| UM MÊS ANTES|
C H R I S T O P H E R F O R D
A guerra sempre vai levar algo de você. Sendo inocente ou não, ela cobra seu preço e geralmente, não é nenhum pouco barato.
Achei que estar de volta em casa, resolveria boa parte dos meus problemas, mas desde que voltei, há quase um mês e meio, não sinto mais que aqui é meu lar.
— Tem certeza que vai ficar bem? — Madelyn pergunta, acariciando um lado de meu rosto.
Ela carrega um semblante preocupado e, ao mesmo tempo, amedrontado. Madelyn é a cara da nossa mãe. Tem olhos bondosos, e os lábios estão sempre esticados em um sorriso gentil.
Thomas está no carro, esperando por ela.
— Eu vou ficar bem — garanto enquanto ela me abraça.
Dou uma olhada para que, Thomas, o esposo dela, a aprece.
Não quero Madelyn sozinha nem tão cedo debaixo do mesmo teto que eu. A noite passada foi um pesadelo. Apesar de saber que não iremos esquecer disso tão cedo, forço a minha mente a acreditar que não quero lembrar disso nunca mais, nem permitirei que aconteça de novo.
Se Thomas não tivesse chegado e tomado a faca da minha mão, não sei onde minha irmã estaria agora. A mão enfaixada dele com alguns pontos, é a prova de que não foi fácil me conter para salvar a sua esposa e o filho das mãos do irmão louco.
Mas é assim que tem sido. Faz um mês e meio que voltei da maldita guerra no Iraque, e essa despedida, é a prova de que a guerra não levou apenas a minha alma. Também está levando as pessoas que amo para longe de mim.
A cena não sai da minha cabeça. Minha mão, pressionando a faca contra o pescoço da minha irmã, arrancando um fio de sangue enquanto ela gritava por ajuda, intercalando com “Christopher! Sou eu, sou eu! Deus! Alguém me ajuda, Christopher! Christopher, por favor, me solta. Christopher, sou eu, Thomas, eu preciso de ajuda!”
— Chris? — a voz de Madelyn me chama e percebo que ela está tentando se soltar do abraço.
Me afasto.
Ainda dá para ver o corte superficial que fiz em seu pescoço quando nos esbarramos na noite passada.
Eu havia ido beber água, ela tinha se levantado no andar de cima para ir ao banheiro, eu ouvi o barulho da descarga, e não consegui diferenciar a casa com mais um episódio de TEPT. Foi fácil interceptar ela quando ela saiu do banheiro.
Por pouco eu não matei minha irmã e meu sobrinho que ela está gestando.
Madelyn sabe que não direi mais nenhuma palavra, e ela suspira, acariciando a barriga, posicionando a outra mão nas costas.
— Céus, essa barriga vai me matar — ela murmura e me dá uma última olhada. — Nós estaremos perto, então se precisar de qualquer coisa, liga e eu chego em cinco minutos, isso se não estiver trânsito — solto um riso com o comentário dela.
— Não precisa se preocupar. — Isso é o que mais tenho dito a ela, e o que ela mais tem feito desde que voltei.
Observo Madelyn entrar no carro e aceno, forçando um sorriso, mas ela retribui o olhar de despedida com o semblante preocupado e cabisbaixo. Isso me quebra.
Sei que minha irmã jamais iria embora se a situação não fosse preocupante e perigosa para o bebê, mas é melhor assim. Por mais que ela seja minha irmã mais velha e sempre se veja na obrigação de cuidar de mim, Madelyn não faz ideia da alma vazia que assumiu o corpo do irmão dela, e eu tinha certeza que quando ela visse esse lado, a distância seria a melhor opção.
Agora o saldo de pessoas existentes na residência Ford foi resumida a “zero”. Não acho que eu seja um número importante.
Estando aqui sozinho, será melhor para mim. Sem barulhos, ruídos, ou surpresas.
A residência Ford já teve dias melhores. Dias em que Meredith e Robert Ford eram vivos. Dias em que eu e minha irmã, Madelyn, corríamos pelos corredores da casa de dois andares, implicando um com o outro quando éramos crianças. Dias em que nem se passavam pela minha cabeça, que eu serviria no exército.
Eu tinha vinte anos quando perdi meus pais em um acidente de carro; Madelyn tinha vinte e três. Poucos meses depois, ainda com vinte anos, Sara, minha namorada, me trocou pelo meu melhor amigo, Dustin.
Foi com a mesma idade, que larguei a faculdade de engenharia e fui servir no exército como soldado. Eu estava passando pelo luto e pela traição das pessoas que eu era mais próximo. Isso era tudo o que eu precisava.
Eu tinha sede da guerra. Estava com sangue nos olhos quando passei pelos treinamentos. Era novo. Tinha vigor para estar na linha de frente. Estava disposto a fazer qualquer coisa para afastar qualquer vestígio de humanidade que ainda existisse em mim. Quando puxei o gatilho pela primeira vez, sabendo que estava tirando uma vida, foi como se eu deixasse de existir.
Eu não precisava mais pensar em Madelyn, meus pais mortos, minha namorada que havia me traído, meu melhor amigo. Nada. Era só atirar. Matar. Esquecer que eu tinha uma vida.
É nisso que a guerra te transforma. Em uma máquina que puxa o gatilho para qualquer coisa que apresente ameaça para o pelotão. Você não se sente mais digno de voltar para casa, só sente que merece aquilo.
Me pergunto se tudo compensou. Se todas as perdas de pessoas inocentes valem realmente a pena em uma guerra.
Sangue, morte, destruição e noites em claro.
Quando você vivencia certos tipos de violências, realidades que você não achava ser possível de serem vividas até ver com os seus próprios olhos, deitar a cabeça no travesseiro, sabendo que no outro continente, ainda existem pessoas que não vão dormir essa noite ou que não terão a mesma refeição digna que você está tendo, ou roupas limpas, muda algo dentro de você em proporções catastróficas. Você começa a sonhar acordado, ouve o barulho dos tiros, acha que qualquer coisa caindo perto de você é uma granada, tudo te deixa em estado de alerta, você começa a sentir que a qualquer momento algo muito r**m vai acontecer e é melhor não se apegar tanto aos seus colegas do pelotão, porque pode ser que em alguma das missões, eles não voltem, ou pode ser que você tenha que escolher entre salvar eles ou salvar a própria vida e sua mente entra em colapso.
Você tem que se policiar o tempo inteiro para piscar, e quando pisca, faz isso de forma exagerada, porque sente que tudo, num piscar de olhos, se você desviar sua atenção, pode voar pelos ares. Você acorda no meio da noite ouvindo ruídos, e acha que o inimigo invadiu seu território, e quando se dá conta, está dando uma chave de braço na sua irmã grávida, pressionando uma faca no pescoço dela.
Tento regular minha respiração enquanto a ducha de água gelada cai sobre a minha cabeça. Abraço meus joelhos, sentado no chão e meu corpo treme devido à temperatura da água.
— Vai melhorar, vai melhorar, vai melhorar — digo enquanto meus lábios tremem.
Era assim que eu ficava durante a noite, perto da hipotermia no buraco de rato em que fiquei por dias escondido, sujo pelo barro, ao lado do meu parceiro, tão apavorado quanto eu, sem dormir ou sequer baixar a guarda.
A Residência Ford pode parecer uma casa comum entre a vizinhança, mas ela não passa de paredes frias e cômodos vazios que não serão capazes de me proteger do que existe dentro da minha própria mente.