Último domingo do mês de Abril de 2024.
Na calada da noite, muitas coisas acontecem. Tem aqueles que acreditam que os portais são abertos e os espíritos saem para vagar livremente no plano carnal; tem os que acreditam que eles apenas despertam em determinada hora, por exemplo, às três da madrugada. No entanto, ninguém tem certeza de nada, vivemos de suposições, muitas suposições.
A noite, quieta e soturna, tem os seus mistérios, guarda os seus segredos debaixo de sete chaves. Os vampiros são da noite, os espectros são da noite, os gárgulas voam livres à noite e muitos outros só se despem dos seus medos à noite. Creio eu que a noite é como uma mãe protetora, apenas cuida do que lhe é confiado e o faz com exímia maestria.
Varuna pensava assim, gostava da noite, era um momento mais dele, de aproveitar do pouco que lhe sobrou: observar as estrelas. No entanto, se chovia, o pobre fantasma era preenchido por pura melancolia. Amava a chuva, apreciava o contraste das nuvens com seus variados tons de cinza, porém nunca mais soube como era sentir essa carícia lacrimosa da mãe natureza.
Podia ele caminhar no temporal sem sentir as gotas frias, não molhava seu fajuto corpo espectral. Acabaram-se os momentos de prazer pleno com as coisas simples da vida, porque não tinha mais vida, não tinha mais corpo, não tinha mais nada carnal.
Deste modo ocorria com o sol, era gratificante sentir os raios aquecendo sua pele; detestava o suor e o cheiro, o odor forte de azedume que impregnava suas roupas no tempo do verão. Por isso, em épocas mais folgadas, viajava para o Rio, Copacabana, praia, mar e as mulheres bonitas com seus pequenos biquínis cravados nas nádegas de globos duros.
A realidade transformou-se, tornou-se outra, uma com poucas coisas para fazer entre os vivos.
Depois de afastar-se da moça amedrontada, o fantasma, na madrugada daquela noite, decidiu ir vê-la mais uma vez, aproveitaria do seu sono. Queria, na mais dura verdade, cortejar a bela dama, não usaria de flertes dos tempos modernos, do tempo dela, porque no dele o ficar era o que predominava. Não precisava ter sentimentos era só a denominada pegação e tirar proveito do momento.
Flutuou até o segundo andar e entrou pela parede, olhou para a luz parca que iluminava precariamente o cômodo.
Mirou no corpo miúdo enrolado nos lençóis, aproximou-se e ouviu o som baixo de uma música, vasculhou com os olhos e achou os fones de ouvido soltos bem perto das costas da bela jovem .
Pegou os miúdos fones, reparou na canção, uma música romântica, falava de amor, de encontros e desencontros.
Volveu o seu olhar para o rosto miúdo da moça , encantado com sua beleza, não resistiu e deu-lhe um beijo em seu rosto.
Camila despertou, sonolenta, piscou algumas vezes. A menina sentiu o beijo, sentiu o carinho que aquele gesto continha.
Não fazia muito tempo que tinha adormecido, ainda vagava entre o limiar do desperto e o adormecido.
A moça sentou-se, olhou ao redor e nada viu, mas o cheiro de perfume denunciava a presença do espectro.
_ Você está aqui? Eu sei que sim, sinto seu cheiro. - proferiu, esfregando os olhos.
Varuna sentou-se na poltrona de couro escuro, sua favorita. Lembrou-se de ter ido pessoalmente comprar aquele item para o seu quarto, na verdade, muitos móveis foram de sua escolha e não da decoradora da época.
O couro da poltrona fez um suave barulho; um som típico que o material fazia ao ceder com o peso de quem sentava.
Camila olhou na direção do móvel.
_ Posso te pedir uma coisa? Conversa comigo. Se não falar, não sei como te ajudar. - disse com o coração palpitando de medo dentro do peito.
O que o fractal micaélico não tinha conhecimento é que a jovem tinha pensado sobre e decidiu tentar uma conversa, quando ele mostrasse presente.
_ Por que me pede tal coisa se o medo vai lhe confranger? - ela ouviu a pergunta dele e ergueu a alça fina da camisola de algodão.
_ Não sei, talvez porque eu não saiba nada sobre o que deseja. - titubeou na resposta, queria mesmo era dizer para que ele parasse de lhe dar sustos.
_ O que desejo está além do que me é permitido, em suma, proibido. - o fantasma exprimiu, olhando diretamente para Camila.
_ Posso te ver? - perguntou a curiosa, quase tendo as mãos congeladas de pavor.
_ Você deseja isso? - Varuna gostou de ouvir que ela, por vontade própria, queria vê-lo, apreciou as palavras que saíram da boca aveludada de sua amada. Aqueceu e vibrou o seu corpo espectral.
O fantasma , saiu do assento e foi para perto do guarda-roupas, de frente para Camila, "materializou-se". Sem propriamente levar ao pé da letra o sentido da palavra. A moça conseguia ver Varuna, mas ele não tinha matéria, ela enxergava a alma apenas, afinal, nós todos somos almas que possuímos corpos, somente isso.
Dessa vez, a menina não gritou; contudo, a palidez em sua tez foi inevitável.
_ Você é bonito... - as poucas palavras saíram sozinhas, não foram pensadas, pesadas e filtradas; pularam de boca à fora, acredito que transbordou em seu peito, vazando em sua cavidade bucal.
Os olhos de ambos estavam conectados como tomada e plugue.
_ Obrigado, você também é. - respondeu o fractal, sendo o mais honesto que podia, mais honesto do que foi em vida.
_ Vai me machucar? - a indagação de Camila deixou Varuna aborrecido, não entendia esse medo por parte dela. Falsa verdade, entendia sim. Ninguém quer ver, ouvir ou falar com espíritos. Quando encarnado, detestava essas pessoas que se diziam médiuns, classificava-os de charlatões e desassisados.
_ Acredita que posso te machucar? - indagou sem desviar o olhar; contemplar a linda moça era o seu melhor momento na eternidade.
_ Não sei, é que... - de repente, a garota pulou da cama, apavorada - Ah, meu Deus! Você não é um desses demônios que aparecem lindos para ludibriar as mulheres, né? - perguntou colando suas costas na parede, com os olhos arregalados.
A pequena pegou um crucifixo em cima da mesinha lateral e esticou a mão direita, que portava o objeto, na direção de Varuna. Camila tapou os olhos com a outra mão.
Ela temia ver a face feia, a face verdadeira do suposto demônio, e o fantasma levava com divertimento a peripécia da menina.
Devagar, tomada pelo medo, abriu uma pequena fresta entre o indicador e o dedo médio, espiou, não viu nada de mais, apenas o sorriso que estava espelhado no rosto da assombração.
_ Sem chifres e r**o! Ufa! Menos m*l! - proferiu, sentando-se na borda da cama, trêmula feito uma vara de bambu em noites de tempestades.
Varuna não moveu-se do lugar, deixou que a jovem expurgasse seus medos. Sentia uma alegria imensa em poder mostrar-se sem ressalvas, provava do melhor dos sabores, estar de frente para quem se ama sem estar coberto pela invisibilidade.
_O que queres de mim? Eu sei que engoli umas partes das orações... É por isso que estás aqui? Por que não orei direito? - A indagação fazia sentido, sendo observada pelo ponto de vista de qualquer mortal; ninguém em sã consciência poderia imaginar nada mais do que isso. Um desencarnado vagando na face da terra material é considerado um espectro perdido, uma assombração sem paz e que precisa de orações para encontrar o caminho da luz. Isso é o que nos é ensinado, isso é o que é repassado de geração para geração; no entanto, ninguém chegou a levantar outras hipóteses como essa pergunta que deixo no ar: O que mais prende um espírito no plano material?
_ Obrigado pelos presentes! Gostei de tudo, as orações eu as recebi, foram feitas de coração e é isso que conta. - respondeu calmo, observando os olhinhos curiosos da jovem o avaliar com minúcia.
_ Você parece ser tão real... difícil para mim acreditar que... - a menina ergueu-se, vacilante, aproximou-se da assombração, levantou um pouco o rosto, viu a discrepância de altura que tinha entre os dois - Como és alto e... - alevantou a sua mão, quis ousar, movida por um arroubo de coragem, mas estancou - Posso te tocar? - pediu com os olhos focados nos sapatos pretos que o espectro usava, podia ver o brilho do couro bem hidratado, como se tivesse acabado de ser engraxado e polido.
_ Por qual razão deseja isso? - sua resposta foi outra pergunta, fazendo com que sua mente ecoasse a indagação.
Camila percebeu que não sabia por qual motivo queria isso, só se sentiu impelida pela necessidade de tocá-lo. Explicação não tinha e se tinha, essa estava supinamente detida em algum canto dentro de si.
_ Não sei, só quis... esquece. Apenas me diz o que quer. Se for missa, posso tentar na igreja local. Não sei como se faz para pedir que celebrem uma em sua intenção, mas eu me informo na paróquia. Apenas preciso do seu nome e... Você sabe seu nome, não é? Ou depois que foi deitado ao solo a sua memória apagou? - perguntou, arregalando os olhos.
Varuna percebeu que Camila tinha interesse em saber mais sobre o que ocorre depois do desligamento do corpo, porém não queria lhe falar muito. Sequer queria dizer sobre si, não era o momento, poderia causar uma confusão danada.
_ Não necessito de missas, busco alguém para conversar. - não foi honesto em sua totalidade, porém não faltou com a verdade. O espectro provava de uma solidão dura, tétrica. Queria a companhia, mesmo que superficial, da moça de sorriso encantador.
_ Apenas conversar? Como se fôssemos amigos? Será que eu estou bem ou delirando? - a garota perguntou-se no final da frase, mas quem não faria? Ela própria questionou sua faculdade mental, temia não estar mais em posse dela.
_ Não há delírio, menina. E sim, um entremeio onde eu estou e onde você está. Lhe pergunto se está disposta a me ouvir, conversar comigo? - indagou sério, de olhos presos na pequena figura que acaricia, sem ter conhecimento, o seu âmago.
Camila voltou o olhar para Varuna, temeu que fosse uma péssima ideia sujeitar-se a perder alguns bons minutos do seu tempo dando atenção para um ser que somente ela conseguia ver. Então, sentiu piedade, colocou-se no lugar do espectro e isso lhe trouxe dor, a realidade dele feriu-a fortemente.
_ Aceito, serei sua... Amiga? - indagou erguendo uma sobrancelha.
Varuna emudeceu por um minuto, não era uma amizade propriamente dita que ele queria. Almejava mais, até porque em si o sentimento ardia feito corte na pele.
_ Pode ser. Estarei por perto sempre. Boa noite, Camila. - dizendo isso, o fantasma sumiu diante dos olhos da menina.
_ Ei! Como sabe o meu nome e você não me disse o seu... iiiihhh, sumiu... - a frase foi morrendo no final.
A jovem levantou-se, indo para o local onde viu o espectro, olhou pelos arredores do cômodo e não sentia nem o cheiro e muito menos a sua presença.
Começava, naquele momento, uma jornada linda e misteriosa, macabra e tétrica, onde muitos cogitam ser loucura ou algo assim, mas outros tantos passam ou passarão pelo mesmo e mantêm em sigilo. Ninguém quer ser rotulado de insano por ter uma "Paixão Póstuma."