CAPITULO 21

1137 Palavras
"Não." Foi a única palavra que saiu da minha boca desde que aquele maldito bilhete . “Está pronta para negociar, Signorina Piromalli?” Não. Foi minha única resposta. Dia após dia. E a cada dia, perdia mais da mulher que fui. A chefe da Camorra. A filha renegada. A mãe em formação. Aquela sala continuava me olhando como uma aberração elegante. Não havia poeira em nenhum canto. Nenhum ruído. Nenhuma janela. Apenas paredes e o zumbido suave de um ar-condicionado que parecia zombar da minha presença. Meus pulsos, presos à poltrona. Meu corpo doía, mas eu não admitia. Sentia cada osso, cada músculo tenso pela recusa em me render. O tempo se dissolvia. Não havia relógios, não havia sol. Só o abrir e fechar da porta. E os quatro. A enfermeira era a primeira. Jovem, gentil. Tinha voz de professora do primário e sempre começava as visitas com um “bom dia, Catarina”. Como se estivéssemos numa clínica de repouso. Ela me chamava de "querida", como se isso fosse me fazer abrir a boca. Eu a odiava. Mas mais ainda, odiava que, de todos ali, ela parecia sinceramente preocupada. O segundo era o capanga do canudo. O primeiro que vi. O mais burro, o mais despreparado. Eu o desprezava e ele sabia disso. Seus olhos eram pequenos, inquisitivos, como se quisessem decifrar por que diabos uma mulher recusaria macarrão à bolonhesa. O terceiro... ele era o pior. Era o que respondeu que Adam estava vivo. Não explicou mais. Só disse: “Ele ainda respira.” Como se isso bastasse. Como se essa frase não fosse uma tortura pior do que qualquer coisa que pudessem fazer comigo. A cada visita dele, eu ficava esperando que dissesse mais. Que completasse com um “mas”... e às vezes completava. Da pior maneira. Adam aparecia. Por segundos. Machucado. Rosto inchado. Lábios rachados. Sangue seco no canto do olho. Uma vez o vi ser arrastado pelo corredor. Tentei gritar. Mas minha garganta estava seca demais. E o quarto. O da Balaclava. Esse era o que me fazia querer gritar, quebrar, arrancar os olhos dele só por existirem. O capuz n***o escondia tudo, menos os olhos e a boca. Castanhos, cor de mel queimado. Lembravam os olhos de Dante. E isso me destruía. Ele me alimentava à força, enfiava a colher de sopa entre meus dentes mesmo quando eu resistia. Certa vez, cuspi no rosto dele. A sopa escorreu pela balaclava. Ele não gritou. Só se levantou e saiu, com o prato nas mãos. Mas cada dia era pior. E não só para mim. Adam. Toda vez que o vi, estava mais ferido. Ele m*l conseguia andar na última vez. Sua cabeça caía para frente como se o pescoço estivesse solto, pendurado por um fio. Eu queria correr até ele. Dizer algo. Mas tudo que fiz foi morder o lábio com força, tão forte que senti gosto de ferro. A fome me corroía por dentro. E não era só minha. Era dele. Do bebê. A enfermeira começou a suplicar. “Você vai matá-lo, Catarina.” Ela falava como se estivesse desesperada. Como se já não fosse tarde. Como se as olheiras dela fossem por minha causa. Eu me negava. Ainda era tudo que eu podia controlar. Meu corpo. Meu silêncio. Minha decisão. No quarto dia, algo mudou. Ouvi a maçaneta girar mais cedo do que o normal. Estavam fora da rotina. Um pressentimento me tomou como uma febre. A porta abriu com precisão calculada. Entraram os três: a enfermeira, o capanga com cara de nojo e o homem da Balaclava. Pela primeira vez, entraram juntos. Coreografados. Preparados. Levantei a cabeça, as costas rígidas contra o encosto da poltrona. — O que é isso? — perguntei com a voz arranhada, mais fraca do que gostaria. Nenhuma resposta. Apenas olhares. O capanga se aproximou primeiro, desatando os velcros que prendiam meus pulsos. Pensei em resistir, mas sabia que seria em vão. Já havia testado os limites do que meu corpo exausto podia suportar. A enfermeira vinha logo atrás, com uma bandeja de metal cheia de tubos, seringas, um frasco de soro pendurado num suporte portátil. — Não. — falei, antes mesmo que qualquer um deles pudesse agir. — Eu disse que não vou comer. — Catarina, você precisa… — começou a enfermeira. — Eu disse que não! — gritei, e minha voz ecoou contra as paredes limpas, brancas, estéreis. Ela hesitou por um momento. O homem da Balaclava se aproximou. Não falou nada, apenas se ajoelhou ao meu lado, como da última vez. Mas não trazia sopa. Trazia o silêncio. E o controle. Meus braços foram puxados. A enfermeira procurava uma veia, falava rápido, nervosa, tentando justificar aquilo com termos médicos. “O bebê precisa de nutrientes. Você está desidratada. Isso não vai terminar bem nem pra ele, nem pra você.” Como se eu já não soubesse disso. Como se meu corpo, que crescia com vida dentro dele, não me lembrasse todos os dias daquilo que estava em risco. Tentaram colocar o acesso no meu braço direito. A agulha entrou. Ardeu. Eu a arranquei. Um jato fino de sangue espirrou sobre a manga da enfermeira, que recuou, assustada. — p***a, Catarina! — resmungou o capanga, avançando para me segurar com mais força. Tentaram de novo no braço esquerdo. E novamente eu arranquei. Dor, sim, mas era tudo o que me restava para sentir que ainda era dona de mim. — Ela vai matar essa criança… — sussurrou a enfermeira ao capanga. Mas eu ouvi. Ela vai matar essa criança. Meu estômago se revirou. Uma onda de náusea me atingiu como um soco. Não sabia se era culpa, fome ou ódio. — Então enfia no pé — disse o capanga. A voz dele parecia exausta. Quase humana. Mas não me comoveu. Na tentativa seguinte, eles prenderam meus tornozelos. Colocaram o soro no meu pé, na parte interna, onde a veia era mais difícil de alcançar. Foi preciso três tentativas. E uma enfermeira com mãos firmes demais para alguém que dizia estar “ajudando”. O capanga saiu depois disso, irritado, deixando-me ali com a enfermeira e o homem da Balaclava. Ela ajustou o fluxo do soro e suspirou. — Você é teimosa demais, Catarina. Eu gritei de novo. Ela tremia. Tentava manter a calma. — Eu sei que você é forte — disse ela. — Mas o bebê não é. Você está matando ele. Por orgulho. Por teimosia. Ele está sofrendo... — E você é uma vaca submissa demais — retruquei, mesmo sabendo que isso me traria consequências. — Aposto que nunca escolheu nada na vida, só seguiu ordens. Ela me olhou. Por um segundo, apenas um segundo, vi algo nos olhos dela. Cansaço? Culpa? Pena? Não importa. Desviou o olhar e saiu. Fiquei sozinha com o homem encapuzado.
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