Anna Winslow
Depois de deixar Stella na escola, sigo a passos rápidos para o restaurante. O frio da manhã corta minha pele, mas não é nada perto do aperto no peito que sempre sinto ao atravessar aquelas portas. Trabalho é trabalho, mas nunca me sinto em casa em lugar nenhum. Sempre a peça errada no quebra-cabeça, sempre pronta para ser descartada.
No restaurante, que mais parece um bar de esquina do que um lugar decente para refeições, visto o avental, amarro o cabelo e me coloco atrás do balcão. O movimento cresce rápido: mesas lotando, pedidos chegando, o ar tomado por risadas e pelo cheiro insistente de fritura. Tento me concentrar no trabalho, mas sinto os olhares atravessados de Poppy, como espinhos na pele.
Ela nunca fez questão de disfarçar a implicância desde o meu primeiro dia. Não é só porque eu era nova, nem porque errava pedidos de vez em quando. É porque, para o azar dela, fui simpática com a única pessoa que ela acha que lhe pertence: o filho do patrão, que também é namorado dela.
Poppy me olha como se cada palavra minha fosse uma ameaça, como se cada sorriso meu fosse uma provocação. E eu, sem querer, me tornei o alvo perfeito para o ciúme dela.
Ela se aproxima, equilibrando a bandeja com firmeza e um sorriso falso que já conheço bem, desses que não chegam nem perto dos olhos. O sorriso dela não é um gesto de simpatia, é uma promessa silenciosa de guerra.
— Anna, limpa a mesa três? Está suja de novo. — O “de novo” pinga veneno.
Mordo por dentro a vontade de responder.
— Já estou indo. — mantenho a voz calma.
Pego o pano e vou até a mesa indicada, que fica colada à mesa quatro, justamente onde um grupo entra aos risos e se espalha sem cerimônia. Os rapazes com seus casacos caros, as garotas maquiadas como se fosse festa, todas já com aquele ar de superioridade que conheço bem. São os tipos que vêm aqui só para se divertir às custas de quem está trabalhando.
Enquanto passo o pano na mesa três, sinto o primeiro ataque.
— Ei, gatinha. — um dos rapazes me chama, alto o bastante para todos ouvirem. — Vem servir a gente aqui.
Respiro fundo, tentando ignorar. Seguro o caderno de anotações com força e me viro.
— Podem fazer seus pedidos. — digo firme, tentando manter o tom profissional.
Eles se olham entre si e riem. Um deles apoia o cotovelo na mesa, me encarando de cima a baixo como se eu fosse uma mercadoria exposta.
— Você é linda, garota. — murmura, devagar.
Engulo a resposta ácida que queima na garganta. Mas não é ele quem ataca de verdade, é uma das garotas, a loira com sorriso debochado, que me mede como se eu fosse sujeira.
— Linda? — ela solta uma risada. — Ah, por favor…você com certeza está precisando usar óculos. Aposto que pedia esmola antes de trabalhar aqui.
O grupo explode em gargalhadas. O sangue me ferve. Finjo que não ouvi, volto a anotar, mas meu silêncio só os alimenta. Outra, com a voz mais aguda, acrescenta:
— Diz aí, qual é? Já deu para os chefes quantas vezes para manter esse emprego de quinta categoria, aí?
Minha mão treme em volta da caneta. Eu sei que deveria calar, sei que deveria engolir como sempre faço. Mas a frase “Já deu para os chefes quantas vezes” ecoa na minha cabeça como um soco. Junto com Stella, as contas, Camilla… tudo gira, lateja.
Levanto os olhos devagar.
— Acho que está me confundindo com outra pessoa. — digo, firme, a voz baixa, mas cortante. — Porque não sou eu quem precisa se rastejar para conseguir atenção.
O silêncio que cai pesa. Ela arregala os olhos, os lábios se contraem e, num rompante, a cadeira arrasta no chão com um estalo agudo.
— O que você disse? — ela cospe as palavras, se inclinando na minha direção, o perfume enjoativo me invadindo.
Seguro o caderno contra o peito, o coração disparado, mas não desvio o olhar.
— Você ouviu bem.
O dedo dela quase toca meu rosto.
— Sua v********a insolente… como ousa responder a uma cliente?
Respiro fundo e deixo a frase sair, fria como gelo:
— Cliente? Não. Você é só um espetáculo barato… dessas que todo mundo aplaude rindo, mas ninguém leva a sério.
O impacto é imediato. O rosto dela perde a cor, os olhos se arregalam, e a fúria toma conta. Ela não aguenta. Avança e me empurra com força, me fazendo cambalear para trás, quase caio. Meu corpo inteiro reage. Larguei o caderno no chão e, antes que pudesse pensar, minhas mãos foram ao ombro dela e a empurrei de volta.
Ela volta furiosa, me agarrando pelo braço. O restaurante se agita: cadeiras batendo, vozes, risadas nervosas. Quando sinto os dedos dela tentando puxar meu cabelo, algo em mim estala.
Avanço. Seguro a gola da blusa dela e a empurro contra a mesa. Pratos e copos se espatifam, respingos de bebida voam no ar. Ela grita, eu grito de volta, um som rouco, animal, vindo da garganta. O sangue pulsa alto nos ouvidos.
— CHEGA! — a voz do meu chefe ecoa, mas já estou em cima dela, os braços tremendo de raiva.
Mãos me seguram por trás, me afastam com força. Poppy é a primeira a aparecer, claro, com aquele sorriso venenoso, como se tivesse esperado por esse espetáculo desde o início.
Eu ainda tremo, o peito arfando, as mãos cerradas em punho. A outra se recompõe desajeitada, maquiagem borrada, me olhando como se quisesse me matar enquanto eu seguro uma parte do seu cabelo em minhas mãos.
— Você está maluca, Anna? — a voz do meu chefe rasga o silêncio, dura, e seus olhos encontram os do filho, Samuel, que parece tão surpreso quanto eu pela forma como tudo saiu do controle.
Respiro fundo, o peito doendo.
— Eles me provocaram, senhor Relish, me desrespeitaram. — digo, firme, tentando manter a compostura.
— Mentira! — a mulher que me insultou dispara, vitoriosa, os dentes brilhando num sorriso c***l. — Essa garota que avançou em nós, ela é louca!
— Ah, sua… — começo, mas Poppy se adianta, aproveitando o momento para me humilhar.
— Viu aí, sogro? — diz, apontando para mim. — Eu te avisei! Sabia que um dia a Anna ia te trazer grandes problemas. Não é a primeira vez que ela destrata os clientes. Agora agrediu uma! Isso é o cúmulo do absurdo.
Fecho os punhos, sentindo o sangue ferver, mas me forço a não perder o controle.
— Então a gatinha é arisca faz tempo. — um dos rapazes comenta, arrancando risadas do grupo.
— Eu exijo providências imediatas, ou então vou contar para os meus milhões de seguidores sobre o atendimento desrespeitoso e absurdo que sofri nesse restaurante. — a moça que me provocou continua, a voz carregada de falso poder.
Meu chefe suspira, cansado.
— Não será necessário, senhorita. Anna será demitida agora mesmo.
O mundo gira.
O chão se abre.
— Pai… — Samuel tenta, hesitante, mas a voz dele some no ar.
— Anna, já conversamos sobre isso. Aqui não é lugar para escândalo. É a quarta vez. Mas agora… você passou dos limites.
— Eu só me defendi — digo, a voz firme, mas sinto os olhos queimarem com a lembrança da minha filha. O medo de não ter nada para dar a ela me corrói.
— Devia ter pensado nisso antes — Poppy solta, venenosa, saboreando cada palavra.
Meu chefe não hesita:
— Pegue suas coisas e saia agora mesmo.
As mesas me observam em silêncio pesado. Alguns cochicham, outros riem, outros só olham com pena. Samuel não me defende. Ele apenas segue o pai… e a namorada, como um covarde que se esconde atrás do silêncio.
Eu ergo o queixo, mesmo sentindo a alma despedaçar jogando os fios de cabelos da garota no chão. Não vou dar a eles a satisfação de me ver quebrada. Quando estou na sala dos funcionários pegando a minha bolsa, Poppy surge á minha frente, radiante como se tivesse ganhado um troféu.
— Ah, quem diria, Anna! Finalmente você vai embora!
Meu sangue ferve, mas não vacilo. Dou um passo à frente, encaro Poppy e deixo um sorriso frio escapar.
— Conseguiu, né? Mas não por mérito… por medo. Medo de não se garantir com o Samuel.
O sorriso dela vacila, a satisfação se desfaz em raiva.
— Você acha mesmo que ele ia querer você? — cospe, rindo. — Uma mulher pobre, sem nada. E ainda com uma filha para criar.
Ela toca fundo, mas não me abalo. Ergo o queixo, firme.
— Cuidado, Poppy. Quem fala de criança revela o próprio tamanho.
Ela força outro sorriso.
— Não falei mentira. Tomara que agora você aprenda a não se jogar em cima do namorado dos outros. Boa sorte no próximo emprego, sua pobre coitada.
Solto uma risada baixa, carregada de desdém.
— Pobre coitada é você, que precisa segurar homem no grito. Vive com medo de perder o seu "alecrim dourado". Você me dá pena, Poppy.
Os olhos dela tremem, e eu encerro, firme:
— Adeus. — solto com um sorriso frio, caminhando até a porta. Mas antes de cruzá-la, viro devagar, olho nos olhos dela e deixo minha voz cortar o ar. — Ah… sabe o que dizem sobre cobras? Elas podem trocar de pele mil vezes, fingir renovação, mas nunca perdem o veneno. E você, Poppy… é a mais peçonhenta de todas. Só resta esperar o dia em que vai morrer pelo próprio bote.
Então viro as costas e sigo. Não por estar vencida… mas porque não vou me rebaixar ao nível dela.
Quando deixo o restaurante para trás, sinto como se cada passo fosse feito em cacos de vidro. O riso abafado das mesas ainda ecoa nos meus ouvidos, como se o mundo inteiro tivesse rido de mim. Ergo o queixo, finjo dignidade… mas por dentro, estou quebrada.
O sol queima alto, implacável, quase debochado. Fecho os olhos por um instante, tentando segurar a onda que ameaça transbordar. Aquele nó na garganta insiste em crescer, mas não posso chorar. Não aqui. Não agora. Começo a contar até três, na esperança de não desabar enquanto ando, então... olho para o relógio.
Quase três da tarde.
Quase a hora de buscar a Stella na escola.
Meu peito aperta de outro jeito. Minha menina. Quase nunca sou eu quem vai buscá-la. Na maioria dos dias, pago a vizinha para fazer isso, porque preciso trabalhar para garantir o arroz do jantar. E cada vez que penso nisso, dói: a infância dela escorrendo pelos meus dedos, porque eu não consigo estar presente.
Mas hoje… hoje sou eu quem vai.
Apresso o passo, mesmo com as pernas pesadas, porque sei o quanto esse pequeno gesto significa para ela.
E então a vejo.
Stella surge pelo portão da escola com a mochila maior do que ela, o cabelo preso de qualquer jeito e as bochechas coradas do calor. Quando me encontra, os olhos dela brilham como se eu fosse o sol. O sorriso explode, e antes que eu perceba, ela já corre em minha direção, braços abertos, gritando:
— Mamãe!
Eu me ajoelho sem pensar. O impacto do abraço dela contra o meu peito é tão forte que parece colar de volta todos os pedaços que estavam soltos dentro de mim. O cheiro de tinta guache e chocolate barato me invade, e eu rio também, um riso trêmulo, mas verdadeiro, o primeiro do dia.
— Oi, minha estrela… — sussurro, apertando-a contra mim, como se nunca quisesse soltar.
Ela me olha radiante, olhos faiscando.
— Você veio me buscar! Eu tô tão feliz!
Aquela frase… simples, inocente… rasga meu coração em dois. Para ela, é só alegria. Para mim, é também culpa, a lembrança de quantas vezes não pude estar aqui.
— Sim, meu amor. Hoje eu vim só pra você. — respondo, engolindo as lágrimas. — Agora me conta como foi seu dia enquanto caminhamos?
E ela fala, fala sem parar: das amigas, da professora, de um desenho cheio de cores que fez. Eu a ouço, mas a verdade é que passo o caminho todo olhando para ela, gravando cada detalhe. Cada riso, cada gesto pequeno. E penso: não importa o quanto o mundo tente me derrubar… enquanto esses olhos brilharem para mim, eu vou levantar.
Porque sei: mesmo que o mundo inteiro me vire às costas, eu tenho um motivo para continuar.
Ela.
Continua...