Estava escuro dentro do carro. A chuva havia parado, mas a cidade ainda parecia úmida, lavada por algo que não era só água. Eu observava os pingos escorrendo pelo vidro, como se pudessem arrastar as lembranças da noite anterior. Mas não arrastavam. As memórias estavam ali, incrustadas em mim como poeira em mármore antigo.
Lorenzo dirigia com a mesma calma de sempre. Seu maxilar estava relaxado, uma das mãos no volante e a outra no descanso de braço. Homem de confiança de Don Antônio há quase duas décadas, conhecia o silêncio tanto quanto as armas. Mas hoje, eu queria palavras.
— Como foi a noite? — perguntei, quebrando o silêncio.
Ele não me olhou.
— Como você previu. — Respondeu. — Homens da 'Ndrangheta. Estavam nos seguindo.
— Resolveram?
— Claro. Nenhum ferido.
Assenti devagar, mas algo me corroía por dentro.
— Conseguiu identificar de qual família eram?
— Não. Sem documentos. Mas... — ele olhou rapidamente pelo espelho — não tenho dúvidas de que foram enviados por Don Miguel.
Meu maxilar travou.
Don Miguel.
O nome era uma lâmina.
Fiquei em silêncio. Por fora, pareci indiferente. Por dentro, estava em chamas.
Eu precisava de uma confirmação. Precisava saber o que meu instinto já berrava: aqueles homens não eram apenas da 'Ndrangheta. Eles eram da família Mancuso. Só podiam ser. Sabiam exatamente onde eu estaria, os horários, os percursos. Aquilo não era só inteligência mafiosa. Era pessoal. Era íntimo.
Poucas pessoas no mundo me conheciam assim. Não com essa precisão.
Claro que não como Dante me conhecia. Mas Dante estava morto.
O que me leva aos meus outros irmãos. Matteo ou Massimo.
E se não fosse? E se...
Sacudi a cabeça. Paranoia era veneno.
— Como foi a sua noite? — disse Lorenzo, num tom mais leve. — Como foi estar de volta ao passado?
Soltei um riso curto, quase sem som.
— Foi... interessante.
— Propôs?
— Propus.
Ele arqueou uma sobrancelha, ainda sem tirar os olhos da estrada.
— E ele?
— Recusou, como imaginei. Adam é previsível. Ético até o osso. Sabe o que é certo, sabe o que é errado... e morre defendendo isso.
— Ele está em risco, Signorina Piromalli. — A voz de Lorenzo endureceu. — Você sabe disso.
— Eu sei.
— Eu posso cuidar disso, se quiser. — Ele fez uma pausa. — Don Antônio também não quer pontas soltas. Nem testemunhas.
O nome dele veio como uma sombra. Don Antônio.
Meu novo protetor. Meu novo fantasma.
— Não agora — murmurei, desviando o olhar para o céu cinza. — Não ainda.
— Como quiser. — Lorenzo respeitava os tempos. Era uma das razões pelas quais ele ainda respirava.
— E o voo?
— Já está pronto. Aeroporto de Teterboro. Uma janela de duas horas no FBO Jet Aviation. Tudo confirmado.
Sorri.
— Perfeito.
O carro deslizou pela cidade até chegarmos ao aeroporto. O luxo discreto do FBO Jet Aviation nos envolveu assim que descemos. Amanda Benson já estava à porta, como no dia anterior. Elegante, solícita, com aquele sorriso de quem sabe lidar com milionários e criminosos sem piscar.
— Bem-vindos de volta, senhorita Piromalli, senhor Lorenzo. — Ela inclinou levemente a cabeça. — É com grande satisfação que anuncio que os preparativos para seu voo estão prontos. Pode aguardar no lounge.
— Obrigada, Amanda. — respondi, com um aceno breve.
Entramos.
A poltrona de couro italiano era tão confortável quanto eu lembrava. Mas nem todo o luxo do mundo podia acalmar a inquietação que me corroía por dentro. Peguei o celular e comecei a buscar notícias.
Eu precisava de atualizações. Sabia que Don Miguel estava se movendo. Precisava entender se ele já havia percebido a retaliação.
E lá estava.
Explosão em boate de luxo em Roma. Três mortos. O local pertence a empresário italiano vinculado a eventos noturnos.
“Empresário”. Laranja. Era uma das casas de fachada de Don Miguel.
O ataque funcionou. Matamos figurões. Mas Miguel?
Nem sinal.
Vivo, ele era problema. Vivo, ele era guerra.
O tempo passou, lento. Eu organizava mentalmente os próximos passos quando vozes ao longe interromperam meus pensamentos.
— Polícia de Nova York!
Ergui os olhos. Lorenzo já estava de pé, com a mão pousada discretamente na cintura — onde provavelmente escondia a Glock.
Três policiais se aproximaram — todos uniformizados, mas algo neles me incomodava. O jeito mecânico, frio, como se estivessem executando mais uma ordem do que cumprindo um dever. O da frente, alto, caucasiano, cerca de cinquenta anos, olhos frios. O tipo de homem que já viu sangue demais.
— Catarina Piromalli?
Lorenzo deu um passo à frente, corpo tenso como mola.
— Depende de quem pergunta.
O policial levantou o distintivo. Como se fosse necessário.
— Polícia de Nova York. Precisamos falar com a senhorita Piromalli.
— Sobre?
— É com ela.
Toquei no braço de Lorenzo. Ele me olhou de esguelha, então dei um leve aceno.
— Se afaste.
Ele obedeceu, dando um passo para o lado.
Encarei os três homens.
— O que vocês querem comigo?
— Precisamos que a senhorita nos acompanhe até a delegacia.
Sorri com um certo desprezo.
— Não vou. Conheço meus direitos. Não fui formalmente acusada de nada, vocês não têm mandado e, até onde sei, não existe risco iminente. Portanto, se me dão licença...
O policial cruzou os braços. Calmamente.
— Nesse caso, gostaríamos de fazer algumas perguntas aqui mesmo. Podemos usar uma das salas privadas do terminal.
Inclinei a cabeça, estudando o rosto dele.
— Sobre o quê?
— Sobre o desaparecimento do professor Adam Scott.
Fiquei imóvel. Um leve frio percorreu minha espinha. Disfarcei. Não sabia disso.
— Fomos informados — continuou ele — que você foi a última pessoa a estar com ele antes de desaparecer.
Meus lábios formaram um sorriso lento.
— Informados? Por quem?
— Testemunhas.
Testemunhas. Samantha. É claro.
Me levantei, com calma. Olhei para Lorenzo, depois de volta ao policial.
— Tudo bem. Façam suas perguntas.
Porque, no fundo, eu já sabia. A partir dali, tudo mudaria.
Eles não vieram só por respostas, mas eu estava interessada na verdade.
***
Eles me conduziram até uma sala no fundo do lounge executivo. Era pequena, com uma mesa retangular, duas cadeiras, um espelho de vidro na parede. Típica, fria. Mas o que me chamou a atenção foi que apenas um policial entrou comigo. O mesmo que falava desde o início. Os outros dois ficaram do lado de fora.
Ele fechou a porta. E então… trancou.
— Isso não é um interrogatório protocolar — comentei, cruzando os braços. — É assim que vocês tratam uma grávida?
Ele ignorou a provocação e puxou a cadeira. Sentou-se, sem abrir o fichário que trazia. Me fitou como se quisesse atravessar minha pele.
— Catarina Piromalli. Nascida em Nápoles, filha de Andrea Piromalli. Presumidamente morta há sete meses em um atentado em Reggio Calabria. Mas aqui está você. Viva. E grávida.
— Vá direto ao ponto.