A porta bateu com força. Eu ainda estava no meio da sala, com os dedos tremendo, quando ouvi os passos apressados.
— Aurora?
A voz da minha mãe.
Viva.
Viva.
Ela apareceu no corredor como um furacão. A sacola do mercado caiu no chão. A maçã rolou. E eu... congelei.
— O que aqueles homens queriam?
Não consegui responder. A garganta travou. Só consegui olhar pra ela. Os cabelos castanhos soltos. O suor na testa. Os olhos preocupados. A blusa manchada de farinha.
Viva.
Deus... ela estava viva.
Eu corri.
Literalmente corri até ela.
Abracei como se pudesse segurá-la ali pra sempre. Os braços ao redor da cintura dela, o rosto enfiado no ombro, o cheiro de pão e sabão. Apertei como se o tempo não fosse me arrancar dela de novo.
— Aurora? — ela sussurrou. — Que foi isso, meu amor?
— Nada. — menti, só pra não soltar. — Só… me deixa te abraçar.
Ela demorou um segundo, mas depois me envolveu com os dois braços. Forte. Como quem entende sem perguntar.
— Aurora…
— Eu pensei que nunca mais… — a voz falhou. — Eu pensei que tinha perdido você.
Ela se afastou só o bastante pra segurar meu rosto.
— Tá me assustando. O que aconteceu?
— Eles... eles vieram do Conselho. Me convocaram.
— O quê?
O grito dela foi um t**a.
Minha mãe saiu do abraço como se levasse um choque. Foi até a porta como se ainda desse tempo. Como se os soldados estivessem ali, esperando na calçada.
— EU VOU FALAR COM ELES!
— Mãe, não!
Corri até ela. Segurei pelo braço. Ela tentou soltar.
— EU VOU IMPLORAR! VOCÊ TEM DEZOITO ANOS, É UMA ÔMEGA! VOCÊ NÃO DEVERIA IR PRA ESSA PORCARIA DE TORNEIO!
— Eles não vão ouvir, mãe.
Ela me encarou.
— Eu ajoelho se for preciso. Eu me arrasto. Mas não deixo levarem minha filha!
— Você não vai se ajoelhar. — segurei os ombros dela. — Você não vai se humilhar.
— Aurora…
— Escuta. Eu vou. Mas eu volto. Eu só preciso que você fique aqui. Que me espere. Que confie em mim.
Ela mordeu o lábio. Os olhos vermelhos. As mãos tremiam.
— Você não entende. Eles levam as meninas… e elas não voltam.
“Eu sei.”
Eu sabia.
Eu vi o corpo dela na vida passada. Vi o sangue. Vi os olhos vazios depois de morrer tentando me proteger.
Mas agora…
— Dessa vez vai ser diferente, mãe.
— Como?
— Porque eu prometo.
Ela caiu de joelhos. Abraçou minhas pernas. E chorou. Como da primeira vez. Mas agora, eu não chorei com ela.
Agora, eu era a que sabia demais.
Me agachei. Enxuguei as lágrimas dela com os polegares.
— Confia em mim.
Ela assentiu. Só com a cabeça. Como se estivesse engolindo vidro.
Ficamos ali no chão por longos minutos.
E então ela falou.
— O que eu faço agora?
— Você vive. Me espera. E quando tudo acabar… eu volto pra casa. Com vida.
— Você jura?
— Juro.
Mas não disse com o coração. Disse com o que sobrou dele.
Porque eu sabia o que me esperava.
E mesmo que eu conseguisse mudar tudo... o sangue ainda seria cobrado.
Não dormi.
Passei a noite sentindo o cheiro da minha mãe. O toque dela no meu cabelo. As mãos trêmulas tentando fingir que aquilo era só mais uma viagem.
Ela preparou minha mochila como se eu fosse pra escola. Separou cuecas largas, sabonete neutro, bandagens. Me fez chá. Disse que ajudava com o cio. Eu deixei. Fingi que acreditava. Fingi que não lembrava do jeito que ela morreu.
De manhã, a casa parecia menor. Mais silenciosa. A chaleira assobiava no fogão, e eu queria chorar só de olhar pro bule velho. Aquele bule sobreviveu à guerra. À fome. À morte dela. Eu não.
Ela me ajudou a vestir a calça. A blusa. Prendeu meu cabelo num coque firme.
— Pronta?
Não respondi.
A carruagem estacionou sem cerimônia. Dois soldados bateram à porta. O mesmo olhar gelado. A mesma farda preta com o símbolo do Conselho no peito.
— Hora de partir.
Minha mãe segurou minha mão até o último segundo. Apertou como se pudesse me prender ali.
— Eu te amo — sussurrou.
— Eu sei.
Não disse “também te amo”. Porque se dissesse… desabava.
Entrei na carruagem sem olhar pra trás. Só me permiti respirar quando as rodas começaram a girar.
— Você demorou.
Helena. A voz mais irritante e afiada do Vale do Norte.
— Ela tá em choque.
Selena. Doce como sempre. Nervosa como sempre.
Meus olhos subiram. As duas estavam ali. Vivas. Exatamente como antes. Como se o tempo tivesse cuspido tudo de volta na minha cara.
Engoli seco.
Helena me deu um chute na canela.
— Se for pra ficar muda, senta no colo de alguém mais útil. Vai ter macho, né? Espero que tenha muito macho. Só isso já compensa esse horror.
Eu ri. Curto. Quase sem ar.
Na outra vida, Helena perdeu a cabeça no segundo mês do torneio. Literalmente. Selena... desapareceu. Nunca acharam o corpo.
Mas agora estavam ali.
— Você tá suando — sussurrou Selena.
— É só o calor.
Mentira.
Era o cio.
Meu corpo latejava. A pele ardia. As pernas formigavam cada vez que o cheiro de alguém invadia o espaço.
“Eles vão sentir. Todos eles. Você vai ser um ímã.”
— Cala a boca, Nyra.
“Que foi? Arregando no primeiro calorzinho?”
Respirei fundo. Me concentrei na paisagem borrada pela janela.
A carruagem deu um tranco e parou. A porta se abriu.
— Salão de boas-vindas. Desçam.
As botas afundaram no mármore frio como uma maldição.
A Academia era a mesma. Castelos de pedra viva. Bandeiras dos reinos. Ordem, poder, tradição enfiada na nossa goela.
Os alfas andavam como donos do mundo. Peito estufado. Mandíbula cerrada.
Os betas observavam tudo. Mãos nas armas. Olhos que não piscavam.
Os ômegas... abaixavam a cabeça.
Menos eu.
Helena puxou meu braço.
— Endireita esse queixo. Se vai morrer, que morra linda.
Sorri. Foi automático. Um reflexo de quem não quer parecer fraca.
Atravessamos o salão entre olhares e sussurros. Cada passo me lembrava que agora era diferente. Eu tinha lembranças, segredos, cicatrizes invisíveis. Eles não.
E dessa vez, eu não ia cair de joelhos.
O salão estava cheio de cheiro de medo.
Centenas de jovens, um de cada canto desse maldito mapa. Alfas tentando parecer maiores do que eram. Betas com cara de que já sabiam quem queriam m***r. Ômegas no canto, tentando sumir.
Grupos se formavam rápido. Por cheiro. Por nome. Por sobrevivência.
Eu não entrei em nenhum.
Fiquei parada, o coração socando o peito, como se já soubesse o que vinha.
Foi quando o ar mudou.
Denso. Quente. A pele arrepiou antes de eu entender.
Ele.
Dante entrou no salão como se fosse dele. Como se todo mundo ali fosse um detalhe. Ombros retos. Passos lentos. Aquele olhar que perfurava.
Meu estômago virou.
O tempo esticou.
As pernas fraquejaram.
“É ele.”
A voz da Nyra veio rosnando por dentro, grave, faminta, como se sentisse o cheiro dele direto na garganta.
E era isso mesmo.
O cheiro dele me cortou.
Amadeirado, quente, com um traço c***l que eu nunca consegui esquecer. Entrou pelas narinas, subiu pro cérebro, explodiu entre as pernas.
Ele ainda não tinha olhado pra mim. Mas meu corpo já sabia.
Meu corpo lembrava.
Memória. Raiva. Sangue. Desejo.
Nosso olhar se cruzou.
O mundo parou. O salão sumiu. Os sons, os cheiros, tudo se apagou. Só existia ele. E o cheiro dele. E os olhos dele.
Quis avançar. Quis fugir.
Trinquei os dentes.
— Controle isso — sibilei por dentro.
“Ele vai sentir você. E vai lembrar. Mesmo sem saber de onde.”
Engoli o grito que subia.
O cio bateu como um soco seco no ventre. Me curvei um pouco. Fingi coçar a perna. As coxas estavam molhadas.
Maldito corpo.
Maldita maldição.