CAPITULO 23

1175 Palavras
Mais um dia. Ou pelo menos era o que eu achava. Aqui dentro não havia janelas. Não havia relógios. Não havia céu. Apenas a constância opressora das paredes brancas, o tilintar das correntes de metal que prendiam minha liberdade e o som ritmado das minhas próprias respirações, cada vez mais fracas. Mas eu sabia. Meu corpo sabia. Pela minha contagem — feita em silêncio, riscada mentalmente como uma prisioneira marcando dias numa cela sem grades — eu estava entrando na trigésima quinta semana de gravidez. O bebê mexia com menos frequência agora, mas quando se movia, doía. Era como se ele gritasse lá de dentro. Como se sentisse a mesma angústia que me dilacerava por dentro. Talvez estivesse com raiva de mim. Talvez já me odiasse. E eu não o culparia. Movi o pulso direito com cuidado. Cada vez mais fino, mais fraco, mais frágil. A cinta de couro que me prendia à lateral da cama escorregou milímetros. Estava funcionando. Finalmente. Dias fingindo estar fraca demais para resistir, fraca demais para lutar — quando, na verdade, eu estava contando. Esperando. Armando. Faltava pouco. O couro cedia devagar. Faltava tão pouco… Foi quando a porta se abriu com aquele ranger frio e conhecido. Engoli seco, escondendo o pequeno triunfo que palpitava no fundo da minha garganta. A enfermeira entrou com seus passos suaves, impecáveis, como uma atriz de tragédia. O jaleco branco estava ainda mais limpo do que nos dias anteriores. Cabelo preso num coque milimétrico. Mãos frias como gelo. Sempre tão cuidadosa. Sempre tão... profissional. Nas mãos, uma nova bolsa de soro e um estetoscópio pendurado no pescoço. — Bom dia, Catarina — disse com a voz doce, como se estivéssemos num consultório, e não numa cela disfarçada de quarto. — Hoje vamos escutar o coração do bebê, tudo bem? Ela não esperava resposta. Nunca esperavam. Estavam acostumados com meu silêncio. Com o meu “não”. Com o meu desprezo. Mas eu me mexi. Virei o rosto em sua direção, deixando meus olhos cravarem nos dela. — Você tem filhos? — perguntei, a voz rouca, arranhada pelo tempo e pela falta de água. Ela hesitou. Pela primeira vez em dias, hesitou de verdade. Um segundo. Dois. Três. — Tenho. — respondeu, por fim. — Uma menina. Seis anos. — Então você sabe. — murmurei. — Sabe o que significa carregar alguém que depende de você pra tudo. Até pra respirar. E mesmo assim... — minha voz falhou. — Mesmo assim, você permite isso. Seus olhos brilharam. Umidade. Culpa. Mas ela não respondeu. Colocou a bolsa de soro no suporte de metal ao lado da cama e começou a preparar o acesso. Suspirei. Meu tornozelo ainda estava preso. O esquerdo. Mas o direito, o que eu trabalhava em silêncio há dias, estava quase livre. O estetoscópio pendia diante de mim como uma corda de salvação. Ou uma arma. Ela veio até mim, puxou a blusa hospitalar do meu corpo com gentileza forçada e posicionou o disco frio contra a pele esticada da minha barriga. — Shhh… — ela dizia enquanto colocou as Olivas em meus ouvidos — Vamos ouvir ele. Fechei os olhos. O som apareceu. Tum… tum… tum… tum… O coração dele. O coração do meu filho. Forte. Ritmado. Vivo. Uma lágrima desceu antes que eu pudesse impedir. Estava ali. Dentro de mim. Batendo. Lutando por mim. Quando todo o resto do mundo queria me quebrar. Abri os olhos. Encarei a enfermeira. — Eu quero vê-lo nascer. — sussurrei. Ela sorriu com ternura, aliviada por, talvez, pensar que eu estava finalmente cedendo. Mal sabia ela. — Mas não aqui. — completei, e a máscara escorregou do rosto dela. O acesso foi colocado novamente, desta vez no dorso do pé esquerdo. Prendiam bem os tornozelos para que eu não arrancasse como antes. Mas o tornozelo direito... estava solto. — Você está se matando, Catarina. E está matando ele junto. Ela se afastou por um momento para anotar algo numa prancheta, foi minha chance. Puxei o soro com força do dorso do pé. O sangue espirrou, quente. A dor me arrancou um grito, mas não hesitei. Com a mão semi-livre, puxei o que restava da correia afrouxada. E consegui. Estava solta. Gateei para a mesa de metal, peguei um bisturi que a enfermeira deixara descuidadamente sobre a bandeja. O peso do objeto em minha mão era um lembrete: eu ainda tinha escolha. Ela se virou e viu. — Catarina! Não! — gritou, esticando os braços. Mas era tarde. Com um movimento brusco, acertei a lateral da cabeça dela com a fivela da correia. Ela caiu com um gemido surdo. Não estava morta, só desacordada. O quarto girava. Minhas pernas m*l me sustentavam. A barriga pesava como chumbo. Mas eu alcancei a porta. Estava trancada, como sempre. Com o bisturi na mão, encostei a testa na porta. Respirei fundo. Escutei o choro abafado da enfermeira atrás de mim. Ela gemia, tentando se sentar. Sangue escorria da lateral do rosto. — Sinto muito. — murmurei. — Mas ninguém vai arrancar ele de mim. Nem você. Nem eles. A maçaneta girou. Eles vinham. Com o bisturi em punho, me virei para a porta. A adrenalina fazia meu coração bater mais alto que o do bebê. Meus sentidos estavam em chamas. A porta se abriu. E ali estava ele. O homem da balaclava. Aquele que me observava em silêncio todos os dias. Que nunca falava. Que ficava no canto do quarto como uma sombra. Que era mais que um capanga. Era o comando. Atrás dele, dois homens armados. Ele me viu. Eu, suada, pálida, com uma barriga de oito meses, segurando um bisturi como uma leoa ferida. Uma mulher desesperada e disposta a qualquer coisa. Nossos olhos se cruzaram. — Saia da minha frente. — eu disse, firme. Ele não se mexeu. — Eu juro por tudo o que ainda existe em mim, se você tentar me impedir, eu uso isso. E não vai ser em você. Vai ser em mim. Levantei a lâmina. Ele deu um passo. Eu a aproximei do meu pulso. — Mais um passo — eu disse, entre os dentes — e eu abro meu próprio pulso. E depois a barriga. Não me testem. O tempo parou. Os capangas hesitaram. Os olhos atrás da balaclava congelaram. Ele levantou as mãos. Calmo. Cauteloso. — Abaixe isso, Catarina — ele disse, finalmente. A voz dele. Grave. Aquela voz. Aquela maldita voz. A familiaridade dela foi como uma faca invisível rasgando meu peito. Meu estômago revirou. Minhas mãos começaram a tremer. — Não… — sussurrei, recuando. O bisturi quase caiu dos meus dedos. — Não. Isso… isso não é possível. Ele não disse nada. Apenas ergueu as mãos lentamente e, diante do meu olhar em choque, levou os dedos até a beirada da balaclava. — Não… não faz isso. — eu pedi, recuando como um animal ferido. — Não brinca com isso. Não brinca comigo. Mas ele puxou. Primeiro o queixo, depois a boca, o nariz, os olhos. E então, ali, diante de mim… estava ele. Dante Mancuso.
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