CAPITULO 22

1003 Palavras
Ele se aproximou, puxou uma cadeira, sentou-se diante de mim. Ficamos ali, encarando um ao outro como duas peças de xadrez presas num impasse. — Vai ficar aí me olhando até eu dormir? — perguntei, sarcástica. Nenhuma resposta. — Acha que se conseguir manter o bebê vivo vai vencer, é isso? Vai me dobrar? Vai me fazer ceder? Nada. Apenas aquele olhar castanho, intenso, que queimava em silêncio. Fechei os olhos por um instante. Respirei fundo. O líquido frio do soro escorria pela veia do meu pé como uma traição. Cada gota me alimentava contra a minha vontade. — Você sabe com quem está lidando, não sabe? — murmurei, abrindo os olhos. Ainda em silêncio, ele se inclinou um pouco. A luz do teto bateu de forma diferente sobre o rosto dele, e pela primeira vez vi uma cicatriz fina, próxima ao olho direito. Um traço quase imperceptível. Mas marcante. Um lembrete de que ele também já sangrou. — Você é igual a ele… — sussurrei. — Igual ao Dante. O mesmo olhar de aço derretido. O mesmo silêncio de quem carrega pecados demais. Um músculo da mandíbula dele se contraiu. Acertei. Finalmente. — O que você quer, hein? — perguntei, com voz baixa, mas firme. — Que eu implore? Que eu suplique? Que diga que me arrependo? Ele se levantou. Pensei que fosse sair, mas não. Deu a volta na cadeira e se aproximou por trás. Por um segundo, temi o toque. Mas ele apenas conferiu o soro, até a agulha com precisão cirúrgica. Colocou um algodão e prendeu com esparadrapo. — Por quê? — perguntei. Ele ficou em silêncio. Aquilo não era um capanga qualquer. Era alguém treinado para guerra psicológica. Alguém que sabia o que dizer, como agir, como entrar debaixo da pele. Ele se inclinou e me olhou mais uma vez antes de sair. A porta se fechou com um clique metálico. Fiquei sozinha. *** Sétimo dia... eu só sei que era o sétimo porque eu sempre contava as refeições recusadas e as vindas do quarteto desgraçado. O quarto estava escuro, mas meus olhos continuavam abertos, fixos no teto branco. O soro pingava devagar no meu pé, preso por tiras grossas. A agulha doía, mas eu já tinha aprendido a ignorar a dor. A cabeça pesava, o corpo parecia mais leve do que deveria. Eu sabia que estava enfraquecendo. Meu estômago doía. Uma dor oca, que latejava sem parar, lembrando que eu não comia há dias. Mas mais do que isso, eu sentia outra coisa — medo. Um medo real, sólido, que começava a tomar forma dentro de mim. O bebê. A enfermeira tinha razão. Ele estava sofrendo. Se não morresse ali dentro de mim, nasceria com sequelas. Isso se nascesse. Eu sabia disso. Conhecia o corpo humano, sabia o que uma gestação precisava. Não adiantava lutar contra a biologia. E ainda assim, eu continuava negando tudo. Talvez fosse orgulho. Talvez fosse a raiva. Talvez fosse porque essa era a única decisão que ainda era minha. A única coisa que eu podia controlar. A porta se abriu com o mesmo som metálico de sempre. Achei que fosse mais um deles. Mais uma tentativa frustrada de me convencer. Mas não era nenhum dos quatro. Era outro homem. Mais velho. Alto, de terno escuro, expressão dura. Tinha um ar de autoridade que não se explicava com palavras. Olhou para mim como se me conhecesse. Como se já soubesse tudo que eu era capaz de fazer — e de destruir. Ele entrou devagar, observando cada detalhe da sala, até parar diante da minha poltrona. — Você já perdeu muita coisa, Catarina — disse, a voz grave, firme, sem qualquer afetação. — Mas agora é a hora de decidir se vai perder tudo. Fiquei em silêncio. Não virei o rosto. Não respondi. Apenas encarei de volta. Ele se aproximou mais. — Já sabemos que você não vai ceder por medo. Nem por dor. Mas talvez ceda por alguém além de você. — Olhou para a bolsa de soro. — E esse alguém está morrendo porque você acha que ainda tem o controle da situação. Não disse nada. Mas ele notou o leve movimento do meu queixo. Talvez um sinal involuntário. Um pequeno reflexo que entregou mais do que eu queria. — Acha que está vencendo alguma coisa aqui? — Ele abaixou um pouco o tom. — Isso não é resistência. É homicídio. A palavra me atingiu como um soco. Homicídio. Não o meu. Mas o dele. Do bebê. O homem se endireitou. — Você tem até amanhã pra decidir se vai continuar perdendo tudo. Adam está pendurado por um fio. E se ele morrer, não será nas suas mãos. Será nas nossas. Você escolhe como essa história termina. E então ele se virou para sair. Sem pressa. Sem olhar para trás. — Você pode morrer aqui, Catarina Piromalli. Ninguém se importa. Mas esse bebê… ele ainda é inocente. Pense nisso. A porta se fechou. E eu fiquei ali. Sozinha. No escuro. Com um soro preso no pé, o gosto de ferro ainda na garganta e uma sensação de que o tempo estava acabando. Dessa vez, não chorei. Também não gritei. Só fiquei ali, respirando fundo, sentindo o gosto amargo da derrota secando minha boca. Mas não era derrota. Ainda não. Ainda não. Meus olhos foram para as cintas nos braços da poltrona. De novo. Como todas as noites. Eu testava. Sentia. Media. Dessa vez, comecei a mover o pulso com mais calma, num ritmo lento. Estava mais fino. Mais magro. A falta de comida estava me consumindo, e isso, ironicamente, podia ser minha saída. Continuei mexendo, com movimentos quase imperceptíveis, girando o pulso contra o couro. A cinta apertava, mas não tanto quanto no primeiro dia. A pele já estava vermelha, irritada. Não importava. Só precisava de mais um pouco. Foi então que senti. Um centímetro. Talvez menos. Um deslizar quase imperceptível. Mas foi o suficiente. Um sorriso escapou, pequeno, quase imperceptível, mas real. Eles achavam que estavam me quebrando. Estavam me afinando.
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