. Meu coração dispara. Pode ser ele. O amigo que me prometeu ajuda. O único que ousou arriscar-se para me estender a mão. Minha salvação... ou minha ruína.
O medo me paralisa por um segundo. E se for uma armadilha? E se tudo não passar de mais um truque para me arrastar de volta?
Mas então olho para ela. Tão pequena, tão inocente, tão alheia ao caos. Ela não pode pagar o preço da minha hesitação.
— Vai dar certo — sussurro, mais para mim mesma do que para ela. E nesse momento, transformo a frase em promessa.
Dou o próximo passo.
E outro.
E outro.
A mochila pesa mais do que nunca, não pelos objetos dentro dela, mas pelo peso de tudo o que deixo para trás: correntes, grades, fantasmas, um futuro que nunca escolhi. E mesmo que o mundo inteiro se levante contra mim, eu vou prosseguir, eu necessito.
Se não posso salvar quem fui, salvo quem carrego. E, mesmo invisíveis, as estrelas me guiam e me mostram o caminho para me tirar desse inferno.
Continua...