Isadora
Os rádios começaram antes do sol. Não eram ordens abertas; eram frases a meio caminho, como se a casa inteira respirasse por códigos: “garante o acesso”, “fecha a boca da viela três”, “olho vivo na curva do Onze”. A guerra fria do meu pai não estoura em estampidos; ela se move como neblina. De manhã, o cheiro de café sempre tenta vencer o de óleo de arma. Ganha por alguns minutos, perde no resto do dia.
A aula começou às oito, na mesa comprida da sala de jantar, com a professora Leda espalhando livros e marcadores como quem monta um santuário.
— Hoje, revisão de redação — ela anuncia, doce e precisa. — Tema: “liberdade e responsabilidade na cidade contemporânea”.
Mordo a ponta do lápis para não rir da ironia. Escrevo a primeira frase com a caligrafia disciplinada que Leda ama e que eu aprendi para agradar. “Liberdade é um contrato tácito entre o desejo e o perigo.” Apago. Parece pretensioso. Começo de novo: “Liberdade não é ausência de grades; é, muitas vezes, saber onde elas estão.” Deixo. O rádio estala ao fundo; Leda finge não ouvir, ou aprendeu a ouvir por dentro, como eu.
— Você está cansada — ela observa, devolvendo-me um texto anterior com comentários. — Seu “parecer perfeita” pesa mais do que seu “ser honesta” no papel.
— É que ser honesta me custa discussões — respondo, sem levantar os olhos. — E parecer perfeita me garante silêncio… por algumas horas.
Ela se inclina um pouco.
— E o que você prefere?
— A paz temporária que não humilha.
— Então vamos escrever com essa voz — Leda sugere, abrindo a mão, convidando as ideias a descer. — Sem floreios, com precisão.
Concordo. Escrevo. A mão corre, mas o corpo está rígido. A casa tem esse efeito: cada canto sabe o meu nome, cada parede repete a frase que eu jamais falo em voz alta — “eu queria outra vida” — e me devolve com a culpa colada.
Às dez e meia, paramos para um café. Dona Nilda chega com o pratinho de biscoitos amanteigados, e seu olhar de avó emprestada me envolve com a ternura que me salva sem alarde.
— Tua mãe ia te adorar brigando com as palavras — ela diz, sem pedir licença ao passado.
— Eu brigo com tudo que posso — devolvo, leve, para não doer.
— Então escolhe as brigas que não te quebram — Nilda responde, afagando o meu ombro. — As outras você joga pros livros.
Volto para a cadeira. Termino a redação com uma frase que Leda sublinha: “Responsabilidade é o que a liberdade aceita para não virar capricho.” Gosto. Talvez eu esteja aprendendo a assinar a própria voz sem pedir permissão.
O relógio marca meio-dia quando o Sombra, o subchefe e braço direito do meu pai manda me chamar. O escritório tem cheiro de couro e um mapa da Rocinha preso na parede com alfinetes. Ele está de pé, mãos no bolso, barba por fazer, o olhar que mede o mundo como se fosse o único que sabe somar perdas e ganhos.
— Senta, Isadora.
Sento. Ele lê a minha postura antes de ouvir minhas palavras. Aprendi a esconder o tronco tenso, mas os ombros me traem.
— Conversaram comigo hoje cedo do posto de saúde da Roupa Suja — começo, numa respiração só, antes que a coragem se disperse. — Estão precisando de gente para organizar fichas e orientar na triagem. Eu quero ir. É estágio. De dia. Com supervisão.
Ele não contesta os argumentos; corta o coração do pedido.
— Não.
— Pai…
— Não. — A segunda negativa vem calma, e é pior. — Você não vai. “Gente nossa cuida da sua matrícula”, cuida do que você precisa. A rua não te pertence.
— Eu não quero que a rua me pertença — tento, firme. — Quero só estar nela como todos. Ajudar. Ver de perto. Entender o que eu estudo.
Sombra passa a mão pela barba, como quem compra tempo para não explodir.
— Você não foi criada para entender dor por contato direto — diz, sem elevar a voz. — Foi criada para sobreviver a ela. Essa é a minha função. A tua é não me dificultar o trabalho.
— A minha função é ser sua filha, não sua propriedade.
O silêncio que se instala é de aço. Os rádios, por segundos, parecem parar de falar. Ele se aproxima e, pela primeira vez, o cansaço abre uma f***a no rosto duro.
— Não me desafia no que eu não posso ceder — ele pede, quase num sussurro. — Hoje não. Amanhã… — corta, como se prometer fosse perigoso. — Amanhã a gente vê um curso com nome grande e segurança maior.
— Não é de nome grande que eu preciso, é de rua pequena — respondo, sabendo que é inútil.
Ele dá a volta na mesa, beija minha testa, gesto de amor e cerca. Sombra é o homem que me ama e o muro que me impede. E o pior é saber que, num país que mata sonhos nas calçadas, talvez o muro me tenha mantido viva.
— Come com a gente — ele conclui, já de saída. — Hoje tem reunião. Não atravessa o corredor sem alguém do lado.
Quando a porta fecha, a humilhação dança com a culpa dentro de mim. Desejar outra vida no meio da que me protege me faz ingrata. O pensamento me ferra sem piedade: eu sou a herdeira do silêncio, e quero gritar.
À tarde, Tainá aparece com a desculpa de me trazer apostilas. Nilda a deixa subir. Ela entra no meu quarto como um raio de rua que invade janela.
— Precisa de tudo isso pra aprender a dizer “não”? — ela brinca, apontando a pilha de livros.
— Hoje o “não” veio dele — confesso. — Pedi estágio no posto. Cortou antes de virar frase.
Tainá recosta na parede, cruza os braços, me estuda.
— O morro tá segurando o fôlego — ela fala baixo. — Teu pai tá jogando xadrez com gente que arrasta peça com a mão inteira. Cê é a rainha que ele não arrisca. Eu entendo. Sem romantizar, tá? Eu entendo.
— Eu também entendo — respondo, a voz embargada. — Só não sei existir agindo como se entender fosse suficiente.
Ela tira algo da mochila: um pequeno embrulho preto.
— Trouxe para você. — Abre. Uma máscara de renda que combina com meu batom escuro. — “Baile é disfarce, não destino.” — repete, séria. — Eu não te levo pra virar manchete, Isa. Eu te levo pra respirar três horas sem sobrenome. Entra comigo, sai comigo, sem foto, sem brinde, sem provar nada pra ninguém.
Pego a máscara. A renda é leve, macia; o toque acende um território do meu corpo que não responde a rádios, só a música.
— Não é fuga — ela reforça. — É pausa. A vida que você quer se constrói de manhã cedo, tijolo por tijolo. A de sábado à noite é pra te lembrar por que vale a pena acordar no domingo.
— Eu não quero virar problema pro meu pai — digo, meio para ela, meio para o espelho. — E não quero virar bandeira de ninguém.
— Então entra muda, sai calada e usa um nome falso. — Ela sorri, cúmplice. — Dora serve? É seu sem parecer seu.
Dora. Diminutivo que não carrega o peso de herdeira, que caberia num crachá de farmácia, num livro emprestado, num ônibus lotado. Sorrio, pela primeira vez no dia, de verdade.
— Quais são as regras? — pergunto, já sabendo a resposta, mas querendo ouvi-la organizando meu caos.
Tainá enumera nos dedos, objetiva:
— Um: nada de bebida de copo aberto. Dois: sem postagem, sem stories, sem “check-in”; telefone no modo avião. Três: a gente entra pela Rua 1 e sai pela Estrada da Gávea; se der r**m, você abaixa, eu falo. Quatro: nada de olhar fixo em quem te olha como se te conhecesse. Lá todo olhar tem preço. Cinco: se a música te perder, você me acha. Eu sou teu ponto de referência.
Concordo com a cabeça, cada regra encaixando no meu peito como um prego que, paradoxalmente, fixa a tábua do meu barco. Cruzo com a minha imagem no espelho: cabelo preso, olhos escuros, a máscara entre os dedos como promessa.
— Eu vou — digo, e a frase me assusta pela firmeza. — Com máscara e com nome. Dora. Entro e saio com você. Três horas. E nunca aconteceu.
— Nunca aconteceu — Tainá repete, colocando a mão sobre a minha, selando um pacto que não se assina no papel.
Ela vai embora antes do entardecer. Nilda aparece logo depois, confere minha temperatura com aquele toque de termômetro antigo que só vó tem.
— Tá quente — ela diz, fingindo ser literal. — Cuidado para não queimar.
— Eu sei — respondo, guardando a máscara dentro do caderno de biologia, como quem esconde um segredo dentro do outro. — Eu prometo voltar inteira.
Ela me beija a testa. O rádio chia. Lá embaixo, homens passam a passos largos; alguém ri alto e é calado. A guerra fria continua sua marcha invisível.
Apago a luz do quarto e encosto a testa no vidro da janela. A Rocinha acende as lâmpadas como constelações de improviso. Lá fora, o mundo do Caveira, como alguns ainda chamam meu pai, segue vasto, vigiado, violento. Aqui dentro, Dora toma forma com a timidez e a coragem das coisas perigosas que nascem pequenas.
Eu não vou ao baile para vencer meu pai. Vou para lembrar a mim mesma que eu existo para além dele. Máscara de renda, nome falso, regras claras. O disfarce não é destino; é respiro. E, por três horas, eu escolho respirar.