Capitulo dois

1155 Palavras
Ayala Aquele baile no Morro dos Prazeres era minha despedida de solteira. Ou pelo menos era o que eu tinha combinado com as minhas amiga. — Depois que casar, vou virar uma mórmon chata, só posso dançar música de missa! — eu tinha zoado, mas no fundo, tava com um nó na garganta. Em um mês, ia subir o Corcovado de vestido branco pra casar com Augusto na casa daquele apresentador famoso, o mesmo que todo domingo tá na TV no caldeirão. Mas antes, eu precisava de uma última noite com as mina. De botar o salto mais alto, beber até ver estrela, e rir daquele jeito que só a favela sabe rir. Porque depois? Depois ia ser só jantar de família em Ipanema e reunião de igreja. Cheguei em casa de madrugada, ainda com o som do funk ecoando no ouvido. Meu quarto na caasa dos meus pais era pequeno, mas parecia um brechó de grife: bolsa Chanel no cabide, vestido da Dior em cima da cama, e um poster do Beyoncé colado na parede descascando. Me joguei no colchão e olhei pro anel de noivado. Dois quilates, vei, o anel brilhava até no escuro. A voz da minha mãe ecoou em minha cabeça lembrando dela falando quando contei do noivado "Ayala, tu tá doida? Casamento em um mês? Com um cara que tu não sabe nem como e direito? Oh. O teu pai tá achando que esse boy te enfeitiçou." " Ah, mãe, para com isso! Augusto é gente boa, tá? — revirei os olhos, mas ela não se impressionou." "Gente boa? por que coce não arruma alguém daqui, que pelo menos nasceu aqui no morro. Esse teu noivo... — ela fez uma cara de quem cheirou limão azedo. — Parece aqueles boneco de vitrine: bonito, rico, mas oco por dentro." Só da minha mãe falar de lembrar dela falando dos garotos do morro, deu um frio na espinha. Lembrei que aquela noite Kill veio falar comigo no baile, do jeito que ele me encarou igual cachorro vendo picança. Eu tive vontade de rir, ele realmente esqueceu de quando eu era uma mocinha de 13 anos e ele um homem de 18 indo para os fuzileiros e eu escrevi uma carrinha para ele dizendo sobre o meu amor platonico e ele rasgou e jogou no lixo. Okay eu era uma crianças, mas eu chorei por dias, Acho que ele não se lembra, mas voltei a minhas lembras de mim com minha mãe . "Augusto não é oco, mãe. É só... diferente." "Diferente é o elefante que tem duas trombas. Cuidado, hein?" Diferente. A palavra grudou na minha cabeça. Augusto era diferente. Tinha conhecido ele na faculdade, durante um intercâmbio nos EUA na Universidade de Utah. Três dias depois, o cara já tava me levando pra jantar em iate e dizendo que eu era "a mulher da vida dele". Eu, Ayala, filha do Preto, dono do morro, me derretendo por um playboy que falava "amor" com sotaque de novela mexicana. Mas como não cair? Augusto era o contrário de tudo que eu conhecia: cheiroso, educado, sem tatuagem de facção no pescoço. E a família dele? p**a merda, parecia comercial de margarina Feliz. A mãe dele, Dona Célia, me chamava de "minha nora linda" antes mesmo da gente namorar. O pai, um magnata do petróleo, só sabia falar de dólar e golfe. E eu, no meio daquilo, me senti tipo Cinderela favelada. Só tinha um problema: Augusto era mórmon. Não bebia, não fumava, e não transava antes do casamento. — É meu compromisso com Deus, Ayala. Você entende, né? — ele tinha dito, com aquele sorriso de anjo loiro. Entendi nada. Mas aceitei. Porque quando a mina tá apaixonada, até santo vira trouxa. ** Na manhã seguinte, fui encontrar Augusto no Leblon. Ele tava sentado na varanda do restaurante mais caro do Rio, de óculos Ray-Ban e camisa branca impecável. Parecia um príncipe da Disney, só faltava o cavalo branco. — Minha futura esposa! — ele levantou e me deu um beijo no rosto, sem encostar na minha boca. Detalhe mórmon: nada de beijo de língua em público. — E aí, gatão... — eu sorri, me sentindo meio deslocada no meio daquele povo de colarinho engomado. — Você viu as alterações que fizemos no contrato pré-nupcial? — ele puxou umas folhas da pasta. — Meu pai sugeriu incluir uma cláusula sobre... bem, eventuais hábitos incompatíveis. — Hábitos incompatíveis? — ergui a sobrancelha. — Tipo eu querer ir pro baile funk depois de casada? Ele riu, mas foi uma risada seca. — Tipo gastos excessivos com roupas. Seu estilo pode ser... um pouco intenso para certos eventos da família. Olhei pro meu vestido rosa choque e pro salto de cobra que ele tinha me dado de presente. — Intenso é o senhor seu pai falando de petróleo por três horas sem parar. Augusto não achou graça. — Ayala, isso é sério. Depois do casamento, você vai representar a família. Precisamos adequar seu visual ao... padrão. — Adequar? — encostei na mesa, e os copos tremeram. — Quer que eu pinte o cabelo de loiro e vista tailleur, é? — Não precisa pintar o cabelo, mas tirar as tranças e alisar. Só até a gente estar mais estabilizados. Depois, você volta a ser você. — ele tentou pegar minha mão, mas eu puxei. — Eu já sou eu, Augusto. O garçom chegou pra salvar a pátria, trazendo suco de laranja que custava um salário mínimo. Fiquei quieta, mas a frase dele ecoou: "adequare seu visual ao padrão". Padrão de que? De gente que acha que favela é defeito? À noite, fui pra casa para me encher de caipirinha com as amigas. Tava todo mundo lá: Jéssica, Vanessa, e a Fernanda, grávida do terceiro filho e reclamando que o marido tava traindo. — Ayala, cadê o noivo? — a Jéssica perguntou, passando batom vermelho no espelho compacto. — Tão não botando ele pra vir comer pastel de feira, né? — Ele não curte muito... — menti, lembrando que Augusto tinha dito que "lugar de gente fina não é em barraco". — Ah, tá. Então depois que casar, você vira uma patricinha enjoada? — a Fernanda deu uma golada na cerveja. — Lembra da época que a gente roubava batom na Daiso? — Eu não roubava, era empréstimo! — ri, mas a culpa bateu. A Vanessa, sempre, encostou em mim. — Ayala, você tá certa de que quer isso? Seu pai tá puto, hein? Ontem tava xingando o Augusto lá embaixo. — Meu pai xinga até o vento, Van. — fingi tranquilidade. — Augusto é bom pra mim. Vou ter uma vida estável, segura... — Estável igual brita na estrada — a Jéssica cortou. — Cuidado pra não cair do salto, princesa. Deram risada, mas eu vi o olhar delas. Tavam com medo de me perder. E eu, com medo de me perder também.
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