Os dias passaram de um jeito estranho.
Externamente, tudo continuava igual. Acordar cedo, o sol ainda tímido atravessando as cortinas claras do meu quarto. O silêncio daquela casa grande sempre me acolheu como um mosteiro particular — amplo, limpo, organizado, mas propositalmente simples no espaço que eu ocupava. Minha cama arrumada, o crucifixo na parede, a Bíblia sobre a escrivaninha. Eu gostava dessa ordem. Ela me mantinha centrado.
Mas por dentro… algo estava fora do lugar.
Ela não voltou.
No primeiro dia, eu achei que fosse apenas coincidência. Pessoas vinham e iam do confessionário o tempo todo. Algumas apareciam uma única vez na vida e nunca mais. Outras se tornavam quase parte da rotina da igreja. Eu sabia disso. Sempre soube.
Mesmo assim, quando entrei no confessionário naquela manhã, meu corpo reagiu antes da razão. Ajustei a estola, respirei fundo e, por um instante completamente irracional, esperei ouvir aquela voz.
Nada.
Vieram outros fiéis. Confissões comuns, pecados repetidos, dores que eu já conhecia de cor. Ouvi com atenção, aconselhei, absolvi. Fiz tudo como sempre fizera. Mas entre uma pessoa e outra, meu pensamento escapava.
Por que ela não voltou?
A pergunta me acompanhou até o altar, durante a missa da manhã. Meus pais estavam lá, sentados no banco da frente como quase sempre. Minha mãe me olhava com aquele orgulho sereno, as mãos unidas em oração. Meu pai mantinha a postura firme, respeitosa, como se cada palavra que eu dissesse tivesse um peso sagrado ainda maior por ser dita pelo filho.
Eu os amava profundamente.
E talvez por isso a culpa tenha começado ali, bem no meio do Evangelho, quando percebi que minha mente não estava completamente entregue à Palavra.
Ela se infiltrava nos meus pensamentos de forma silenciosa.
Não o rosto — porque eu não tinha rosto algum para imaginar. Era a voz. O jeito contido de falar. A forma como parecia carregar algo pesado demais e, ainda assim, não conseguia colocar em palavras.
Como alguém que bate à porta pedindo ajuda… e foge antes que ela seja aberta.
Depois da missa, como sempre, fui cumprimentar os fiéis na saída. Apertos de mão, sorrisos, palavras gentis.
— Bom dia, padre Gabriel.
— Que Deus te abençoe, meu filho.
— O senhor falou bonito hoje, padre.
Eu agradecia, sorria, fazia um comentário leve aqui e ali. Algumas senhoras mais velhas seguravam minha mão por tempo demais, emocionadas. Jovens abaixavam a cabeça com respeito.
Eu estava acostumado com aquilo.
O que nunca deixava de me chamar atenção era como o respeito vinha acompanhado de algo mais — principalmente quando eu não estava com a batina.
Quando, mais tarde, troquei a roupa clerical por uma camisa simples e calça escura para ir ao restaurante, os olhares mudavam. Não de desrespeito. De surpresa.
Eu sabia que chamava atenção.
Alto demais para passar despercebido, corpo forte que nem a roupa mais discreta conseguia esconder completamente.
As mulheres olhavam. Algumas descaradamente. Outras com um misto de curiosidade e cautela, como se tentassem reconciliar duas imagens incompatíveis: o homem e o padre.
Eu fingia não perceber. Na maioria das vezes, era automático.
No restaurante, o ritmo era outro. Barulho de talheres, conversas animadas, música ambiente suave. Meus pais comandavam tudo com a precisão de quem construiu aquele império com trabalho, fé e disciplina.
Ali, eu não era só o padre.
Eu era o filho. O chef quando precisava. O administrador. O braço direito.
— Filho, confere pra mim a reserva da mesa seis? — meu pai pediu, enquanto analisava algo no tablet.
— Claro.
Cumpri a tarefa, troquei algumas palavras com funcionários, ajudei na cozinha quando um prato atrasou. Eu gostava daquela dinâmica. Me mantinha com os pés no chão.
Mas mesmo ali… ela vinha.
Enquanto cortava ervas, enquanto revisava uma planilha, enquanto explicava algo a um garçom novo. Um pensamento insistente, quase uma sensação física.
Será que ela está bem?
Eu não sabia nada sobre aquela mulher. Nada mesmo. E ainda assim, sentia como se tivesse falhado de alguma forma. Como se minha presença ali naquele dia tivesse sido importante… e insuficiente.
Os dias seguintes foram assim.
Rotina impecável. Emoção inquieta.
Ela não apareceu no confessionário. Nenhuma vez.
E quanto mais o tempo passava, mais aquela ausência se tornava presente.
Até que veio aquela noite.
O restaurante estava particularmente cheio. Uma sexta-feira elegante, mesas ocupadas por casais bem vestidos, grupos pequenos, conversas discretas. Luzes quentes refletindo em taças de cristal. Tudo funcionando como um relógio.
Até que um dos garçons passou m*l.
Pálido, suando frio, m*l conseguia se manter em pé.
— Leva ele pra sentar — eu disse rapidamente. — Eu cubro as mesas dele.
Meu pai tentou argumentar, mas eu já estava pegando o bloco de anotações.
— Relaxa. Dou conta.
Comecei a circular entre as mesas, anotando pedidos, servindo bebidas, mantendo o tom profissional. Não era a primeira vez que eu fazia aquilo. Conhecia o salão tão bem quanto a cozinha.
Foi quando a vi.
Ela estava sentada sozinha, numa mesa mais afastada, próxima à janela. Vestida com elegância absurda — não chamativa, mas cara. Cada detalhe gritava sofisticação silenciosa. Bolsa de grife pousada com naturalidade na cadeira ao lado. Postura impecável.
Bonita. Muito bonita.
Mas não foi isso que me fez diminuir o passo.
Foi o jeito como ela me olhou.
Não era um olhar comum. Não era flerte escancarado, nem curiosidade vazia. Era atento. Observador. Como se estivesse me estudando.
— Boa noite — eu disse, educado, profissional. — Posso anotar seu pedido?
Ela sorriu de leve.
— Na verdade, ainda estou esperando alguém — respondeu. A voz firme, segura. — Pode ser só uma água, por enquanto.
— Com ou sem gás?
— Sem, por favor.
Anotei, assentindo, mas antes de me afastar percebi que ela continuava me olhando. Não de cima a baixo. Nos olhos.
Como se quisesse entender quem eu era.
— Volto já com sua água — falei.
Ela agradeceu, ainda com aquele meio sorriso indecifrável.
Enquanto me afastava, senti algo estranho. Não um impacto. Não um choque.
Curiosidade.
Uma curiosidade calma, contida. Diferente daquela que eu sentia pela mulher do confessionário — essa era inquieta, quase espiritual. A daquela mesa era… terrena.
Balancei a cabeça, focando no trabalho.
Ainda assim, ao entregar o copo de água, nossos olhares se cruzaram de novo por um segundo a mais do que o necessário.
E eu tive a nítida sensação de que aquela noite… não seria apenas mais uma.
Mas eu ainda não sabia por quê.