Pré-visualização gratuita 1 - Lorena
Meu dia já começou uma bagunça.
Virei a noite no baile, esquecendo completamente que hoje tinha que estar na padaria às sete da manhã. Agora tô aqui, virada, de pé, ouvindo Dona Maria me descascar atrás do balcão.
Trabalho numa padaria pequena aqui no Complexo da Maré. Moro com a minha mãe, Simone, numa casinha de fácil acesso no morro.
Antes, a gente morava junto com o Nathan, o neto que minha mãe criou como filho.
Assim como ele, sou cria da dona Simone. Fui largada pelos meus pais biológicos antes mesmo de completar dois anos. Vício. Droga. Um passado que prefiro não mexer. Ela me pegou pra criar, me deu teto, comida e amor.
Nathan foi meu primeiro herói. Meu primeiro tudo, na real. O cara que me levava pra escola, me ensinou a empinar pipa, me defendeu de moleque folgado.
Mas, quando ele fez vinte anos, decidiu sair de casa. Pegou o dinheiro do crime e foi viver a vida dele. Disse que era pra proteger a gente, que não queria misturar nossa casa com a quebrada dele.
Minha mãe ficou m*l. Eu? Fiquei com raiva. E preocupada.
Agora ele vive largado por aí. Come fora de hora, dorme onde dá, uma p*****a só. E ainda tem a cara de p*u de aparecer de vez em quando, todo sorridente, como se nada tivesse mudado.
Mas fazer o quê? Amor de cria é isso.
E tem o Kauê... Outro safado que cresceu junto com a gente. Sempre junto, sempre me tratando como "irmãzinha".
A real é que eu sempre fui meio moleque. Nunca gostei de andar com as meninas, preferia soltar pipa, jogar bola. Por causa disso, já me chamaram de tudo... de sapatão pra baixo.
Tu acha que eu ligava? Nem um pouco. Até porque, no fundo... eu era (e ainda sou) gamada nos dois.
Hoje é estranho pensar assim, mas é a verdade.
Eles me viam como irmã, mas eu... bom, eu fantasiava. Sempre fantasiava.
Só não deixo essas ideias crescerem muito na cabeça porque sei que a chance é zero. Quer dizer... é o que eu tento acreditar. Minha mente insiste em dizer que só continuo virgem porque no fundo... ainda espero que um dos dois (ou os dois...) um dia me tire desse posto.
Sabe quando a vida parece que tá no piloto automático? Então... a minha anda assim.
Acordo cedo pra trabalhar, volto pra casa, cuido do Ryan quando a Rayssa precisa, estudo quando sobra tempo... e, no meio disso tudo, ainda arranjo um espacinho pra sofrer por dois homens que, até onde eu sei, nem cogitam me olhar com desejo.
A história da minha vida é essa.
Tem dia que eu me pego olhando pro espelho, tentando achar o que falta em mim. Se é que falta alguma coisa.
Não me acho feia, tá? Tenho corpo, tenho b***a, tenho peito... sei fazer uma make da hora quando quero. Até que me viro bem. Mas quando o assunto é Nathan e Kauê... parece que eu sou invisível.
Talvez porque eu cresci com eles. Talvez porque eles me viram correndo descalça pela rua. Ou talvez... porque eles sejam dois idiotas mesmo.
Kauê, por exemplo... É o tipo de cara que chega no baile e já vira centro das atenções. Alto, moreno, tatuado, sorriso sacana. Ele tem aquela energia de "faço o que quero, na hora que quero". Vive de risada, de zoeira... mas no fundo, todo mundo sabe que ele é problema.
Filho de ex-traficante, neto de outro, e agora... dono de parte do morro com o Nathan.
Já o Nathan... ou Rei, como a maioria chama...
É outra pegada. Mais calado, olhar de canto, jeito de quem tá sempre observando tudo. Ele é estrategista. Frio. Não é de papo furado, mas quando abre a boca... cê sente o peso.
Se Kauê é fogo, o Nathan é gelo. E eu... sou só uma menina no meio disso tudo.
Quer dizer... menina entre aspas. Tenho 21 anos. Já sou mulher feita. Mas na cabeça deles... continuo sendo a "Lore", a "pirralha", a "cria da dona Simone".
Já tentei sair, conhecer outras pessoas... mas, na moral? Nenhum cara consegue me fazer esquecer os dois.
Minha amiga Rayssa vive dizendo que eu tenho que desencanar. Ela fala que tô perdendo meu tempo, que eles tão em outro mundo... mundo de crime, de mulherada, de dinheiro fácil.
Mas quando eles encostam, quando o cheiro deles mistura com o ar... é como se meu corpo inteiro respondesse. Mesmo eu tentando fingir costume.
Tem dia que o Kauê passa na padaria só pra me tirar do sério. Encosta, provoca, faz gracinha... e eu? Finjo que não sinto nada.
Já o Nathan é diferente. Ele não fala... mas olha. Aquele olhar que parece atravessar a alma. Só que, no segundo seguinte, ele vira o rosto e age como se eu fosse só mais uma.
O que é pior.
E eu sigo aqui... me equilibrando entre a vontade de me jogar e o medo de estragar tudo. Tem noite que eu deito e fico imaginando os dois juntos... Comigo.
É sujo? Talvez. Mas quem nunca?
A verdade é que eu cansei de esperar. Só que ao mesmo tempo... morro de medo de dar o primeiro passo.
Tenho medo de me machucar, de virar piada... ou pior... de perder os dois.
Enquanto isso... sigo minha rotina e à noite, quando tudo silencia... É só eu, minha cama... e aqueles pensamentos que me queimam por dentro.
Mas quer saber? Um dia... um dia eu ainda vou bagunçar o mundo dos dois. Só pra ver como eles vão lidar.
— Vai logo, Lorena! Hoje você tá muito molenga! — Dona Maria berra lá do caixa e eu reviro os olhos.
— Já vai, Dona Maria! Relaxa aí! Acabei de chegar! — devolvo no mesmo tom.
O movimento começa a crescer. Normal pra um pós-baile. O povo sai direto da rua pra cá.
Quando olho pro lado... lá vem ele. Kauê.
Boné aba reta, corrente no pescoço, sorriso sacana. Ele chega com aquela marra de sempre, me dando bom dia como se fosse dono do pedaço.
— Bom dia, gato. Como foi o abate ontem?
— Pô... a novinha representou demais! — respondeu, se gabando.
Reviro os olhos, tentando disfarçar meu desconforto.
— Vai querer o quê pra comer? — pergunto, já pegando o bloco pra anotar.
Ele se inclina sobre o balcão e puxa meu cabelo de leve, como sempre fez desde que eu me entendo por gente.
— Não fica com ciúmes, não, magrela. Tu sabe que sou todo teu.
Dou um tapa na mão dele e emburro mais ainda a cara.
— Kauê, se continuar puxando meu cabelo, eu vou quebrar tua cara. Vai duvidando... Agora pede logo, não tenho o dia todo!
— Quero pão de queijo, café... e pega um pedaço desse bolo aí.
— Isso não é bolo, seu burro! É caçarola.
— Ô Dona Maria! Tá vendo como sua atendente trata os clientes? Assim vou parar de vir nessa padaria!
Ela nem olhou pra ele. Já tá acostumada com essa palhaçada. Faço o pedido dele, atendo os outros clientes, sigo o baile. Porquê vida de bandidagem é fácil, mais a de mulher batalhadora, é labuta.
[...]
Depois do trabalho, sair já no começo da tarde. Indo direto pra casa da minha amiga. A Rayssa é minha metade. Conheci ela de um jeito doido, mas agora somos inseparáveis. Ela tem um filho, o Ryan, meu afilhado. A cria é dela... mas meu também.
Ela trabalha em casa, faz unha. Cuida do Ryan, que ainda é bebê, enquanto atende as clientes. Quando posso, ajudo ela cuidando do pequeno pra ela poder trabalhar.
— Cadê o pretinho da dindinha? — grito, já entrando na casa da Rayssa.
Ryan vem correndo e se agarra nas minhas pernas.
— Pô, pode levar, viu? Tô com duas clientes marcadas e não sei que horas termino. — Rayssa gritou da cozinha.
— Como se eu já não fosse levar, né? Se liga, vagabunda! A cria também é minha! — resmungo, indo pro quarto pegar as coisinhas dele.
Arrumo a bolsa, pego ele no colo, e volto pra me despedir da minha amiga.
— Ray, amanhã é minha folga! Se tu tiver livre, bora fazer alguma coisa lá em casa.
— Vou ver, gata! Assim que souber te aviso.
Duas da tarde. Sol rachando. Ryan todo suado no meu colo. Minha salvação? Nathan, com o carrão preto reluzente dele, que surgiu subindo o morro.
— E aí, pivetinha? Passei lá na padaria pra te pegar, mas cê já tinha saído. Entra aí!
— Nossa, Nathan... me salvou! Ryan tá derretendo de calor.
Ryan nem pensou duas vezes. Pulou pro colo do homem, que abriu um sorrisão largo.
— Fala, moleque! Tá só crescendo, hein? Daqui a pouco tá apavorando nos bailes.
— Que baile o quê! Ele vai ser da igreja. Né, meu príncipe?
— Vai achando... menor é mó pinta. Vai ser o terror do RJ, pode escrever.
O caminho de volta foi com o Ryan "dirigindo" no colo dele, enquanto eu controlava o som no carro. Em casa, procurei minha mãe na cozinha... nada. Pelo jeito, saiu.
Mal tinha dado tempo de eu colocar o Ryan no chão e largar as bolsas quando ouvi o barulho de moto parando em frente de casa.
Pior... eu já sabia quem era.
O ronco daquele motor eu reconheceria até de olhos fechados.
— Fala sério... — murmurei, indo até a janela da sala.
E lá estava o Kauê. Sem camisa, boné torto na cabeça e aquele sorriso de canto como se o mundo fosse dele.
Nathan, que ainda tava largado no sofá mexendo no celular, levantou os olhos só de relance, mas logo voltou a atenção pro visor como se a presença do amigo não fizesse diferença nenhuma.
Eu, por outro lado, já comecei a sentir o estômago revirar. Sempre era assim. Onde tinha um... o outro colava logo depois.
Do nada. Sem ser chamado. Kauê entrou sem nem bater. Claro. Como sempre.
— E aí, família? — ele falou alto, já abrindo os braços como se tivesse chegado na própria casa.
— Boa tarde pra você também, né? — revirei os olhos.
Ryan, que ainda tava no chão brincando com os próprios brinquedos, levantou na hora e correu pra ele.
— Meu cria! — Kauê pegou o menino no colo com facilidade, girando ele no ar e fazendo o pequeno gargalhar.
— Chegou por quê? — Nathan perguntou sem tirar os olhos do celular, mas a entonação dele foi diferente. Baixa, seca. Quase desinteressada... mas eu conhecia aquele tom.
Era o jeito de dizer: "não era pra você tá aqui."
— Ué... só passei na padaria, a Thay não tava... vim dar um salve aqui. E pegar meu café também, né? — ele respondeu, com o sorriso mais cínico do mundo, encarando o outro de canto.
Eu me segurei pra não rir. Sabia que os dois viviam nessa disputa velada há anos. Principalmente quando o assunto era eu. Mas eles nunca admitiam, claro.
— Bom saber que minha casa virou ponto de encontro. — resmunguei, indo pegar o copo d'água que eu tinha deixado na pia.
Quando voltei pra sala, a cena já tava montada:
Ryan no colo do Kauê, Nathan agora sentado com as pernas esticadas no tapete, mexendo num dos carrinhos do Ryan só pra não ficar de bobeira.
Os dois ali. No meu chão. Na minha sala.
E eu? No meio. Literalmente.