Capítulo- XVII. Enlace( P2)
" Presente e passado cruzam-se de diversas formas e uma delas é feito com as almas porque elas são imortais. "
Liliana
Muitos perguntam qual é a sensação que um condenado prova antes da execução. Posso dizer que é semelhante a ver o céu cair em pedaços sobre a cabeça e não poder fazer nada para impedir.
Estou parada em frente ao espelho, observando o meu reflexo. Jamais imaginei que esse dia chegaria tão rápido, e muito menos cogitei a possibilidade de que viria dentro de circunstâncias tão absurdas. Minha respiração sai agoniada do peito. Levo a mão direita ao pescoço.
“Tem um nó aqui dentro, eu posso sentir, e está me sufocando.” – falo mentalmente.
De olhos marejados e mãos trêmulas, o pânico se instala no meu ser. Estou sozinha neste quarto luxuoso, com o coração prestes a explodir. Por um segundo, apenas por um segundo, imagino minha mãe aqui, perto de mim. Seu estado não seria outro que não o de pura consternação.
Meu dedo anelar esquerdo sente o peso do rubi vermelho como sangue. Olho-o com desprezo. É a lembrança viva de um noivado relâmpago, arranjado. Corrigindo: sou apenas uma nota promissória, com o dever de gerar uma criança. Tudo é nojento demais.
Ando até o vestido. Uma peça linda de linho, com bordados seguindo o padrão floral ou vegetal, estilizados em fio dourado que se estendem por toda a peça. No corpete, o bordado central lembra mais um escudo ou diamante — não consigo definir direito — com ramos que se espalham pelas laterais. A peça possui mangas bufantes que terminam em punhos ajustados, adornados com bordados dourados nas extremidades. Há também detalhes bordados ao longo da parte superior das mangas.
A saia é fluida, decorada com duas faixas verticais de bordado dourado em cada lado da frente, que se abrem em um padrão mais amplo na barra. Esta, por sua vez, também é contornada pelo mesmo bordado.
Um par de sandálias altas repousa dentro de uma caixa, ao lado da cama. Uma coroa dourada está dentro de uma caixa de vidro sobre uma espécie de almofada, trancada por um cadeado com código. Ao lado, um estojo aberto exibe um conjunto de brincos e colar. Tudo tão organizado.
Sento-me em uma poltrona e fito o chão. Uma lágrima furtiva escorre pelo meu rosto. Sinto o peso das ações do meu irmão sobre meus ombros. Só de pensar que isso é apenas o começo, escapa de minha boca um som agoniado e abafado.
A ansiedade me faz ter dificuldades para respirar, no mesmo instante em que sou surpreendida por um pensamento repentino que me gelou a alma: “NÚPCIAS”.
Levanto de súbito, olhos arregalados e corpo trêmulo.
— Água, preciso de um gole d’água! — falo, procurando pela bandeja que uma funcionária trouxe minutos atrás. A mesma que recolheu a bandeja com o desjejum quase intocado. Não consegui comer nada; só os líquidos desciam pela minha garganta.
Pego a jarra e despejo o líquido, que vai mais ao chão do que dentro do copo.
De repente, a porta é escancarada e, no susto, o copo que está em minhas mãos vai ao chão, espatifando-se em pedaços.
— Ai! — a exclamação pula da minha boca enquanto os estilhaços se espalham.
O som de saltos finos sob passos elegantes invade o ambiente.
— Desculpe se a assustei. Estou aqui para ajudá-la com o vestido. Falta pouco para a cerimônia, e se há algo que irrita o primogênito desta família são atrasos — diz, com voz aveludada, a irmã de Ragnar.
Abaixo-me rapidamente para pegar os cacos do copo, e a elegante mulher se prostra de modo polido à minha frente, também recolhendo os pedaços pequenos, embora eu sinta seus olhos azuis me perfurarem.
Tento me explicar:
— É... eu... eu estava a... —
Mas a mulher interrompe:
— Nervosa. — diz Lorys, erguendo uma das sobrancelhas.
Fico encarando aqueles olhos de um azul intenso. Todos os Murdoch carregam características marcantes: cabelos ruivos e lisos, olhos azuis profundos, pele de um branco inenarrável e dentes alvos como a neve.
Me surpreendo com o mínimo sorriso que ganho da ruiva. Percebo que seus caninos são sutilmente mais salientes que os demais dentes. São bonitos, isso é inegável.
Não lembro de, em algum momento da vida, ter conhecido pessoas com tais características. Com certeza não. Se tivesse conhecido, não esqueceria tão fácil.
— Se não se sente confortável com essa situação, por que não desiste? — pergunta-me Lorys.
Ergo o corpo, deixando os cacos no chão, e sinto o peso das palavras proferidas pela dona daqueles olhos azuis. Se fosse simples, eu teria feito. Porém, quando existem ameaças envolvendo a única pessoa que restou da minha família, tudo muda.
Edgar errou, mas não consigo esquecer o rosto dele chorando ao ver a porta do elevador se fechando.
Por Deus! Por que nossos pais tiveram que morrer? Por que tudo ruiu? Por que a vida está sendo tão c***l comigo?
Um sentimento de impotência me golpeia. Abaixo a cabeça e cerro os punhos.
— Por favor, me ajude com o vestido. — peço. — Não será de bom tom se eu atrasar muito a cerimônia.
Falo sem sequer olhar para Lorys. Escuto o barulho dos saltos se aproximando. Sinto a mão enluvada tocar de leve o meu queixo e, ao olhar para minha futura cunhada, vejo a reprovação em seu rosto.
— Tem certeza disso, minha cara? Bem sabeis que ainda há tempo hábil de declinar. — sua voz aveludada preenche o cômodo.
Mirando-a nos olhos, respondo de forma rude:
— Tenho certeza! E escolhas não me foram concedidas. — minhas palavras saem cólericas.
Minha futura cunhada se vira, vai até o vestido e o retira de cima da cama, enquanto eu me livro do roupão, ficando apenas de lingerie branca.
Sinto o peso do vestido em meu corpo. Os olhos clínicos de Lorys percorrem a peça, analisando cada detalhe.
— Perfeito. Como meu irmão pediu. — Seu olhar me pega desprevenida, e não consigo esconder o dissabor ao ouvi-la mencionar Ragnar. — Olhe como você está linda, uma noiva perfeita. — aponta para o espelho de corpo inteiro, envolvido por uma moldura antiga entalhada à mão.
“Não tem nada perfeito. Estou me casando apenas para não gerar um bastardo, apenas por isso.” — penso.
Meu corpo perde temperatura, minhas mãos ficam frias, m*l sinto as pontas dos dedos. Estou desligada, presa dentro de mim, como se estivesse em outro século. O espelho reflete isso.
Perco-me em suspiros agoniados até que sinto o peso da coroa em minha cabeça e o véu sendo ajeitado.
— Hunter deverá abaixar o véu folha de rosto para que meu irmão Ragnar faça sua transição. — esclarece Lorys enquanto prende o colar em meu pescoço.
— Precisa disso?
— Simboliza sua entrega ao noivo. É tradicional. Nossa família preserva velhos costumes.
Mal escuto o que ela diz. Meu coração martela cada vez mais forte.
— Quer ajuda para colocar os brincos? — pergunta.
Nego com a cabeça e coloco os adornos nas orelhas com dedos trêmulos.
— Você está impecável. Irei chamar Hunter para conduzi-la ao altar e avisarei aos demais para que ocupem seus lugares.
A ruiva sai a passos firmes e fecha a porta. Só então, estando sozinha, consigo puxar o ar com força para os pulmões.
Passo as mãos pelo vestido delicado ao mesmo tempo em que vejo meus sonhos irem por água abaixo. Suspiro consternada. Sempre sonhei em cursar faculdade de botânica, apaixonar-me perdidamente, casar e ter filhos, tudo coroado pelo amor.
Mas as tramas do destino me colocaram neste quadro árduo: aqui estou, prestes a me casar com um homem estranho, totalmente desconhecido.
Meu maior temor será após a cerimônia. O que me espera na noite de núpcias? E se ele for um sádico? Deus, não gosto nem de pensar.
Escuto baterem à porta. O momento havia chegado.
— Entre. — falo com a voz embargada.
Vejo a porta abrir e a figura de Hunter surgir. O escocês não diz absolutamente nada, e não há necessidade. Aproximo-me, segurando o véu no braço direito.
Em meus sonhos de menina, sempre me imaginava nesses quadros futuros cheios de romantismo. Visualizava meu pai me recebendo, seu abraço, aquele porto seguro que jamais mudaria com o passar dos anos.
— Oh, meu pai! Sabes que te amo, não é? — digo em soluços, olhando para o teto do quarto, implorando em silêncio para que ele me ouça, onde quer que esteja.
— Minha cara, o tempo está se exaurindo. Não é de bom tom alongar-se em momentos melancólicos, lembrando de membros de sua família, enquanto seu noivo a aguarda.
— Sim. — minha voz é apenas um fiapo.
Continua...