capitulo 02

1095 Palavras
Gabriela narrando A primeira coisa que eu senti foi o frio. Um frio tão profundo que parecia ter se instalado dentro dos meus ossos. Não havia som, não havia luz, não havia vida. Só um vazio escuro, pesado, sufocante. Eu tentei abrir os olhos, tentei respirar, mas meu corpo não obedecia. A realidade voltava aos poucos, como se alguém estivesse levantando uma pedra enorme de cima de mim. E então, veio a dor. A dor no meu ventre… uma dor que parecia me rasgar por dentro, como se alguém tivesse enfiado uma lâmina quente no meu estômago. Walter. A faca. O carro parando no meio da estrada. Meu coração implorando. A voz dele. O motivo. As lembranças vinham como socos, um atrás do outro. Eu queria gritar, mas nada saiu. Minha garganta era um deserto seco. Eu só conseguia ouvir minha própria respiração fraca e irregular. Até que uma voz desconhecida ecoou, distante: — Ei… tá ouvindo? Consegue me escutar? Aos poucos, minhas pálpebras abriram. A luz me feriu, como se estivesse queimando meus olhos. Tudo era borrado, tremido… mas havia um rosto ali. Um homem que eu nunca tinha visto antes. Ele parecia simples… roupas gastas, mãos calejadas. Um trabalhador, talvez um morador da região. E ele me olhava com uma mistura de alívio e tristeza. — Graças a Deus… você voltou — murmurou. — Mas não tenta falar. Você tava sangrando demais quando eu te encontrei. Eu piscava. Tentava entender onde eu estava. Tentava entender por que ainda estava respirando. Ele tocou minha testa com cuidado, como se eu fosse quebrar. Talvez eu já tivesse quebrado. Eu tentei mexer a mão. Só consegui levantar alguns centímetros antes de ser engolida por uma dor insuportável. Levei a mão ao ventre . Uma sensação de vazio me fez perder o ar. O homem hesitou. Eu vi a expressão dele mudar. E antes mesmo de ele dizer qualquer coisa, eu já sabia. — Eu sinto muito… — a voz dele falhou. Eu ouvi… mas meu cérebro se recusou a aceitar. Meu bebê. O meu bebê. O bebê que eu tinha descoberto hoje. Eu senti algo dentro de mim se despedaçar com tanta força que pensei que fosse morrer só por isso. Uma lágrima caiu no meu rosto. Depois outra. E outra. E eu não conseguia nem levantar a mão para secá-las. Eu implorei a Deus, mentalmente, para aquilo não ser verdade. Eu implorei pelo meu filho. Implorei por uma chance. Mas só o silêncio respondeu. [...] Os dias seguintes foram um borrão. Eu estava viva, mas era como se o resto de mim tivesse ficado naquela estrada. O homem e sua esposa cuidavam de mim. Davam sopas, me trocavam de posição, limpavam meus ferimentos. Mas eu não falava. Eu não conseguia. Fiquei muda. Completamente muda. Não por causa do machucado. Mas pela dor. A dor de lembrar o sorriso de Walter enquanto me descascava com a lâmina. A dor de ouvir ele dizer que estava apaixonado por outra. Pela Flavia. Minha melhor amiga. As noites eram piores. Eu acordava com a sensação de que ainda estava no carro, ainda sendo esfaqueada, ainda implorando: —Pelo amor de Deus, Walter, o nosso filho… E depois o golpe final, seco, frio, certeiro. Eu acordava gritando sem som. A mão apertada no ventre vazio. As lágrimas queimando no rosto. A esposa do homem me segurava, murmurava palavras que eu não entendia. Ela era boa. Bondosa. Mas nada podia realmente entender o que estava acontecendo dentro de mim. Eu era um corpo respirando. Só isso. Cerca de três meses depois, o homem entrou no quarto com um jornal dobrado. Ele colocava sempre algumas coisas sobre a mesa — comida, água — mas naquele dia, ele me olhava de um jeito diferente. Como se quisesse me proteger de algo. — Eu… acho que você precisa ver isso — disse ele, colocando o jornal ao meu lado. Eu não queria ver nada. Não queria saber de nada. Mas meus olhos acabaram caindo sobre uma foto conhecida. Walter. Meu ex marido. Meu assassino. Ele estava sorrindo para a câmera, de paletó, com o braço em volta de uma mulher usando um vestido caro. Uma mulher que eu conhecia melhor do que a mim mesma. Flavia. Minha amiga. Minha confidente. A pessoa em quem eu mais confiava. A legenda dizia: "Policial destaque fica noivo da filha de seu chefe. Cerimônia marcada" Meu coração parou. Literalmente. Eu senti o ar sumir dos meus pulmões. “Noivo.” Ele estava noivo. Da minha melhor amiga, e agora prestes a se casar. Três meses depois de tentar me matar. E o pior — o pior — estava na frase seguinte: “O policial tenta recomeçar a vida após tragédia que o deixou viúvo.” Viúvo. Do lado tinha uma foto minha pequena, e era assim, que eu me sentia, pequena, fraca, destruída . Ele contou para todo mundo que eu estava morta. Que eu era… passado. Esquecida. Descartada. O jornal escorregou da minha mão. Minha visão ficou turva. Senti meu corpo começar a tremer, mas não de medo — dessa vez era ódio. Ódio puro. Ódio quente. Ódio pulsando. Eles estavam felizes. Prestes a se casar. Vivendo sem culpa. E eu? Eu estava sobrevivendo por um fio, costurada, mutilada, sem o meu filho, escondida num quarto de madeira, tentando lembrar quem eu fui um dia. Foi nesse momento que algo mudou dentro de mim. Algo antigo, primal, brutal. Eu me levantei — pela primeira vez sozinha — mesmo que minhas pernas quase cedessem. Caminhei até o espelho rachado pendurado na parede. Eu m*l me reconheci. Meus olhos estavam mortos. Meu rosto estava cinza. Minha alma… esvaziada. Mas ali, naquele reflexo, eu encontrei uma coisa que nunca tinha visto em mim antes: Determinação. Eu abri a porta do quarto e saí para o lado de fora. A noite estava fria, silenciosa. O senhor me chamou, mas eu não respondi. Eu parei na beira da estrada, olhando para o céu escuro, sentindo o vento bater no meu rosto. E então falei pela primeira vez desde o ataque. — Eu vou matar você. Minha voz saiu baixa, quebrada… mas firme. — Eu vou matar você, Walter — repeti, e senti minha garganta arder. — Vou olhar nos seus olhos antes de acabar com a sua vida. E pela primeira vez desde aquela noite, eu senti meu coração batendo forte. Não por medo. Não por amor perdido. Mas por vingança. Eu renasci ali. No meio do frio. No meio do nada. E eu juro que você vai cair pelas minhas mãos.
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