Capítulo 02

2505 Palavras
|AGORA| E L I Z A F I T Z — Não foi esse o valor que a gente combinou — digo no balcão e Sthefany, mastiga o chiclete, espremendo os lábios insatisfeita. — Não é essa quantia. Eu preciso de mais — digo séria. — Eu sei, Liz, mas acho que você esqueceu que tem os descontos. A lingeries, o sapato, a maquiagem, o perfume, e parece que o cliente da Camila confundiu o seu quarto e foi embora. Vai ter que dividir esse valor com ela. Você esqueceu de perguntar o nome. Acabou prejudicando sua colega. Encaro o valor que restou em cima do balcão, enquanto ela conta o restante das notas. Molhando a ponta do dedo da mão enrugada pela idade nos lábios, ela parece estar satisfeita com seu lucro. Conheci Sthefany por um acaso na rua alguns meses atrás, enquanto vendia alguns doces no farol para conseguir alguma renda. Ela parou seu carro do meu lado e abaixou os vidros, observando meu estado. Fiquei sem jeito quando ela estendeu a mão sobre meus longos cabelos castanhos e os acariciou como se estivesse avaliando a qualidade deles. Recuei, porque apesar de diariamente precisar correr atrás de dinheiro e comida na rua, sabia o quão perigoso era toda essa exposição, ainda mais estando sozinha, e tendo o meu porte físico. Eu já era acostumada com os comentários que recebia pela rua e os assovios, por isso, optava sair com roupas mais humildes e largas. Lembro que ela tirou os óculos escuros e me olhou nos olhos como se tivesse encontrado ouro no final do arco-íris. — Tenho um trabalho para você, garota. — Ela disse, soprando a nicotina de seu cigarro ao falar. Sua voz soava rouca e desgastada. — Me chamo Sthefany. Você mora por aqui? Apenas assenti. Permaneci em silêncio, enquanto ela retirava um cartão do porta-luvas do carro e me entregava, com seu telefone. Ela não me disse com o que trabalhava, mas afirmou que eu tinha perfil para a vaga e me daria bem. O trabalho consistia em clientes e eu poderia ganhar até 100% de comissões em cima dos valores das minhas “vendas”. O melhor de tudo, é que eu não precisaria arcar com nada. Desconfiei na hora ser algo desonesto pela forma que ela havia me abordado na rua. Era parecido com algumas oportunidades que eu já havia recebido para ser modelo, com promessas de que eu receberia o book gratuito para começar em alguma agência que eles me colocariam. Vovó sempre me alertava a nunca aceitar nenhum tipo de oferta assim, porque geralmente estava ligado a um submundo totalmente ilegal. O olhar de luxúria e interesse de Sthefany, era exatamente como outros que eu já tinha visto, antes, e nunca me pareceram boa coisa. Fora que era uma oportunidade que veio muito fácil. A julgar também pela identidade visual do cartão de visitas, — vermelho fosco com uma chama laminada — não foi tão difícil deduzir o que poderia ser, ainda mais na região carente em que eu morava. — E essa camisa, aí? Seu cliente te presenteou? — ela debocha, trazendo-me para a realidade. Me encolho sobre o tecido jeans, lembrando do rapaz da ligação. O tecido exala um cheiro forte, masculino que julgo ser da colônia dele, mas não tenho muito tempo para pensar nisso, o riso de deboche da mulher de pouco mais de cinquenta anos, me traz de volta. — Pelo visto, deve ter se saído bem. Da próxima vez, tenta pedir alguma gorjeta. Não respondo à provocação dela. Recolho as notas e guardo no bolso da minha calça jeans. Dá para comprar algumas refeições para Aelin pela próxima semana, mas não paga o aluguel e Simon está lá me esperando. Já foi um sacrifício ter que deixar a minha pequena com ele e agora, não faço a menor ideia de como vou explicar para ele que não consegui o dinheiro. Aliás, consegui parte dele, mas entre pagar parte da dívida que tenho com ele ou comprar comida para a minha filha, não preciso pensar muito para saber qual será a minha prioridade. Simon tem por volta de seus quarenta anos e é dono do pequeno cômodo em que moro com Aelin, no subúrbio próximo de Nova York. Na verdade, vovó alugou aqui primeiro, então não tive tempo de conhecer quem ele realmente era. Ou talvez soubesse que ele era um agiota e só tivesse me convencido de que faríamos de tudo para não termos grandes problemas com o cara que dominava o bairro onde morávamos. Tráfico de drogas, extorsão, dívidas que nunca terminavam... Ele tinha homens trabalhando para ele, espalhados por cada esquina do nosso bairro, garantindo que ninguém saísse da linha e eu, tinha feito uma promessa para mim mesma que, assim que nossa situação melhorasse, sairia daquele lugar assim que pudesse. Na teoria, era o certo a se fazer, na prática, anos se passaram, nossa situação não melhorou, o valor que ele cobrava era o que melhor nos atendia e no fim, era isso o que Simon era. Ele não emprestava apenas valores em dinheiro, Simon alugava alguns cômodos que tinha no bairro e isso, era uma forma de enganar algumas pessoas que recusavam a agiotagem. Ele te dava a melhor opção e primeiro, se apresentava como um cara amigável que fazia tudo nas melhores condições para você apenas para “te ajudar”. Estendia prazos de pagamentos quando o aluguel atrasava e quando você se dava conta, ele já sabia todos os horários que você saia e voltava para casa, ou sabia exatamente onde você estava trabalhando e quanto estava ganhando. Quando você estava prestes a pagar suas pendências, ele te lembrava dos dias que esperou você acertar o valor e colocava juros absurdos em cima da dívida, tornando quase um loop infinito de dívidas que te impediam de ir embora. Era assim que ele controlava todos que alugavam os cômodos insalubres que ele m*l se preocupava em dar manutenções, na teia de aranha que, quanto mais você se mexia para tentar se libertar, mais acabava se enrolando. Isso quando ele não te colocava para fazer trabalhos para ele em forma de pagamento, como fazia com a maioria dos rapazes ou quando mandava as mulheres para casa de prostituição, como fez comigo, nos obrigando a conseguir dinheiro rápido para ele. Mesmo assim, ele não era de aparecer muito, tudo o que eu ouvia sobre ele, ouvia da boca dos outros porque sempre fiz o possível e o impossível para não ter problemas, porém nos últimos meses, quando a vovó ficou mais doente e debilitada, sem conseguir olhar Aelin, foi ficando cada vez mais difícil, para mim, permanecer nos trabalhos temporários que conseguia e consequentemente, as rendas que eu tinha, foram se esgotando. Aelin tem cinco anos e, parte do dia, ela precisa de cuidados. A vovó fazia isso, mas faz três meses que ela se foi e minha vida virou uma bola de neve. Não consegui um trabalho no horário da escolinha de Aelin e tive que tirar minha pequena de lá, o lugar onde ela tinha comida e passava um tempo para que eu pudesse ir atrás de algo, mas a professora começou a reparar e Aelin inocentemente, começou a contar que tinha dias que ela só comia o lanche do recreio, ou que não tínhamos luz para ela ver os desenhos animados, ou que eu a deixava sozinha por algumas horas, e eu tive medo que a professora acionasse a assistência social e levasse a minha pequena de mim. Arrumei uma desculpa de que iríamos nos mudar e ela iria para outra escolinha. E agora, nós chegamos onde estamos. Ninguém te dá um trabalho se você não tem com quem deixar a sua filha. Ninguém quer saber se o seu aluguel está atrasado ou se vocês não têm o que comer. Ninguém quer saber se você está vivendo o luto e usou todas as economias para enterrar seu único ente-querido com dignidade. São três meses de aluguéis atrasados. Desde que vovó morreu, não consegui equilibrar as contas. Perdi meu trabalho de garçonete porque não tinha onde deixar Aelin depois da escolinha, e não consegui arrumar mais nenhum bico, me restando apenas pedir na mercearia algum alimento que eles iriam jogar fora, ou alguns pães na padaria envelhecidos. Era isso ou ter que pegar dinheiro emprestado com Simon. Dinheiro esse, que se tornaria uma dívida infinita com ele. Simon tinha me avisado que se eu não acertasse o aluguel, ele iria me colocar no olho da rua, mas o que ele fez, foi muito pior. Eu sempre soube que quando ele vai à casa das pessoas cobrar, algo r**m sempre acontece, mas ameaçar levar a minha filha, foi o necessário para que eu decidisse que, nem que custe a minha vida, acertarei tudo o que preciso com ele e vou procurar outro lugar para ficar o mais rápido que eu puder. Giro a chave no cadeado com pressa e passo pela porta. Do contrário de quando eu saí, Aelin não está chorando e eu a encontro deitada na cama de solteiro que dividimos, agarrada a uma blusa minha. Me aproximo dela, procurando qualquer sinal de algo que ele tenha feito e nem reparo sua presença, sentado na cadeira que eu usava para colocar os remédios da vovó perto da cama dela que não está mais aqui. — Voltou mais rápido do que pensei, Angel — ele comenta com um sorriso nojento no rosto. — Não consegui o dinheiro — digo, me virando para ele, servindo de barreira entre ele e Aelin. — Por favor, a minha filha não tem nada a ver com isso. Ela é uma criança — me antecipo quando ele desvia os olhos para ela. Simon ri pelo nariz. — Tsc, tsc, tsc, tsc. — ele balança a cabeça, se levantando. — Não foi esse o combinado, Angel. Sabe, sempre falei para todos daqui que você era um exemplo a ser seguido, mas de uns meses para cá, você está me decepcionando. — Simon, — tento continuar, mas ele me pega pelo pescoço. — Caladinha — ele diz entredentes, num tom baixo. — Não quer que a pequena acorde, né? Balanço a cabeça negativamente. — Por favor, me dá só mais uma chance — peço como uma prece e ele sorri satisfeito. — Sua vovó não está mais aqui para te defender, docinho. — ele diz, aproximando-se do meu pescoço, cheirando minha pele tão profundamente, que fecho os olhos fortemente, como se ele estivesse sugando as minhas forças. — Sempre tive curiosidade para sentir seu cheiro. — Simon, por favor, a minha filha está aqui — choramingo, tentando afastá-lo, e ele tira do bolso de trás um revólver, acariciando meu rosto com ele. — Simon — imploro. — Ela só tem a mim. — Amor, eu não quero machucar seu rostinho de princesa, você sabe, né? — assinto de imediato. — Então você vai dar o dinheiro, ou escolher entre você, ou ela. Assinto enquanto as lágrimas escorrem facilmente pelo meu rosto. — Por enquanto, vou me contentar com isso — assim que ele diz isso, sela os lábios nos meus, mas eu não reluto para não acordar Aelin na cama ao lado. Deixo ele explorar meus lábios e me puxar pela cintura, se esfregando em mim. Apenas fechos os olhos e faço o que Sthefany havia me dito hoje mais cedo. “Quanto mais obediente você for, menos vão te maltratar.” Deixo que ele aproveite até me soltar com um sorriso de luxúria no rosto, segurando meu queixo para encará-lo. — Eu sempre te disse que você ia ser minha, não disse, Angel? — ele diz com um sorriso satisfeito. — Então já que você não vai me dar o que deve, vai começar a me dar o que eu quero. — Ele diz, despreocupado. — Cuidado para as meninas da vizinhança não ficarem com ciúme de você, a verdade é que, eu prefiro tirar uma casquinha de você, a ter que raspar seu cabelo. Seria um desperdício. Não me mexo ou retruco, apenas espero ele guardar o revólver no bolso e sair pela porta. No instante seguinte, estou ajoelhada no vaso colocando o pouco que comi no dia de hoje para fora. — Mamãe? — Aelin me chama sonolenta e poucos segundos depois, ela força a maçaneta da porta do banheiro, mas eu seguro a porta, impedindo ela de abrir. — Oi, amor, a mamãe já chegou — anuncio, tentando disfarçar minha voz embargada. — O tio Simon me deu chocolate — ela conta do outro lado da porta. — Que legal, meu amor. Já estou saindo. — Mamãe, hoje vai ter algo para comer? — a pergunta dela, arranca mais algumas lágrimas dos meus olhos e eu assinto, mesmo sabendo que ela não pode ver. — Sim, meu amor. Hoje a gente vai comer pizza. — Dou a descarga no banheiro e ilumino meu rosto com a lanterna do celular, jogando um pouco de água gelada na tentativa de melhorar meu semblante. — Pizza? A gente vai comer pizza? — ela pergunta sem acreditar. Encaro as poucas notas em minha mão e abro a porta. — Sim, amor. — Mamãe! — ela comemora, abraçando as minhas pernas. — Vem cá, vamos escolher o sabor — digo chamando ela para cima da cama, reparando seus pezinhos frios. Após comermos a melhor refeição que tivemos essa semana, Aelin dorme encolhida no canto da parede e eu orgulhosa demais para que ela me veja chorar, me tranco no banheiro escuro, sentada na tampa do vaso, usando a camisa jeans que o rapaz havia me dado para abafar meus soluços. Não sei por qual razão choro. Se pela situação em que estou vivendo com a minha filha, se pelo que Simon fez, se por ter achado que Sthefany estava me ajudando por boa vontade a conseguir o valor do meu aluguel, se pela falta que vovó me faz, ou se por tudo junto. Todos os dias, nessa mesma hora, esse é o meu ritual. Me trancar no banheiro, colocar um pano na boca para abafar meus soluços, chorar até não ter mais forças e voltar para a cama para dormir e encarar o próximo dia com um sorriso no rosto para Aelin sentir que estou dando conta de tudo e que é só uma questão de tempo até a nossa situação melhorar. A verdade é que, eu não sei quando vai melhorar, e a única força que tenho de continuar é a pequena que nunca vi tão feliz como hoje, devorando um pedaço de pizza. Quando acalmo meus soluços, respiro fundo e lavo o rosto mais uma vez com água gelada, repetindo as palavras que tem sido como uma oração particular. “Vai melhorar, vai melhorar. Uma hora vai melhorar.” Quando deito e desligo a lanterna do celular, fecho os olhos, decidida de que essa semana que se iniciará, irei arrumar um trabalho, não importa em que lugar seja.
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