Anna Winslow
Horas depois...
Depois de ajudar Stella com a lição de casa, nos jogamos no sofá para assistir a Scooby-Doo, Cadê Você? Um desenho que retrata as descobertas de muitos mistérios do mesmo jeitinho que Stella gosta. Ela riu alto das piadas bobas entre Scooby e Salsicha, e, por alguns instantes, me permiti esquecer o peso do dia. Mas quando a noite caiu e já estávamos à mesa para jantar, a campainha do apartamento tocou.
Estranhei.
Camilla estava viajando, não poderia ser ela. Antes que Stella corresse para atender, me levantei rápido. Mas antes de abrir, olhei pelo olho mágico, me deparei com a última pessoa que esperava ver depois de um dia como aquele.
E então abrir a porta.
— Oi. — Samuel sorriu de um jeito tímido, quase sem graça.
Suspirei fundo, sem saber como reagir, e antes que tivesse tempo para pensar: Stella surgiu correndo e se jogou nos braços dele.
— Tio Sam! — ela gritou, abraçando-o com tanta força que até sorri sem querer.
Ele correspondeu, rindo baixinho.
— Olha se não é a detetive mais esperta e inteligente... — perguntou, divertido. — Você está bem detetive Loitte?
— Estou sim! — ela disse, os olhinhos brilhando. — A mamãe saiu mais cedo do trabalho hoje e foi me buscar na escola! Eu fiquei tão feliz!
Samuel me olhou de canto, com um sorriso sem graça, enquanto Stella falava sem parar.
— Que bom, Loitte. — respondeu ele, ajeitando o cabelo dela. — Mas será que você poderia me emprestar sua mãe por uns minutinhos?
Ela bufou, cruzando os bracinhos.
— Aff, criança nunca pode ouvir nada! — reclamou, arrancando risadas de nós dois.
— Stella. — chamei, tentando soar firme.
Ela me lançou um sorriso travesso.
— Tá bem, mamãe… mas o tio Sam só fica liberado se jantar com a gente! Ele me prometeu que ia me ajudar a achar a estrela mais bonita do céu!
Abri um sorriso leve, balançando a cabeça.
— Vai, mocinha. — falei, e ela entrou de volta no apartamento.
Samuel respirou fundo, os olhos presos em mim.
— Eu vim te trazer isso. — estendeu um envelope.
Peguei, confusa.
— O que é?
— Seu pagamento.
Arregalei os olhos.
— Nossa… eu achei que seu pai fosse descontar depois de todo aquele caos.
Ele negou com a cabeça.
— Não. Ele ficou surpreso, sim, mas jamais faria isso. E… eu entendi o que aconteceu.
— Entendeu? — ironizei. — Mas se calou.
Samuel assentiu, com um peso que parecia até maior que o dele.
— Eu sei. É complicado… você sabe como é.
Cruzei os braços.
— Sei, sei sim! Que você nunca teria coragem para enfrentar seu pai.
Ele não tentou negar. Apenas sorriu de um jeito triste.
— Anna, você sabe que eu gosto muito de você. Só que… é meu pai...
Respondi com um sorriso sem humor. Samuel sempre foi correto demais. Nunca quebra regras, nunca levanta a voz, nunca se rebela. Eu sei que ele é bom… mas às vezes me pergunto se realmente consegue se sentir vivo, livre, capaz de tomar suas próprias decisões. E é uma pena ele se prender a alguém tão ardilosa quanto a Poppy.
— Você também sabe que, se sua namorada descobrir que você está aqui, ela vai surtar, né?
Ele deu uma risada baixa.
— Eu sei. Mas não me importo. Estou apenas com uma amiga. Além do mais… se eu for embora sem jantar, a Loitte vai me odiar. Eu prometi ajudá-la a achar a estrela perfeita.
Eu ri, balançando a cabeça.
— Então entra logo, antes que ela volte para te buscar.
E assim, Samuel ficou.
Jantamos juntos, rimos, conversamos como velhos amigos. Ele me contou que o pai ficou chateado por me mandar embora, sabendo que tenho uma filha. Ouvi em silêncio. No fundo, eu entendi… mas entender não diminui a dor de ser humilhada daquele jeito.
Depois do jantar, fomos todos para a janela. Stella apontava o telescópio para o céu, tentando escolher a estrela mais bonita. Samuel tentava ajudá-la, mas, como sempre, nada parecia bom o bastante.
— Não é essa, tio Sam! — ela reclamou, rindo. — Eu quero a estrela perfeita, que tenha um brilho diferente, mas... ninguém ainda conseguiu achar.
Ele fingiu indignação, e ela gargalhou, abraçando-o.
Eu fiquei apenas observando a interação dos dois.
E foi nesse instante que senti o contraste dentro de mim. A cena era doce, quase familiar, e meu coração apertou de um jeito estranho. Samuel era correto demais, tão previsível que às vezes parecia ser de outro mundo. Um amigo de verdade.
Mais tarde, Stella adormeceu depois de tanto desejar sua “estrela perfeita”. E eu fiquei em silêncio, olhando para o céu escuro, tentando acreditar que não era porque o dia tinha sido r**m que os próximos também seriam.
Pelo menos… era o que eu esperava.
(...)
Alguns dias depois...
Faz alguns dias que entrego currículos em todos os lugares possíveis: Cafés, lanchonetes, padarias… mas nada.
Até que descobri o pior... A confusão no restaurante tinha se espalhado rápido demais, graças à língua venenosa da Poppy, que espalhou a história para os estabelecimentos próximos. E agora, mesmo com experiência, meu nome carrega um novo sobrenome: confusão e isso acabou com a minha reputação.
Ah, como eu queria arrancar o cabelo daquela cobra… mas não posso. Não agora. O dinheiro que recebi m*l vai dar para ficar até o final do mês, e Stella depende de mim.
Quando cheguei em casa, o céu lá fora já estava pintado em tons de laranja e violeta, e eu carregava no corpo o peso de mais um dia perdido enquanto fazia comida. Foi então que ouvi a porta abrir e passos apressados ecoarem pelo corredor.
— Tia Camilla! — a voz de Stella explodiu em alegria antes mesmo que eu pudesse entender o que estava acontecendo.
Ela correu e se atirou nos braços da minha melhor amiga. Camilla a ergueu no ar com facilidade, rindo alto, e por um instante o apartamento inteiro pareceu respirar de novo.
— Minha Loitte, minha detetive preferida! — disse Camilla, enchendo de beijos o rosto da pequena.
Fiquei ali parada, apoiada na colher de p*u, só observando. Meu coração, que vinha tão murcho, se aqueceu um pouco. A falta que Camilla me fazia nesses dias era quase palpável. Ela vivia ocupada com os clientes do escritório de advocacia, alguns casos tão grandes que a obrigavam a viajar para outras cidades. Mas, quando voltava… era como se a casa se enchesse de cor.
— Você chegou bem na hora da janta! — Stella disse, animada. — Eu estava ajudando a mamãe a colocar a mesa.
— Olha só! — Camilla sorriu, colocando a bolsa no sofá e me encarando com um olhar que lia além da superfície. — Essa minha parceira já está virando uma dona de casa.
Stella gargalhou, orgulhosa.
Mas Camilla não demorou, me observando. Ela percebeu que tinha algo diferente, sempre percebe. Talvez pela tensão no meu rosto, ou a exaustão nos meus ombros. E aproximando-se, com a voz baixa, quase num sussurro para não preocupar a pequena, me perguntou:
— Está tudo bem, Anna?
Tentei erguer um sorriso, o mais convincente que consegui.
— Está sim. Estou só terminando a comida.
Ela inclinou a cabeça, desconfiada.
— Você está triste, não está? Aconteceu alguma coisa nesses dias?
— Depois eu explico pra você. — falei quase inaudível.
Mas Stella, que estava com os ouvidos bem atentos, escutou e resmungou baixinho.
— Aff, nunca posso ouvir nada!
Nós duas caímos na risada, e por alguns instantes a leveza voltou. Stella monopolizava as conversas com histórias da escola, animada e risonha, enquanto eu sentia meu peito apertar de alegria e alívio.
Depois de colocar Stella na cama, voltei para a sala. Camilla me esperava, sentada no sofá, postura firme, olhar penetrante, como se pudesse ler cada canto do meu cansaço e da minha frustração. Ela cruzou os braços, mas não tinha julgamento, apenas acolhimento.
— Agora me conta tudo. — disse, a voz firme, mas ainda carregada de carinho. — Não tente esconder nada. Quero saber cada detalhe.
Respirei fundo e contei.
A humilhação no restaurante, às risadas abafadas, os olhares de desprezo. E enquanto falava, percebia a veia no pescoço dela pulsar. Sabia que Camilla odiava injustiça e não reagiria bem ao que aconteceu comigo.
Camilla bufou, quase rangendo os dentes de indignação.
— Anna… — disse, a voz dura agora, sem suavidade. — Isso é inaceitável! Poppy ultrapassou todos os limites. Eu juro… se fosse comigo, estaria processando essa cobra agora mesmo. Como ela ousa…?
Sorri, meio sem jeito. Mas era bom sentir alguém com tanta força ao meu lado.
— E tem mais… você merece muito mais do que o que Poppy te fez passar. Trabalhar em restaurante é digno, mas não é o bastante para alguém com o seu talento. Você nasceu para conquistar mais, para mostrar sua força em lugares onde realmente vai ser reconhecida. Poderia estar comigo no escritório, aprendendo, crescendo, brilhando…
— Eu sei, amiga… mas… você sabe o porque trabalhei lá. — murmurei, sentindo a culpa apertar meu peito.
Ela revirou os olhos, e por um instante, quase me fez rir de novo, mas havia firmeza em cada gesto.
— Anna, cinco anos… Cinco anos! — disse, apertando levemente minha mão. — Você não precisa mais se esconder. Ninguém vai atrás de você. Meu irmão confirmou. Eu sei, você não confia totalmente em ninguém. Mas pode acreditar: agora é seguro. Está na hora de viver de verdade. Não como quem foge… mas como quem é livre.
As palavras dela me cortaram fundo, mas eu não queria prolongar a discussão. Suspirei e aliviei o clima:
— Certo… mas, por agora, só preciso de uma taça de vinho e ouvir da minha amiga como foi a viagem.
Ela arqueou a sobrancelha, com aquele sorriso travesso que não aceita desculpas:
— Hummm… amei a ideia. Mas não tem nada aqui. Você vai ter que ir comprar. E já sabe: atiçou a minha vontade, não vai conseguir me fazer desistir. Enquanto isso, vou tomar um banho.
Revirei os olhos, cansada:
— Eu não quero sair, não! Passei o dia inteiro entregando currículos. Minhas pernas estão mortas.
Ela gargalhou, enchendo o apartamento com seu riso leve:
— Ah, deixa de drama! Você já tomou banho, já descansou. Eu nem isso! Vai lá, pega vinho e chocolate. Hoje a gente afoga as mágoas juntas.
Sorri, sentindo o peso do dia ceder um pouco, e me levantei:
— Está bem… aproveito e compro umas coisas que estão faltando. Já volto.
Peguei a minha bolsa e, por um instante, senti que podia respirar em paz. Camilla tinha esse dom: transformar cinzas em faíscas, e me fazia acreditar que talvez eu também pudesse recomeçar.
Saí pela porta com a esperança de, finalmente, viver em liberdade. Mas a noite me envolveu como se soubesse algo que eu não sabia.
Havia um peso no ar, um sussurro que me dizia que eu deveria ter ficado.
E, ainda assim, avancei. Afinal, que m*l poderia acontecer tão perto de casa?
Continua...