Pré-visualização gratuita 01 - Prólogo
Duque Narrando
A vida nunca me deu escolha. Desde pequeno, aprendi que ou você impõe respeito ou é esmagado. O morro onde cresci não perdoava os fracos, e eu nunca pude me dar ao luxo de ser um. Meu vulgo é Duque. Mas antes de ser conhecido por esse nome, eu era apenas um moleque magro e raquítico, que corria descalço pelas vielas esburacadas, sem ter o que comer, sem saber o que era um futuro.
Minha mãe, Dona Elza, era a única pessoa que realmente se importava comigo. Meu pai? Nunca conheci. Só ouvia falar que era um qualquer, um homem que nunca quis assumir um filho. Minha mãe fez o que pôde, mas a vida foi crüel com ela. Trabalhou até o corpo não aguentar mais, e quando adoeceu, não havia remédio que curasse. Câncer. Essa palavra foi o início do meu fim. Eu tinha apenas treze anos quando vi minha mãe definhar, perder o brilho dos olhos e a força que sempre teve. O dinheiro era pouco, não dava pra pagar médico, nem pra comprar os remédios que podiam aliviar a dor dela. Eu tentava ajudar como podia, catava latinhas, lavava carros, mas aquilo não resolvia nada.
Foi então que o crime me encontrou.
O tráfico no morro sempre esteve ali, forte, imponente, comandando tudo e todos. Eu sabia que era errado, minha mãe sempre me alertou. Mas quando vi ela gemendo de dor na cama, quando ouvi os vizinhos dizendo que ela não duraria muito sem tratamento, eu tomei a única decisão que achei possível: entrei pro movimento. No começo, fui aviãozinho. Carregava as cargas, fazia as entregas, levava recado. Mas eu não era burro, e eu tinha fome. Fome de dinheiro, de respeito, de poder. E no crime, quem tem coragem sobe rápido.
Com o tempo, fui conquistando espaço. O chefe da boca percebeu que eu era esperto, que eu não vacilava. Em poucos anos, virei gerente. E quando o chefe caiu, adivinha quem assumiu? Eu. Foi assim que o menino magrelo e desesperado se tornou Duque, o nome que impunha medo em toda a cidade do Rio de Janeiro.
Eu tinha tudo que qualquer um naquele meio queria: dinheiro, mulheres, armas, influência. Eu podia ter qualquer coisa, qualquer pessoa. Mas foi ela quem me ganhou sem esforço nenhum.
Ruth.
A primeira vez que a vi, ela descia a ladeira do morro com a Bíblia nas mãos, cantando um hino baixinho. Parecia que brilhava, sabe? Era diferente de tudo e de todas que eu já tinha conhecido. Ela não era como as mulheres que vinham atrás de mim por interesse ou status. Ruth tinha um jeito que me intrigava, me atraía. Era pura, mas não no sentido físico, era a pureza na alma, no olhar, no sorriso.
Comecei a observar. Sempre no mesmo horário, ela passava indo pra igreja, cumprimentava todo mundo, sorria até para os nóias jogados na calçada. Eu me perguntava como alguém podia ser assim num lugar tão c***l. Como ela não se deixava contaminar pela sujeira do mundo?
Aos poucos, me aproximei. Primeiro, só cumprimentava. Depois, inventava desculpas para conversar. E então, quando percebi, eu já esperava ansioso a hora dela passar, só pra poder trocar duas palavras. Ruth era diferente. Ela me tratava como um homem comum, não como o criminoso que todos temiam.
Quando finalmente criei coragem e disse o que sentia, ela me olhou com aqueles olhos grandes e cheios de verdade e disse:
— Duque, eu gosto de você. Mas nós somos jugo desigual. Você vive num mundo de trevas, e eu caminho na luz. Você precisa mudar de vida, se quiser um futuro comigo.
Aquelas palavras mexeram comigo. Nenhuma mulher jamais havia me recusado. Mas Ruth não queria o Duque poderoso, temido e rico. Ela queria um homem bom.
Então, fiz o que nunca imaginei fazer: comecei a ir pra igreja. No início, era só pra vê-la louvar. O jeito que cantava fazia meu peito pesar de um jeito estranho. Aos poucos, as palavras que o pastor dizia começaram a fazer sentido. Será que ainda havia salvação pra alguém como eu?
Foi uma luta interna. Eu tinha sangue nas mãos, tinha feito coisas imperdoáveis. Mas o desejo de mudar cresceu dentro de mim. Um dia, ajoelhei e pedi perdão a Deus. Foi ali que entendi o que Ruth tanto falava sobre amor e misericórdia.
Decidi sair do crime.
Quando contei ao chefe, ele riu na minha cara.
— Você acha que isso aqui é brincadeira, Duque? Ninguém sai.
Mas eu já tinha tomado minha decisão. Chamei Ruth e pedi pra fugirmos. Não queria viver olhando por cima do ombro, não queria arriscar a vida dela. Eu só queria paz.
Ela aceitou. Porque, mesmo me dizendo não no começo, já estava tão apaixonada quanto eu.
Fugimos para o interior do Espírito Santo, um lugar pequeno e esquecido pelo tempo. Lá, pela primeira vez, senti que podia respirar. Não era mais o Duque do morro, o temido, o implacável. Ali, eu era apenas um homem.
E ao lado de Ruth, eu estava pronto para recomeçar.
O tempo passou, e a vida me transformou. Eu já não era o Duque, eu era Eduardo, um homem comum, um obreiro dedicado à igreja, um marido amoroso e um trabalhador honesto. Consegui um emprego como chefe de almoxarifado, não porque precisasse do dinheiro, eu ainda tinha muito guardado dos tempos em que eu estava no tráfico, mas porque queria viver de maneira digna. Não queria ser um vagabundo que gastava sem esforço. Queria sentir o peso do trabalho, o valor de cada conquista.
Ao meu lado, Ruth florescia. Ela continuava a mesma mulher de fé, cheia de luz, com um sorriso que iluminava minha vida. Depois de três anos, nossa felicidade estava completa: ela estava grávida do nosso primeiro filho. Davi. Um nome forte, um nome de guerreiro.
Mas, por mais que nossa vida estivesse em paz, algo sempre pairava no ar. Um medo silencioso, uma sombra que nunca desaparecia. Nunca mais falamos com ninguém do morro. Ruth sentia saudades da família, mas sabia que qualquer contato poderia nos colocar em risco. Eu, por outro lado, sempre dava um jeito de conseguir informações sobre como estavam. E, sempre que eu via o brilho de saudade nos olhos dela, contava o que sabia, apenas para aliviar um pouco a dor.
Estávamos felizes. Pensávamos que finalmente tínhamos escapado. Mas eu deveria saber que fantasmas do passado nunca desaparecem completamente.
A Notícia que Destruiu Meu Mundo.
Faltavam poucos dias para o nascimento de Davi. Eu já tinha acertado minhas férias para poder cuidar de Ruth e do nosso filho. Aquele era meu último dia no trabalho antes de um merecido descanso. Tudo estava certo. Eu iria para casa, faria o jantar para Ruth e conversaríamos sobre os últimos detalhes do enxoval.
Mas então meu celular tocou.
O nome do pastor apareceu na tela. Estranhei. Ele nunca me ligava durante o expediente. Meu coração acelerou antes mesmo de atender.
— Irmão… aconteceu uma tragédia.
O tom da voz dele fez o chão sumir sob meus pés.
— Entraram na sua casa. Atiraram várias vezes contra a irmã Ruth… Foram carros e motos. Irmão, fuja!
A última palavra dele ecoou na minha cabeça, mas já não fazia sentido. Fugir? Fugir para onde?
Minha Ruth… Meu filho…
Soltei o telefone, saí da empresa correndo, sem saber para onde ir. Minhas pernas se moviam sozinhas, meu peito queimava, minha mente gritava.
Ruth estava morta. Meu filho estava morto.
Aquela era a única coisa que ecoava em minha mente enquanto eu corria, me escondendo no matagal próximo à igreja. Eu não tinha mais nada.
Acompanhei o enterro de longe, escondido entre as árvores. Vi o caixão descendo à terra, levando minha esposa, meu filho, meu futuro, para debaixo de sete palmos.
E foi ali que o vi. Nobre.
O desgraçado do meu antigo chefe.
O dono do morro.
Ele estava ali, observando o enterro de Ruth, como se quisesse me mandar um recado. Como se dissesse: “Você pode correr, mas nunca vai fugir de verdade.”
E naquele momento, eu soube.
A paz que eu tinha construído morreu junto com minha família.
O homem que eu me tornei foi enterrado junto com Ruth.
E Duque renasceu, dessa vez, não haveria compaixão.
— Hoje eu choro. Mas amanhã, cada um vai pagar por cada lágrima.
E eu não quero mais saber de igreja.