Estava chovendo.
Ralph encostou a testa no vidro da janela e deixou os olhos vagarem pela escuridão do jardim. As gotas desciam devagar, pesadas, como se o céu também tivesse lembranças que preferia esquecer.
O silêncio o envolvia como um cobertor áspero.
Era tarde. Todos dormiam. Ou fingiam dormir.
Ele, não.
Sentia-se preso naquele tempo morto entre o agora e o que já passou.
Lembrou-se da infância.
Da casa fria do avô. Da poltrona de couro em que Sir Cedric Sallow se sentava como um rei silencioso, o olhar duro, a bengala sempre próxima.
— Homens não choram. Homens obedecem e vencem. —
As palavras ainda ecoavam dentro dele. Não como uma memória, mas como uma cicatriz.
Lembrou-se de Louis.
Dormindo ao lado dele quando o medo apertava à noite. Quando o avô gritava com os empregados, ou quebrava pratos apenas para afirmar domínio.
E quando nem isso bastava, ele quebrava o braço de um neto e a perna do outro. Foi assim que os tremores noturnos acabaram. Não por coragem, mas por pura sobrevivência.
Louis não sentia medo de nada.
E Ralph também não.
Não temiam a dor. Não temiam nada Não... isso, nunca, mas.
Louis era sua muralha.
E ele era a de Louis.
Cresceram assim: de costas para o mundo, costas coladas uma na outra. Se protegendo, mesmo quando tudo ao redor queria que eles se tornassem monstros.E talvez tenham se tornado, mas de formas diferentes. Louis sangrava os outros. Ralph também.Mas Ralph tinha limites. Crianças, inocentes, idosos, mulheres boas... esse era o limite.
E o limite de Louis? Era Ralph. E só ele.
Ralph ainda estava sentado quando Louis entrou no cômodo. O irmão se aproximou e lhe deu um beijo rápido no topo da cabeça, Ralph costumava fazer o mesmo com Louis.
— Senti sua falta durante o dia.
— Eu também, Louis.
Houve um silêncio breve. Ralph quebrou:
— Você não pode continuar quebrando acordos assim. Os inimigos estão crescendo. Tá ficando difícil manter o controle.
— M.ato todos. — Louis respondeu com a naturalidade de quem diz que vai ao mercado.
— Louis... para. Pensa que alguém pode estar tramando sua morte. Isso tá me fazendo sofrer.
A voz de Ralph falhou no fim.
— E você sabe que eu não sofro por qualquer coisa. Mas as coisas estão se partindo. E eu não quero ver você morrer.
Louis o olhou por um instante. Seu rosto não mostrava arrependimento. Apenas um toque de ternura.
— Eu não vou morrer. Amo você. Vou tomar cuidado.Vamos dar uma volta?
— Não.Vai pra onde, então?
— Em um dos botes. Chegaram meninas novas. Preciso apagar um pouco do estresse.
Ralph se levantou devagar.
— Não machuque as novatas.
— Não vou.
Mas Ralph não teve tanta certeza. Os “botes” eram, na verdade, navios atracados no porto. Antigos cargueiros convertidos em espaços de luxo decadente, onde festas ilegais, prostituição e s**o em excesso aconteciam noite adentro.
Louis partiu sem olhar para trás.
Ralph voltou a se sentar. Pegou um cigarro do maço, acendeu devagar e tragou com força. A fumaça subiu lenta. Ele tirou a camisa, o corpo ainda quente da raiva que não passava.
Puxou o isqueiro de prata do bolso, girou entre os dedos, como sempre fazia quando precisava se controlar.
Meia hora depois, o toque insistente do celular o arrancou do transe.
Era Adonis.
— Louis está no quarto três. Tem três garotas com ele. E ele vai matá-las. — A voz era direta, baixa e preocupada. — As meninas chegaram hoje, estão gritando. Os homens não quiseram entrar, e eu também não vou sozinho.
Adonis não tinha medo de Louis. Mas estava testando Ralph. Queria ver do que o irmão era realmente capaz. Queria forçá-lo a tomar uma decisão.
— Porra... por quê?
— Porque ele é maluco, Ralph. Todo mundo sabe disso. Só você finge que não.
Ralph fechou os olhos, o peito apertado.
— Estou indo.
— Não demora. — Adonis desligou.
Ralph se levantou num pulo. O cigarro ainda queimava entre os dedos. Nem vestiu uma camisa. Não havia tempo.
Entrou no carro e pisou no acelerador.
Quando parou, correu direto para dentro do bote. Estava atravessando o corredor quando, no meio do caos, viu Georgina sentada em um canto, vestida apenas com um vestido leve, encolhida e com medo.
Ela o viu, mas não disse nada. O olhar perdido. Antes que pudesse ir até ela, Adonis o chamou.
— Quarto três. Agora. —
Ralph seguiu com passos pesados, e sem pedir permissão, bateu na porta com força.Louis atendeu nu, com uma garrafa de uísque na mão e o rosto suado.
Ralph entrou sem esperar. As três meninas estavam amarradas na base da cama. Choravam. Sem dizer nada, Ralph foi até elas e começou a soltá-las.
— Vai acabar com a diversão, Ralph? — zombou Louis.
— Vou. Isso não é diversão. É tort.ura. É estu.pro. E chega. Não pode continuar com isso.
As meninas saíram correndo assim que foram soltas. Passaram por entre os homens sem olhar pra trás. Louis bebeu direto da garrafa, como se não tivesse escutado nada.
Uma mulher apareceu na porta.
— Quer companhia, capo?
— Quero. — Louis respondeu sem nem olhar.— Porque meu irmão deixou minha companhia ir embora?
Ralph respondeu sem paciência.
— Estou levando a noiva do meu irmão pra casa. Entre no quarto com ele, e assuma o risco.
— Eu entro. O capo é generoso depois... — disse ela com um sorriso falso.
Ralph m*l .acreditava no que estava ouvindo, saiu e olhou pra Adonis
— Devia ter levado ela pra casa antes —
— Eu não devia. Não ainda.
Adonis suspirou e Ralph estava o empurrando fundo. Ralph estendeu a mão para Georgina.
— Venha. Eu cuido de você.
Georgina hesitou. Mas a mão dele estava firme.
_ Seu paletô, Adonis.. _ Pediu.. Ralph
Adonis tirou o sobretudo que usava e entregou para Ralph que cobriu Georgina com cuidado. O vestido dela era fino e aquele lugar... frio demais.
Ralph dirigia com Georgina ao lado, ainda tremendo.
Ela não falava, apenas respirava fundo, tentando conter o pânico que ainda grudava na pele.
— Louis tocou em você? — Ralph perguntou, sem desviar os olhos da estrada.
— Não. — a voz dela saiu baixa. — Mas... o que ele fazia com as mulheres? Eu podia ouvir os gritos. Eram gritos reais. Era dor...
Ela virou o rosto na direção dele, os olhos cheios de medo.
— Vai ser assim comigo também? Quando eu for esposa dele..__ a voz dela tremia de terror..
Ralph apertou o volante com tanta força que os dedos estalaram.
— Não vai. Juro que não. Eu vou estar lá. Não vou deixar ele te machucar. Eu vou resolver isso.
Estacionou em frente à casa, desligou o motor e virou-se para ela.
— Entre. A partir de amanhã, Adonis vai fazer sua segurança. Qualquer movimento do Louis, ele me avisa.
Georgina hesitou. Os olhos marejados.
— Ralph... não pode me proteger e continuar cumprindo o acordo ao mesmo tempo. Se eu tiver que casar, eu... eu quero casar com você.
Ralph fechou os olhos por um instante.
— Não, Georgina... não. Você está só com medo, mas vou resolver.
— Eu vi o jeito que ele olha pra mim. E vi o jeito que você olha. Ralph... você não é como ele.
Ralph deu um meio sorriso, triste.
— Sou sim. A única diferença é que eu não machuco mulheres. Mas tudo o resto... é igual. Sou tão podre como ele.
Ela não respondeu. E ele concluiu, quase num sussurro:
— Entre. Vamos...
Georgina saiu do carro e entrou na casa. Ralph ficou ali por mais alguns segundos, sozinho, tentando controlar o que já escapava de dentro dele: o sentimento.