Sempre ouvi falar que situações desesperadas, geram reações desesperadas. O fato é que ninguém te diz quando uma situação ultrapassa essa linha tênue de desespero e quais reações são aceitas entre o que é honesto e o que é desonesto.
No meu caso, a situação já ultrapassou a linha do desonesto e já está na linha da sobrevivência. A verdade é que, você não sabe o que é capaz de fazer para sobreviver, até se ver de frente com o que precisa ser feito. E neste momento, talvez, essa seja a última coisa que eu pensaria em fazer se não precisasse do dinheiro, já que, eu sei que depois que eu fizer, não vai ter mais volta. Serei marcada. Não vou conseguir fingir que não aconteceu, mas não tenho outra saída.
Não quero nem imaginar o que uma pessoa pode fazer em situações catastróficas. Situações que a morte te espera do lado de fora. Em que você precisa escolher sacrificar alguém para viver, ou o contrário.
Agora que estou de frente para esse dilema, já tenho a minha resposta.
Isso não é honesto. No entanto, outro algo que se aprende em situações desesperadas, é que sendo honesto ou não, a escolha não é você quem faz. Prova disso é este lugar que jamais imaginei estar.
Dou uma última olhada no espelho e não me reconheço.
Tenho certeza que se abrir essa porta, a verdadeira “Eliza” estará lá do lado de fora esperando, com seu semblante completamente decepcionado com o que irei fazer daqui a alguns instantes.
Acho que nunca me vi desse jeito. Se não fosse Sthefany, eu jamais saberia como vestir essas peças sem que elas virassem um verdadeiro novelo de lã, cheio de nó.
A cada minuto que passa, a vontade de chorar e o nó aperta cada vez mais a minha garganta.
Não saberei se conseguirei ir até o final enquanto isso não começar de uma vez.
Não estou aqui por mim.
Estou aqui por Aelin.
Somente por ela.
Porque ela é tudo o que eu tenho.
Porque não consegui um trabalho antes que ele chegasse.
Porque na vida real, se você não matar o seu leão todos os dias, ele devora você e estar aqui hoje, é a prova de que não tenho mais forças ou recursos para matar meus leões. Agora estou aqui na cova deles, pronta para ser o prato principal.
Seco uma lágrima solitária que escorre pelo meu rosto. Uma lágrima preta de máscara de cílios, misturada com o lápis de olho que Sthefany passou na minha linha d’água.
Olho para cima e uso todas as minhas forças para engolir o choro.
Não posso desabar.
Não agora.
Posso deixar para fazer isso quando tudo acabar.
Prometi para Aelin que ia voltar com algo gostoso para comermos.
Ela está me esperando.
Preciso pensar positivo e seguir o conselho de Sthefany.
“Quanto mais obediente você for, menos vão te maltratar. Demonstre que você está amando e mais rápido eles vão gozar.”
Prendo a respiração e encaro meu reflexo. A imagem diante de mim é perturbadora: olhos fundos, cercados por olheiras que nenhuma maquiagem consegue esconder por completo, e a pele tensa sobre os ossos, fina demais, como se a qualquer momento fosse ceder. Me sinto magra, frágil, uma boneca prestes a se despedaçar. As semanas sem comer direito deixaram marcas evidentes, pequenas cicatrizes que conto em silêncio enquanto meus dedos percorrem as costelas protuberantes.
Respiro fundo, o cheiro do perfume amadeirado que Sthefany me emprestou invade minhas narinas, pesado, sufocante. Ele não me pertence, assim como a mulher que vejo no espelho não sou eu. A maquiagem é exagerada, um escudo berrante que esconde minha atitude desesperada. Os cabelos presos no alto da cabeça deixam meu rosto exposto, entregue, enquanto o batom vermelho desenha meus lábios. A lingerie preta de tiras me aperta, revelando mais do que esconde, como se eu fosse uma mercadoria exposta à venda.
O tic-tac do relógio é uma voz que ecoa por todo o meu corpo, um sussurro constante que lembra que cada escolha tem um preço. O preço dessa noite é maior do que qualquer pedaço de pão mofado ou fruta podre que eu poderia encontrar no fim do dia. Mais uma batida na porta me traz de volta à realidade, e meu coração dispara, um tambor descompassado que me faz estremecer.
Chegou a hora de mostrar se você realmente faria de tudo pela sua filha.
“Vai ser rápido. Você consegue”, repito para mim mesma, mas as palavras se perdem no vão entre meus lábios e o espelho. Meus olhos estão vermelhos, inflamados pela luta silenciosa de segurar as lágrimas. Outra batida, mais forte, impaciente. Preciso abrir. Preciso enfrentar.
O reflexo não muda, mas sinto que uma parte de mim acaba de se partir.
Giro a maçaneta e abro a porta para o cliente entrar.
É um homem de estatura mediana e barbudo.
O quarto está todo escuro, iluminado apenas por uma luz em neon vermelha.
Dou alguns passos para trás, esquecendo tudo o que Sthefany havia me orientado fazer.
Meu coração começa a bater mais forte e por mais que eu só queira chorar apavorada, subo na cama ainda vestindo os saltos, que são um número menor que meu pé. São de Sthefany também. Pretos em verniz.
Acho melhor vir para a cama, antes que ele invente algo que tenha a ver, andar com eles. É certo que eu não sei dar tantos passos assim sem tropeçar.
Sento, me encostando na cabeceira, observando o que ele irá fazer.
Ele me olha nos olhos e começa a desabotoar a camisa social que veste.
— Caramba, você é linda demais — ele me elogia, apressando-se ainda mais para se despir.
O homem não diz mais nada e desafivela o cinto de couro da calça, em seguida, desabotoa a calça de sarja escura que veste, ficando apenas de boxer preta.
Reparo que ele usa uma aliança na mão esquerda, e isso só faz com que eu me sinta ainda pior.
Ele sobe na cama, me puxando pelas pernas até a beirada e levanta meu queixo, se posicionando em pé, na minha frente.
— Caramba, eu precisava tanto disso. — ele diz, tombando a cabeça para trás, se posicionando de frente para a minha boca.
Não, não, não, não.
Isso não estava no pacote.
— Isso, não… — tento protestar, mas ele me cala com um tapa no rosto, agarrando meu r**o de cavalo.
— Deixa para falar quando mandar, gracinha.
O tapa me pega de surpresa e eu tento afastar as mãos dele de mim, mas ele força minha mandíbula, tentando abrir minha boca a todo custo.
A insistência dele faz com que eu tombe sobre a cama e ele me vira de bruços, apressado, irritado, violento, e eu soluço, agarrando firme os lençóis, fazendo de tudo para não relutar contra ele. Fazendo de tudo para ser alguém agradável e ele ir embora logo, ao mesmo tempo, torcendo para nada acontecer, por mais que eu saiba que será inevitável.
Um toque na porta me faz erguer a cabeça.
O homem para o que está fazendo e sem me soltar, rosna.
— Já está ocupado! — ele diz, irritado.
Outro toque mais firme interrompe ele novamente e ele me solta, rumando até a porta do jeito que está, girando a maçaneta.
— Você não escutou que já está ocupado? — ele diz para a outra pessoa, e paralisada, continuo na mesma posição que ele me colocou, mas não consigo conter o choro.
Agarro os lençóis e afundo a cabeça no colchão, chorando baixinho.
— Acho que você confundiu o número do seu quarto — a voz do outro homem desconhecido, soa pela primeira vez.
— O quê?
— Qual o nome da sua garota?
— Eu não sei, p***a — o homem irritado que estava em cima de mim, responde apressado.
— A minha se chama Liz — o desconhecido revela.
É o nome que pedi para Sthefany colocar.
— A recepção me informou que ela estava nesse quarto — ele completa.
O homem que até então estava comigo, rosna. Não ouso erguer o rosto para visualizar nenhum dos dois, fico ali na mesma posição como se estivesse morta e ouço uma movimentação. Ele está vestindo as roupas e após alguns minutos, a porta bate e ele se despede do desconhecido dizendo “vão se foder.”
Silêncio.
Silêncio.
Silêncio.
— Com licença. — O desconhecido diz, fechando a porta atrás de si, girando a chave nela.
Silêncio.
Silêncio.
Ergo a cabeça, respirando fundo.
Tem uma mancha preta no lençol.
Droga, minha maquiagem derreteu entre as minhas lágrimas.
Sento no colchão e me apresso a limpar debaixo dos meus olhos.
— Desculpa, eu… — digo antes mesmo de enxergar o outro cliente. — Acho que houve, um m*l-entendido com ele — digo ainda com a voz embargada, e me levanto, mas tropeço em meus próprios pés.
Duas mãos me seguram firme.
Eu não ouso olhar para ele.
Abaixo a cabeça.
— Vou me recompor. Por favor, pode esperar sentado se quiser. Também posso dar um desconto por causa disso. Me desculpe, senh… — ele me interrompe, erguendo meu queixo, mas as lágrimas não param de escorrer pelo meu rosto. — Desculpa.
— Tira o sapato — ele diz, ignorando tudo o que acabei de dizer.
Assinto, me aproximando da cama onde sento e desafivelo os dois saltos presos em meus tornozelos.
Se o outro de estatura mediana já me colocava medo, esse me deixa paralisada. Ele é muito mais alto e forte. Conseguiria me imobilizar facilmente, mesmo se eu lutasse.
Quando coloco os saltos de lado, ele se posiciona na minha frente, e começa a tirar a camisa jeans que veste, assim como o outro homem fez, mas diferente do outro, ele é muito mais forte e sua camiseta branca, fica agarrada aos seus músculos do abdômen e braço.
Percebo que ele está suando, mas não está quente no cômodo em que estamos. Talvez tenha usado alguma droga ou algo do tipo. Sua respiração também é pesada, como se ele estivesse fazendo um esforço calculado para mantê-la regulada.
— Você está bem? — ouso perguntar, mas ele não responde, apenas se aproxima de onde estou sentada.
Deduzindo que ele fará a mesma coisa que o anterior, me antecipo.
— Não está incluso o oral, senhor — aviso, mas ele pega a camisa jeans de mangas a qual acabou de tirar e me estende.
— Veste — ele diz e eu arqueio a sobrancelha. — Não vim fazer o que pensa.
Silêncio.
Silêncio.
— Desculpa… eu… — começo a falar, encarando a camisa dele estendida para mim e ele faz um gesto, insistindo que eu pegue e eu faço.
Visto as duas mangas da camisa que se torna um vestido no meu corpo magro.
— Eu só preciso que você faça uma ligação e depois vou embora.
Assim que ele diz isso, meu coração dispara.
Ele não pode ir. É o único cliente que Sthefany conseguiu para mim de última hora. Eu só tenho hoje para pagar pelo menos parte do aluguel que devo e comprar algo para comer.
— Escuta eu… — começo a protestar, porém, não consigo soar brava e sim aliviada, mas aí lembro que sair daqui sem o dinheiro, não é uma opção. — Eu preciso do dinheiro, então… eu preciso…
— Não vou fazer nada com você. Só quero que faça uma ligação — enquanto ele diz isso, sentado ao meu lado, vejo ele tirar um bolo de notas e jogar na cama. — Pode ficar com o dinheiro.
Pego as notas e conto uma por uma.
— Você vai dizer que é minha psicóloga. Que comecei a ir às consultas. Que não preciso dos remédios e que vou ficar bem sem eles. Que conversou comigo, que me abri e que ela não precisa se preocupar. Vai dizer que tem um grupo de apoio, que eu aceitei participar e que a sessão em grupo terminou agora. Diz que ela não precisa se preocupar. — Ele me dá as orientações e tira o celular do bolso, iniciando uma ligação para um número salvo com o nome de uma mulher: 'Maddie'. — Minta seu nome quando ela atender.
Não tenho tempo de processar o que ele me diz. Ele estende o celular próximo aos meus lábios no viva voz e antes que eu faça perguntas, uma mulher diz do outro lado da linha.
“Christopher?” é o que ela diz ao atender e deduzo ser o nome do homem ao meu lado.
“Ah,” pigarreio, antes de começar a falar. “Oi, aqui é a Elizabeth, a psicóloga do Christopher” digo, encarando ele e a voz feminina do outro lado da linha, diz com sorriso na voz.
“Olá, doutora Elizabeth, aqui é a Madelyn.”
Ele faz um gesto para que eu continue.
“O Christopher me pediu para falar com você.”
Há um suspiro do outro lado da linha.
“Sim… Tem sido difícil lidar com ele.” ela diz num suspiro.
“Te liguei para dizer que não precisa se preocupar com o horário. Nossa sessão em grupo terminou agora. Ele contou que você estava preocupada, mas já começou a fazer as consultas” repito o que ele me disse.
“Doutora, você acha que ele está bem mesmo? Que ele não precisa de remédios?”
Silêncio.
“Sim” confirmo, encarando o homem ao meu lado e ele desvia o olhar. “Algumas medicações, se usadas por um período muito longo, pode causar dependência, então com o psiquiatra dele, tomamos a decisão de ainda não adicionar ao tratamento.”
“Ah, claro.” ela diz mais flexível.
“Christopher, já está indo embora” anuncio.
“Obrigada, doutora. De verdade.”
“De nada, Madelyn. Se quiser, podemos marcar um dia pessoalmente para você vir ao meu consultório” ofereço e o homem que julgo se chamar Christopher, desliga na cara dela.
Silêncio.
Silêncio.
Silêncio.
Silêncio.
Nós dois observamos o registro de ligação do celular dele, em silêncio, sem saber o que dizer um ao outro.
Pela foto do contato, Madelyn é uma moça muito bonita, já nos auge de seus trinta e poucos anos, de olhos cor de mel enérgicos e um sorriso contagiante.
Ele parece menos ofegante agora, e me olha como se não acreditasse no que acabou de fazer. Olho para ele de volta e encolho os ombros.
— Você devia ser sincero com ela — comento.
— Em algumas situações, a sinceridade pode acabar ferindo mais — ele responde.
Quero discordar, mas assinto. Eu também jamais seria capaz de dizer que estou nesse lugar. Muito menos para alguém que eu amo.
— Você a ama? — pergunto.
— Pra c****e — ele diz.
— Não deveria estar aqui, então.
— Eu não tenho uma esposa ou algo do tipo, ela é a minha irmã — ele se explica.
Fico ainda mais confusa.
— Não tinha muitos lugares para recorrer.
Solto um riso.
— É, eu também não — confesso, encarando meus próprios dedos. — Mas espero que saiba, que se está precisando de ajuda, deveria ir atrás — aconselho.
Ele, em resposta, apenas me analisa. Um olhar frio, sem qualquer indício de emoção. Pela primeira vez, reparo que os olhos dele são cor de mel, assim como os da irmã, mas não são nada quentes ou contagiantes. Ainda assim, há algo nele que me atrai de forma perturbadora — uma aura misteriosa que parece esconder segredos sombrios. Sua presença é magnética, e mesmo sem um sorriso, ele exala uma beleza perigosa que faz com que, meu nervosismo aumente.
Suspiro antes de quebrar o silêncio e desviar o olhar do dele.
— Obrigada pelo dinheiro. Vai me ajudar muito. — Agradeço, segurando o bolo de notas.
Ele não diz nada, me olha por mais alguns constrangedores minutos e se levanta, rumando até a porta.
— Você pode dormir aqui se quiser. Seu pacote é para uma noite — digo, seguindo ele até lá.
— Pode ficar, eu vou para casa — ele diz, abrindo a porta.
— Eu… — começo a dizer antes que ele feche a porta atrás de si. — Também vou para a minha.
Ele analisa o quarto. Parece que só agora realmente se deu conta de que está em um puteiro e já são mais de dez da noite.
— Toma cuidado. Volto quando precisar de você novamente.
— Eu não vou estar mais aqui. Eu não… — por algum motivo, me vejo obrigada a fazer com que ele saiba que eu não sou uma p**a ou trabalho com coisas desse tipo. — Eu tenho uma filha — começo a contar e ele, pouco interessado, apenas assente. —, essa foi a minha primeira vez aqui.
— Você é muito bonita. Espero que o dinheiro ajude e você não precise se submeter a isso novamente. Teve sorte. Os próximos podem não estar precisando que você faça apenas uma ligação — ele diz, frio. Sem um pingo de comoção, mas mesmo assim, agradeço sentindo meu rosto corar.
— Obrigada pelo conselho.
— Pode ficar com a blusa. Está meio frio lá fora.
Puxo as mangas, como as palmas das mãos.
— Obrigada.
Ele dá as costas e eu o observo sumir pelo corredor, torcendo que, por mais que ele tenha salvado a minha vida, espero nunca mais o encontrar.