Sinais / Sabado- abril de 2024.

2020 Palavras
(Última semana do mês de Abril, ano 2024.) Acredito que desde que o ser humano foi criado, ele não tem poder nenhum sobre si; ainda mais tratando-se dos sentimentos. É incrível, parece que não somos nós que vivemos e temos domínio de nossas decisões, mas sim os sentimentos. Esses são os nossos hospedeiros, nossos algozes, nossos carrascos, nossos gênios das lâmpadas mágicas, as fadas madrinhas dos contos e muitos mais. Até os dias de hoje, não consigo entender a natureza do amor e tudo mais que ele traz consigo. Muitos o descrevem como um fogo que não podemos ver, mas que arde. Penso que não existam barreiras para sentir-se preso a alguém, que do mais improvável ao mais provável ser existente de múltiplas características, se conseguir sentir esse fogo mágico e misterioso, pode-se considerar integrante desse numeroso conjunto dos conhecedores do mais puro e verdadeiro sentimento. Varuna fazia parte e Camila era seu complemento, uma metade muito diferente, muito terna e sublime. Considerava-a uma potência de inocência. Depois do episódio na beira do lago, ele não fez mais quaisquer manifestações para seu bem-amado. Contentou-se em ficar pelos cantos, olhando-a, traçando na linha de sua consciência o rosto da jovem. Seu desejo era maior, queria mais do que apenas olhar, muito mais. A moça seguia com sua rotina, porém não conseguia esquecer o ocorrido; os ocorridos, para ser mais preciso. Ela ficara intrigada com a aparição do rapaz bonito no meio da bruma. A menina olhava para o horizonte, sentada numa rede naquela manhã de sábado. Estava mergulhada dentro de si própria, pensava no espectro, sentia o resquício do medo, mas uma curiosidade absurda por saber quem de fato ele é e o que quer. Camila suspeitou que suas orações e velas foram poucas e que talvez apenas uma missa ajudaria aquela alma perdida. Não estava totalmente errada. De súbito, um vento frio soprou contra o seu rosto e o cheiro do perfume chegou até suas narinas. A menina olhou para os lados, mas nada via ou ouvia. Estava só, há muito os pais tinham ido para a cidade levar um carregamento de flores, a irmã estava na casa de uma amiga e o irmão trancado no quarto jogando. A jovem quis sair correndo, gritando e pedindo por socorro. Mas por alguma razão apenas apertou o tecido da rede entre os dedos. Tomou uma dose generosa de coragem para iniciar uma conversa com o fractal micaélico. _ Eu sei que está aqui, sinto você. Me diz o que quer, por favor! Você tem me assombrado e eu nem sei o que eu te fiz! - ela queria respostas e ele apenas parou bem próximo e tocou de leve o seu cabelo. Como seria o toque de um espectro? Frio? Não sei, nunca senti. Porém, Camila sentia e tinha plena consciência de que o fantasma estava bem próximo do seu corpo. Arrepiou-se, sentiu frio e depois um calor absurdo. Pulou da rede e olhou para o local onde estivera por muito tempo. - Não vai falar? Continuarei sem entender o que está acontecendo? Isso é insano, me entende? Posso te sentir, mas não te enxergar! Você me tocou, senti a temperatura variar rapidamente e... - Desesperada, a jovem deu-se conta de que seu coração estava disparado, não por medo, não por puro terror, só não soube associar nada ao que levou seu órgão a reagir daquela forma. Varuna quis mostrar-se, temeu, então balançou a rede, dando um evidente sinal de sua presença. Camila paralisou diante do que discorria perante seus olhos, o balançar começou lento e logo ganhou força, o fantasma queria que ela não pensasse que o vento era a razão por trás do movimento. _ Eu entendi, você está aqui! Deus amado, tem um fantasma aqui comigo! - Sua reação foi normal, como a de qualquer pessoa curiosa e temerosa. No entanto, se corresse, não se livraria facilmente do espírito que, na sua concepção, parecia persegui-la. Com a respiração em descompasso, pensou no que falar. No entanto, tomada pelo nervosismo, o branco em sua mente tinha o tamanho de um lençol. Nada lhe ocorria. _ Vo... você quer conversar comigo? - Fez uma pergunta estúpida, foi o que lhe escapou da boca. Varuna observou a menina e a forma como apertava firmemente a saia do vestido entre os dedos. O cabelo adornado por uma flor presa entre o vão estreito da orelha; um lindo hibisco cor de rosa. Ele queria poder pintar e enquadrar a imagem da moça. Uma beleza natural, sem uso de adornos ou maquiagens. Aproximou-se e retirou a flor do seu cabelo, queria evidenciar sua proximidade. A pobre garota quase desfaleceu ao sentir a flor deslizando devagar para fora do local onde a colocou há pouco. Os olhos dela acompanharam a delicada flor de seis pétalas girar sozinha à sua frente, subir e descer girando e girando sem cair no chão. O vento não manteria nada no ar fazendo aqueles tipos de movimentos, isso a menina sabia perfeitamente. Naquela interação, havia muito mais que encanto; havia verdade, havia uma comunicação silenciosa, um silêncio repleto de milhões de palavras e sentidos. Camila sentiu em seu âmago e Varuna no mais profundo de seu corpo espiritual. Porém, o laço muito interessante e intrigante foi interrompido no momento em que Júnior surgiu na porta. A moça só teve tempo de estender as duas mãos e amparar a flor. Varuna percebeu o menino e logo afastou-se, soltando o delicado Hibisco. Camila olhou atordoada para frente, lábios entreabertos e apreensivos. _ O vento retirou o mato do seu cabelo, magrela? - perguntou o garoto, indo sentar-se na rede. A moça demorou para responder, tinha sua atenção voltada para o que estava em suas mãos. _ Camila? O que foi, ficou sem língua, bicho-p*u? - indagou o moleque, rindo e jogando seu corpo rechonchudo no tecido pendurado em ganchos chumbados nas duas pontas, onde uma era parede e a outra uma grossa coluna. _ Hã? O que foi? - respondeu a irmã com perguntas, seu tom de voz era baixo, algo que Júnior estranhou. Sua irmã sempre rebatia suas provocações, nunca deixava passar uma única vírgula, e agora é como se o corpo dela estivesse lá, mas a "cabeça", não. O menino olhou para a jovem com uma ruga na testa. _ Está tudo bem, cabo de vassoura? - soltou, mirando em seus olhos. - Acho... acho que sim. - respondeu sem saber se deveria compartilhar; contar sobre o fato ocorrido. Nas muitas de suas indagações, a menina resolveu guardar mais um ocorrido para si, não queria colocar ninguém em pânico, já bastava ela. Camila entrou levando a flor consigo, subiu a escada e foi direto para o seu quarto. Assim que se viu sozinha, colocou a flor em cima da cama, afastou-se e esperou a estrutura reprodutiva das angiospermas flutuar, mas nada ocorreu. _ Ele não está aqui. Será que o seu corpo está enterrado na fazenda ou será que perdeu a vida naquele lago? - ponderou, pensativa, sem realmente chegar a alguma conclusão plausível, somente especulação. Camila recolheu a flor e guardou-a entre as páginas de um calhamaço. Sentou-se na cadeira em frente à sua mesa de estudos, rememorou algumas passagens de sua adolescência, do tempo em que morou no Rio de Janeiro; recordações saudosas de quando se reunia com suas amigas e ficavam narrando histórias sobrenaturais. Numa dessas reuniões, Camila ouviu de Polly, sua colega de longa data, que quando a mãe desta era nova, namorou um rapaz, mas por alguma razão o namoro não vingou, então, eles foram cada um para um lado. Não demorou muito para a mãe de Polly ficar sabendo que ele tinha arrumado outra namorada e que esta estava grávida, meses depois esse rapaz veio a falecer. A amiga narrou que todas as noites, depois que o ex-namorado de sua mãe foi sepultado, sua progenitora acordava assustada sentindo uma mão fria em seu rosto e logo ouvia a voz do rapaz dizendo: "Não se assuste, sou eu. Vim te ver." Polly deixou claro que tudo só teve fim quando sua mãe acendeu velas para o defunto e fez orações em sua intenção. Na época, Camila ficou impactada com a história, não acreditava em fantasmas e coisas do tipo, gostava apenas de ouvir as pessoas relatando suas invenções e os frutos das imaginações férteis de suas amigas. Pensava desta maneira, era em suma cética, duvidava dessa coisa de assombração. _ Eu fiz tudo como Polly contou, que sua mãe fez para a alma do ex-namorado falecido. Acendi muitas velas e fiz várias orações. Sei que estava muito nervosa no momento, devo ter engolido alguns améns e também algumas partes da oração... Ou, droga! Nem eu quero acreditar nisso! - expressou-se passando as mãos na face. Retornou mais uma vez ao passado. Desta vez, lembrou-se de Leila, sua colega de classe, que durante o intervalo das aulas contou-lhe algo que Camila até achou ser uma falsa verdade da menina de linda pele cor de chocolate. Leila relatou que uma prima distante, chamada Luciana, foi sepultar um tio por parte de pai. No fim do enterro, dirigindo-se para a saída do cemitério, no caminho, viu uma menininha correndo por entre os túmulos. Levou um susto quando ela parou em sua frente e sorriu. O susto foi causado mais pelo que os seus olhos contemplaram em um túmulo bem perto da aparição: a foto desbotada em preto e branco do rosto da garotinha que lhe sorria e estava parada à sua frente. Segundo Leila, a prima desmaiou e todos pensaram que foi por causa da emoção do lúgubre momento. _ Eu também desmaiei, como não iria? Ele surgiu do nada no meio daquele nevoeiro e parecia andar no ar, seus passos não faziam barulho! Jesus! Aqui tem um fantasma! - constatou, sentindo o coração dar galopes fortes. O cheiro delicioso chegou até a moça, que voltou sua face na direção da cama. _ Sei que por alguma razão você vive por aqui, não deveria, porque você morreu. Eu não acreditava em coisas sobrenaturais até você surgir e... por que está fazendo isso? - perguntou, e uma foto dela que estava pendurada na parede voou em direção ao chão, o vidro estilhaçando fez ecoar um som estridente pelo ambiente. Assustada com a reação do fantasma, Camila deu um pequeno grito e encolheu o corpo na cadeira. _ Não foi minha intenção dizer nada que te ofenda! Estou assustada! Desculpas! - expressou tremendo muito, não sabia com o que estava lidando e ter medo é um instinto natural de preservação da vida. Varuna não tinha gostado da frase proferida pela moça, principalmente da parte que dizia a palavra morto, ninguém precisava lembrá-lo de que estava morto, ele tinha conhecimento disso, não era algo que pudesse deletar do seu éter; seu corpo material estava só a lama podre, talvez nem isso, talvez apenas o pó, uma carniça miserável que era somente alimento para os vermes que se expojavam em sua casca mortuária. O espectro moveu-se até a jovem e parou em sua frente. A garota sentiu sua presença, mas não atreveu-se a erguer o olhar. _ Não tenha medo. - sua voz mansa e calma chegou até os ouvidos da menina que não movimentou nenhum músculo. _ Tem alguma coisa de errado comigo? Por que posso te ouvir, te ver, sentir e mais ninguém da minha família não pode? - perguntou num fiapo estrangulado de voz. _ Escolhas, eu fiz a minha. - limitou-se na explicação nada clara, por sinal. _ Vai me fazer m*l? - quem não perguntaria isso? A moça fez e a resposta foi um leve toque em seu braço desnudo. Camila sentiu apenas os pelos arrepiando, apenas isso. Tudo ficou em mais absoluto silêncio e o cheiro de perfume sumiu. Percebendo isso, Camila ergueu os olhos e não sentia mais nada, não sentia aquela sensação de não está sozinha. Observou o porta-retrato no chão, a moldura 40×60 destruída e os cacos de vidro aparentes. Perdeu-se na indecisão mais uma vez; guardava para si ou levava ao conhecimento dos pais? Respirou profundamente, sem saber o que fazer.
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