CAPÍTULO 2

1514 Palavras
CAPÍTULO 2 Anna Winslow Anos depois... Bip... Bip... Bip... O despertador toca pela segunda vez, insistente, como se zombasse da minha exaustão. Abro os olhos devagar e solto um suspiro pesado. Trabalhei até tarde no restaurante ontem e sinto cada músculo do meu corpo implorando por mais cinco minutos. Mas não posso. Nunca posso. Antes mesmo de desligar o despertador, escuto um resmungo baixinho ao meu lado. Viro o rosto e lá está ela, encolhida, escondida sob o cobertor, o rostinho amassado pelo travesseiro. Minha menina. O sorriso nasce sozinho nos meus lábios. Por um instante, todo o peso da noite anterior desaparece. — Loitte… — sussurro, balançando de leve seu ombro. — Hora de acordar, detetive. A missão hoje é chegar à escola antes do sinal. Ela abre um dos olhos, preguiçosa, como se o mundo inteiro pudesse esperar só mais cinco minutos. Depois suspira fundo e vira de costas para mim, agarrando o travesseiro como se fosse um escudo contra a obrigação de acordar. Seus cabelos pretos, lisos e brilhantes, caem em cascata sobre o rosto delicado, contrastando com a pele clara que sempre parece ainda mais macia pela manhã. — Stella… — chamo baixinho, tentando não sorrir. É então que ela se vira rápido, abrindo os dois olhos azuis, grandes e cheios daquela curiosidade que nunca se apaga. Há algo nesses olhos que parece enxergar além do que qualquer criança da idade dela deveria ver, como se sempre estivesse tentando decifrar mistérios invisíveis para os outros. — Mamãe, já disse que meu nome de verdade é Loitte. Nenhum detetive sério usa o nome comum de casa. Se eu for só Stella, nunca vou descobrir os mistérios do mundo… — protesta, a voz manhosa, mas convicta, como quem defende a própria identidade. Deixo escapar uma risada leve, tentando disfarçar a pontada de preocupação que já sinto no peito. — Ah, entendi. Então a minha grande detetive Loitte não quer ir para a escola hoje? Logo você, a melhor investigadora dos mistérios do mundo? — Eu não quero ir… — diz baixinho, a voz delicada, mas com firmeza. — Porque minha estrelinha? — pergunto, com a voz carregada de carinho. — Você sabe que as grandes missões são feitas na escola. Ela fica em silêncio por um momento. Então, com o olhar marejado e os lábios apertados, solta de uma vez: — Porque a Emily vai rir de mim de novo. Ontem ela disse que meu cabelo é feio, que eu sou boba e… que eu nunca vou ser uma detetive de verdade. Meu coração despenca. Por dentro, uma raiva quente me invade, mas por fora, preciso respirar fundo e segurar a expressão. Não posso deixar que ela veja o quanto isso me machuca. — Oh, meu amor… — digo, puxando-a para o meu colo. O peso leve do seu corpo me aperta por dentro; tão pequena, tão frágil… e, mesmo assim, marcada por dores que não caberiam em ninguém. Ela se encolhe em mim, buscando abrigo, e o seu cheirinho doce me invade. — Você sabe que nada disso é verdade, não é? — murmuro, tentando não deixar minha voz desabar. Ela balança a cabeça, sem muita convicção, e os olhos azuis brilham com uma mistura de teimosia e mágoa. — Mas dá raiva, mamãe… — sussurra, os punhos pequenos fechados com tanta força que quase tremem. — Eu só quero brincar, mas ela fica falando essas coisas. Eu vou trancar ela no banheiro de novo e colocar um ratinho pequenininho na mochila dela. Por um instante, sinto o riso subindo à garganta. É impossível não lembrar. O corredor da escola, a confusão, a Stella com aquela carinha de travessa depois de trancar as meninas no banheiro ou de esconder um rato dentro da mochila alheia. Eu deveria repreendê-la com dureza, mas a verdade é que vejo nela o reflexo vivo da minha própria infância. Eu também não deixava barato. Eu também devolvia as feridas, até mais fundo do que recebia. A diferença é que eu fazia porque queria, porque escolhia a rebeldia. Ela, não. Ela faz porque sente que precisa. Porque o mundo a cutuca cedo demais. — Olha para mim, detetive… — seguro o rostinho pequeno dela entre minhas mãos, tentando segurar também o riso que insiste em escapar. — Você não vai trancar ninguém no banheiro, nem levar ratinhos para escola outra vez, combinado? Antes que ela proteste, cutuco sua barriguinha, e a gargalhada explode alta, clara, varrendo o ar pesado como se fosse música. — Tá bom, tá bom, mamãe, eu não levo! — ela diz, ainda rindo, o rosto todo vermelho. — Mas ela não pode mais me provocar! Sorrio de canto. — Está bem, a mamãe vai resolver isso. E filha, lembre-se do que a mamãe sempre te diz: Você é a menina mais linda e a que tem o maior coração desse mundo. — digo, e os olhinhos dela brilham. — Você é corajosa, esperta, gentil… e não deixe ninguém te fazer duvidar disso. Nem a Emily. Nem ninguém. Então se controla, porque senão… as garras da mamãe vão parar na sua barriguinha de novo! — levanto a mão como se fosse atacar. Ela ri, travessa, tentando se afastar. — Tá bom! A senhora é a melhor mamãe do universo inteirinho! Eu prometo de dedinho que não vou fazer mais isso. — levanta o seu dedo mindinho para selar a sua promessa. Mas o brilho arteiro nos olhos dela me diz exatamente o contrário: era só questão de tempo até a próxima travessura. (...) Após levantar, arrumei a pequena mesa da cozinha e preparei o nosso café: pão com manteiga e leite com chocolate. O cheiro quente se espalha pelo ar, preenchendo a casa com um aconchego que eu me esforço todos os dias para manter. Antes disso, havia terminado de ajeitar a bolsa da Stella, troquei o rastreador que sempre deixo escondido ali, o antigo estava falhando e coloquei um novo sem pensar muito, como quem verifica se os cadernos e lápis estão no lugar. Uma mãe sempre cuida do seu bem mais precioso e Stella era o meu. Então ela aparece ainda sonolenta, o uniforme já colocado, os cabelos escuros emoldurando o rosto delicado, mas linda, minha estrelinha. Sempre será. — A tia ainda não estou do trabalho? — ela pergunta, mordendo o pão. Assinto. — Não. — respondo. — Mas ela volta em poucos dias. Minha mente, como tantas vezes, voa até Camilla. Naquela noite de fuga, foi o irmão dela quem abriu a porta para eu correr com Stella nos braços. Mas foi Camilla quem me segurou depois que a porta se fechou. E nunca mais soltou. Eu me via como um fardo, quebrada, com uma criança pequena e um passado cheio de cicatrizes. Mas ela nunca me olhou assim. Dividiu o que tinha, mesmo quando não era muito. Contas, dias bons e ruins, até lágrimas. Camilla é quem me arranca do silêncio, quem me lembra que eu não estou sozinha, que já sobrevivi ao pior. Enquanto Stella bebe o leite, observo-a em silêncio. Criar uma criança não é só dar comida ou teto. É estar junto. É isso que me apavora: não ser suficiente. — Mamãe, hoje você volta cedo? — a vozinha dela me traz de volta, doce e direta. Sorrio, mesmo com o coração apertado. — Acho que sim, amor. Vou tentar chegar antes de você dormir. Ela me devolve um sorriso leve, daquele jeitinho que me desmonta, mas sei que não acredita de verdade. Stella já conhece o peso da minha rotina. — Está bem, mamãe. Mas tenta… hoje a gente vê as estrelas de novo. Quem sabe eu encontro, dessa vez, a mais bonita e brilhante. — pede, sem cobrança, mas com aquela esperança insistente que nunca se apaga. Todas as noites ela procura. Aponta o telescópio, vasculha o céu, compara uma estrela à outra. Nunca encontra “a mais bonita”, nunca está satisfeita. E, por isso, toda noite recomeça. Esse é o contraste dela: Stella não me sobrecarrega em casa, nunca exige além do que posso dar. Parece até cuidar de mim, como se quisesse aliviar meu cansaço. Mas sei que não é uma menininha calma, a escola vive me chamando pelas travessuras, seja por trancar colegas no banheiro ou por levar “amiguinhos” improváveis escondidos na mochila. Esse é o jeito dela: minha pequena detetive. Cheia de energia, cheia de vida. Toco seus cabelos escuros e sinto uma paz que só ela consegue me dar. — Pode deixar, minha detetive Loitte. Ela sorri, e, nesse instante, o mundo parece menos pesado. As estrelas são o nosso refúgio. O nosso lugar secreto. Toda vez que olho para o céu com Stella, sinto que não estamos sozinhas. Como se cada ponto de luz fosse um pedaço da minha família que partiu, brilhando lá de cima. E é por isso que, quando ela insiste em procurar a estrela mais bonita, eu nunca n**o. Porque, mesmo que nunca a encontre, eu sei que já a tenho bem aqui comigo. Ela… a minha estrelinha. Continua...
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