Rosa Narrando
Eu não sei nem como ele tá vivo até hoje. Sério mesmo. Bem que dizem que gente r**m dura mais.
Já vi ele cair de uma escada bêbado e bater a cabeça na quina da pia, sangrar igual porco, e levantar como se nada tivesse acontecido. Já vi ele fumar pedra atrás da igreja, desmaiar de boca aberta na sarjeta, mijado, babando, e no dia seguinte acordar rindo, pedindo café, me chamando de “amor”. Amor? Amor pra mim morreu faz tempo. O que sobrou foi só a vergonha de ainda estar aqui, vivendo ao lado de um homem que não soube amar ninguém muito menos a filha que a gente botou no mundo.
Eu me chamo Rosa. Já fui mulher. Já fui bonita, vaidosa, cheia de sonhos. Hoje, sou só o que sobrou depois de anos de tapa, grito, desespero e silêncio.
E o pior de tudo? É saber que a minha filha viu isso. Viu mais do que devia. Cresceu com medo. Com trauma. Com dor.
A Sol sempre foi diferente. Desde pequena, ela tinha aquela luz no olho que nem a miséria do mundo conseguia apagar. Ela me olhava e eu via nela tudo que eu não consegui ser. Ela não merecia aquela casa, aquele homem, aquela rotina. Ela merecia céu, livro, boneca, carinho. Mas o que ela teve foi uma infância inteira pisando em casca de ovo, tentando entender por que o pai quebrava tudo quando bebia, por que a mãe chorava escondida no banheiro, por que a boneca dela sumiu e apareceu depois na mão de outra criança na rua porque ele vendeu.
A Sol teve que amadurecer rápido.Aprendeu a calar pra não apanhar.A se esconder pra não ouvir. A se fingir de invisível pra não levar culpa.
E foi por ela que um dia eu criei coragem.
Peguei a mochila dela, coloquei umas roupas, o caderno da escola, a escova de dente, e mandei pra casa da minha irmã. Falei que era só por um tempo, que era pro bem dela. Mas no fundo eu sabia: era a única chance da minha filha viver. Porque se ela ficasse mais, ela ia se afundar comigo. Ia virar sombra como eu virei. E eu não podia permitir isso.
Ela foi embora com nove anos, me olhando com aqueles olhos cheios de pergunta. Eu não tinha resposta. Só tinha culpa. E uma dor do tamanho do mundo por não ter conseguido ser a mãe que ela merecia.
A Sol cresceu longe. Mas nunca se afastou de mim de verdade. Me ligava sempre. Às vezes pra dizer que tava tudo bem, às vezes pra chorar, às vezes pra perguntar quando eu ia sair daqui. Ela me pedia sempre pra ir embora e eu sempre inventando uma desculpa. Mentira. O que eu tinha era medo. E vergonha. Vergonha de ter deixado ele me destruir. Vergonha de ter permitido que minha filha visse tudo aquilo. Vergonha de não ter ido embora quando ainda dava tempo.
Enquanto a Sol morava lá com a Valéria, cercada de primos, de uma rotina que eu não podia controlar, eu fazia o que dava pra tentar dar algum conforto. Trabalhei igual uma condenada. Limpava chão de rico com cara de nojo, esfregava privada de madame, lavava cortina de tecido pesado até ficar com a mão roxa, varria quintal, lavava carro. Tudo que aparecia, eu pegava. Não importava se era vinte, cinquenta reais. Se era pra fazer qualquer coisa, eu fazia.
Eu fiz faxina até o joelho inchar. Fiz unha na cozinha das patroas pra ganhar trocado. Já capinei quintal em casa de velho, lavei cachorro, limpei bar depois de festa. Tudo por ela. Tudo pela minha Sol.
Porque toda vez que a Valéria ligava dizendo:
— Rosa, a Sol tá precisando de roupa.
Eu largava tudo e saía igual desesperada atrás de bico de faxina. De qualquer coisa.
Tinha dia que eu acordava às cinco da manhã sem nem saber onde ia trabalhar. Mas eu levantava, botava um pão seco na boca, e saía com a cara e a coragem. E Deus me mandava. Uma vizinha indicava uma casa. Uma conhecida chamava pra ajudar num evento. Um boteco precisava de alguém pra limpar depois da noitada. Eu ia. Fosse onde fosse, eu ia.
E com o pouco que eu juntava, eu mandava pra Valéria. Às vezes cem, às vezes cinquenta, às vezes duzentos quando dava sorte. E ela sempre mandava foto das coisas. Mandava a foto da Sol sorrindo com a mochilinha nova. Com o tênis rosa. Com a roupa do balé.
Ah… o balé. Ela queria tanto aquilo. Pediu com aquele jeitinho manso dela, cheia de esperança.
E eu, mesmo quase sem nada, fiz o que dava pra mandar o dinheiro do uniforme. Ela ficou toda feliz.
Tava tão bonitinha de collant, com o cabelinho preso. Depois me disseram que riram dela na aula, que zombaram do corpo dela. Ela chorou, desistiu.
E meu coração sangrou de novo.Mas eu mandei. Eu fiz minha parte. Eu fui mãe, do jeito que consegui ser. Nunca fui ausente por escolha. Eu chorei todos os aniversários dela.
No Natal, quando dava, eu me espremia pra comprar uma passagem só de ida, pra ir lá dar um abraço, ver de perto. Se não dava, eu mandava presente. Mandava cartão. Mandava voz no celular chorando baixinho e dizendo:
— A mamãe te ama, filha. A mamãe tá aqui, mesmo de longe.
Eu sabia que a Sol não era uma criança feliz. Como seria? Longe da mãe, com um passado doloroso, cheia de feridas que ela nem entendia. Mas eu dei tudo que eu podia. O mínimo e o máximo. O amor que eu tinha. O suor do meu corpo.
A Valéria foi boa. Sempre foi. Nunca deixou faltar nada. E eu agradeço a Deus todos os dias por isso. Ela criou a Sol como filha. Mas a Sol sempre foi minha.
Continua…