Abasi:
já falei que odeio viajar e não é minha praia, mas a minha profissão requer que eu não fique parado por muito tempo em um só lugar.Hoje temos sorte, temos condição para pegar um ônibus executivo. Dá para dormir bem, não podemos reclamar, já passamos por situações piores.
Enquanto Leilani come, eu me lembro da cena da bala. Ela era imune a desastres naturais, ela não morreu por pouco uma vez quando ingeriu desinfetante pensando que era suco de morango. Ela tinha seis anos na época.
Não descobri quem tinha falado para ela que aquilo era suco. Nessa época, eu era o estranho do orfanato, mas sabia que para sobreviver tinha que ter amigos lá dentro. Os meninos eram mais complicados, porém o único que me lembro com apreço foi o Jorge, um moleque sorridente, com um dente quebrado por um chute numa briga. Janelinha à força era mais, o moleque quebrava os galhos. Nunca mais soube dele. Ele tinha uma queda pela Leilani, mas eu nunca deixei ele chegar nem perto, ela era minha irmã. Eu tinha perdido minha família.pai, mãe e minha pequena amora num acidente de carro.
Hoje eu sei que tinha depressão na época e, graças a uma história de gnomos, ela me salvou.Eu ia quase todas as noites me deitar com a Rebeca no dormitório das meninas. A Rebeca é o tipo de mulher alfa: ela quer, ela consegue. Com o passar dos anos, ela se tornou uma amiga. Ela me pegou na minha época r**m magrelo, cabelo afro, lavado com sabonete de roupa em barra. Imagina só os apelidos! O mais bonito era "bombril". Daí pra baixo, eu tinha sim uma queda pela Rebeca, mas era a necessidade de sobreviver mais do que amor. E eu também sou homem, não ia falar que não. É machista, sim, porém todos temos nossas vulnerabilidades, e o meu, com certeza, é uma preta com curvas definidas, bundão e carne. O pai aqui se cuida ao máximo, mas nas parcerias da vida adoro uma gordinha, e se for preta, melhor ainda. Não achei minha alma gêmea, mas quem sabe dessa vez eu acho. Eu saí do orfanato com dezoito anos, uma mochila com roupas e a roupa do corpo, documentos nas mãos. Te vira, neguinho! Fala pra tu, o sistema é falho pra caramba. Bom, fui liberado depois do almoço. A Leilani chorou à toa e eu tive que dar um sacode nela.Se bobear, até hoje ela se lembra dessa dor, mas eu tive que forçá-la a ser forte. Ela estava ficando sozinha; a maioria da velha guarda já tinha ido, e ela era a velha ali. Não podia deixar ninguém mexer com ela. não podia ser fraca era uma questão de sobrevivência. Ela ainda tinha 13 anos, tinha cinco longos anos pela frente, e ela tinha que sobreviver por mim e eu por ela. Comecei a andar sem olhar para trás. Nas ruas, conheci a vida dura. O que antes parecia um fardo era viver numa ditadura estrita de castigos emocionais, privado de alimentos, de lutar por uma barra de sabão para ter para se banhar, a não ter nada propio.
Tentei entrar em comércios pedindo trabalho, mas não tive sucesso. A primeira noite na rua foi a mais marcante. Eu tinha achado uns papéis e papelões numa caçamba de lixo, esse foi meu colchão.
Mal preguei o olho. Essa noite vi tiros, drogas, prostitutas e tudo o que a vida noturna envolve. Conheci um morador que me deu a ideia de começar a limpar vidros de carros, porém não tinha nem dinheiro para material.Comecei a ser franelinha, juntei os centavos e comprei sabão líquido, um paninho e uma garrafa pet com água.Rodo limpa vidroTambém juntava as latas para vender, garrafa pets mas os centavos entravam pingando, era muito pouco e eu tinha que dar meu jeito, não só por mim, mas para quando a Leilani saísse, não tivesse que dormir na rua. Foi aí que comecei a observar os corres da rua. Se algo me ensinou o orfanato, foi a me adaptar a qualquer situação.
Dois meses depois, conheci o finado Rômulo, um velho de sessenta e poucos anos, morador de rua por escolha. O velho passava por louco, mas eu vinha observando ele com a latinha, pedindo esmola e a pinga do lado, que era sempre a mesma. Ele não bebia, só se botava um pouco na roupa para cheirar a ela, e era sempre a mesma. Comecei a observar os detalhes. Ele também me olhou e percebeu que eu não era um mendigo, mas na rua era alguém com futuro, mas que não tinha oportunidade.
Um dia, ele pechou num engomadinho que ia com o celular na mão. Eu estava sentado, olhando tudo, e foi aí que percebi o truque. O cara raivoso nem notou, só se limpava o paletó como se o velho tivesse passado sarna para ele.
Dei uma olhada na carteira dele. Já estava sendo saquiada e devolta ao lugar. O velho sacou umas notas de cem e ainda colocou de novo no bolso do homem que, por prestar atenção na suposta sugera perdeu.
O desdém e o desprezo foram as armas mais eficazes que eu conheci na rua. Ninguém quer tocar ou olhar um morador. Para as pessoas, muitos de nós somos como cachorros sarnentos de rua, e é aí que a necessidade faz o ladrão.
eu esperei o homem sair umas ruas para cima e fui até o velho. Ele me olhou de canto, prendendo um cigarro. Eu olhei para ele e só falei: 'Me ensina, preciso ter um lugar pra dormir e poder cuidar da minha irmã.' Ele me olhou e negou no começo, mas de tanto eu insistir, uma semana inteira. Ele aceitou. Comecei por carteirista a escalas maiores.
Não era algo que me orgulhava, mas eu precisava tirar a Leilani de lá. Eu sabia que ela estava sofrendo e eu também. Então, em um ano, consegui um barraco num morro em São Paulo. Era um quarto, banheiro e cozinha, quatrocentos reais de aluguel. Eu ralei muito para conseguir os três meses que o dono do morro pedia por adiantado, mas eu consegui.
Eu saía cedo e voltava tarde. Sempre falava que estava cuidando da minha avó doente. Nunca falei nem fiz nada que chamasse atenção. O Rômulo me ensinou isso desde o início: sempre fazer os trabalhos longe de casa.