Capítulo 2 — Playboy em Turno Integral

1477 Palavras
Lucas O mar me puxa como sempre puxa quem acha que manda na própria vida. Remo deitado até a linha em que a areia vira memória, o sol corta a água em lâminas e a crista da onda me olha como desafio. É cedo na Barra; a praia ainda é só vento, sal e alguns insistentes. Eu sou um desses. Subo na prancha, ajusto o peso, sinto os músculos responderem com a i********e de quem se conhece há anos. A onda nasce e, por um instante, tudo faz sentido: não há cobranças, não há perguntas, não há promessas. Só eu, a prancha e a escolha certa no segundo certo. Desço, rindo sozinho. O riso é leve, mas não preenche. O mar nunca preenche; ele só cala vozes por um tempo. — Tá fino, Andrade — grita o Pedrão, do quiosque, levantando o polegar. — Quase me convence a pegar uma. — Não mente, Pedrão — devolvo. — Cê é fiel à cadeira. Ele ri, balança a barriga e me oferece uma água de coco. Agradeço, bebo em goles longos. O telefone vibra no bornal impermeável. Eu sei quem é antes de olhar: a vida me chama sempre na mesma hora. Bianca. Foto de perfil caprichada, sorriso de canto treinado em frente ao espelho. “Sumiu, gatinho. Morri?” “Tava no mar. Ressuscitei.” “Saudade tem cheiro de sal?” “Tem teu cheiro, que é pior pra mim.” Vejo que ela visualiza e demora três pontinhos a mais do que o jogo permitiria. Responde: “Jantar hoje. Sem furos.” “Furos não, só mergulhos. Te busco às oito.” “Atrasou semana passada.” “A onda tava boa. Hoje eu chego antes.” Coloco o telefone de volta. Bianca é bonita, inteligente e divertida. Fico tentando entender por que isso nunca é suficiente para me prender mais do que duas semanas. Talvez por culpa das promessas que me fizeram quando eu era pequeno e nunca cumpriram; talvez por culpa das que eu mesmo não faço para não ter o trabalho de quebrar. Tomo um banho no chuveiro da praia, jogo a prancha no carro e sigo pro Leblon. Café, pão na chapa, suco de laranja. O garçom já me conhece; eu gosto de parecer conhecido em lugares que troco o tempo todo. Abro os directs enquanto espero. Tem convite para um after na Gávea, aniversário de um promoter que jura que “vai ser histórico”, foto de uma desconhecida no rooftop pedindo “você aqui”, e uma mensagem do Rafa: “Almoço no de sempre. Shortinho e notícia.” Mando um “tô indo” e termino o café. Penso em Bianca de novo. Eu poderia realmente chegar às oito, puxar assunto sobre o filme que ela indicou e fingir que me importo com a briga dela com a prima. Mas eu não minto. Eu gosto das pessoas até o ponto em que gosto de mim—e quase sempre esse ponto vem rápido. Chego ao restaurante do Jardim Botânico, mesa no fundo, sombra boa e aquele barulho de talher chique que não me intimida mais. Rafa já está lá, de boné virado e sorriso de amigo que te conhece desde que você achava que moto era entrada para a eternidade. Theo chega logo depois, jeans surrado, camiseta preta, a calma de quem parece mais velho do que é. Caio, o DJ, entra por último, carregando no ombro uma mochila que deve ter mais segredos que meu passado. — Fala, família — Caio cumprimenta, batendo as mãos. — Cheguei com pauta. — Se é pauta tua, é alto — digo, puxando a cadeira. — E aí, Rafa, o shortinho? — Aqui, ó — ele puxa o celular e mostra um vídeo de trinta segundos dele dando mortal na praia com as crianças da escolinha gritando. — Tio Rafa ainda é lenda. — Lenda da Lapa — Theo corta, seco. — Oito da manhã, e o homem já é after ambulante. — Falando em after ambulante — Caio se inclina para a frente, olhos acesos —, sábado eu vou soltar set na Rocinha. Baile do Fio. VAI SER GIGANTE. A mesa faz o silêncio breve de quem sabe que o assunto muda de densidade. Eu mexo o gelo do meu refrigerante com o canudo. — Vai tocar lá em cima mesmo? — pergunto. — Laje grande, som novo, projeto de luz maluco — ele enumera com a empolgação técnica de quem ama o que faz. — Fiz uns mashups inéditos, trap com funk, uns recortes de voz que… irmão, ninguém tá pronto. — E a regra? — Rafa levanta a sobrancelha. — Sabe como é: respeita território, não ostenta, entra certo, sai certo. — Tudo certo — Caio garante. — Tô com o contato do n**o Célio, segurança de lá, e do próprio Fio. É trabalho, não turismo. Mas… — ele ri, sabendo me fisgar — trabalho que dá pra levar amigo. Theo me olha por cima do copo. — Lucas, você não precisa disso. — De que? — faço o desentendido profissional que habita em mim. — De adrenalina pra preencher silêncio. — Ele fala sereno, como sempre. — Já te vi trocar festa por precipício muitas vezes. Rafa dá uma risada. — Ele troca até compromisso por precipício. Pergunta pra Bianca. — E me lança o olhar de irmão folgado. — A Bianca tá bem — respondo, evitando o que vem depois. — Olha, eu vou — Caio retoma. — Tenho esquema, tem caminho, tem saída. Vai ser histórico. Eu queria vocês lá, mas não vou empurrar ninguém pra furada. A furada, se existir, é minha. Penso sobre “furada”. Furada pra quem? Pro cara que nunca pisou num morro sem blindagem afetiva, que acha que todo lugar é cenário? Eu conheço regra. Respeito regra. E, mais do que isso, conheço a minha própria fome. É uma fome estranha: não é de risco gratuito; é de ver a vida de um ângulo onde ela não simula, ela é. Na Rocinha, eu sei, as coisas são. O som bate diferente não porque a caixa é “top”, mas porque o coração de todo mundo ali bate junto. Isso me atrai. — Sábado eu janto com a Bianca — digo, hesitando só por educação. — Depois do jantar eu posso… dar um rolê. — “Dar um rolê” — Theo repete, cético. — Tradução: atravessar cidade, subir ladeira, entrar no olho do furacão e dizer que foi buscar um vento. — Ventos bons mudam rota — respondo, sorrindo. — E eu gosto de mudar rota antes que a rota me mude. Rafa me cutuca com o ombro. — Só não vai chegar lá com esse relógio de príncipe. Deixa metade dessa elegância no porta-luvas. — Relaxa — digo. — Eu sei entrar e sair sem fazer barulho. É meia mentira. A verdade é que eu gosto de ser visto. Não como alvo, mas como presença. Meu carisma é ferramenta; eu abro portas com ele e fecho assuntos quando quero. Ainda assim, há lugares onde o truque não funciona, e talvez seja justamente por isso que eu queira ir. — Então fechou — Caio conclui, batendo palmas uma vez. — Me manda mensagem quando estiver a caminho. Eu te encontro num ponto combinado. E leva tênis, por favor. O morro não é desfile de marca. — Eu tenho um par que anda sozinho — brinco. Nos despedimos com a leveza habitual do nosso pacto não escrito: cada um cuida do outro quando a noite resolve devorar gente. No estacionamento, o sol da tarde bate no capô do carro como se me desse um empurrão. Entro, ligo o som, deixo um beat qualquer preencher o espaço. O telefone vibra: Bianca de novo. “Oito em ponto. Sem invenções.” “Sem invenções.” — digito, e apago. Reescrevo: “Oito em ponto. Promessa.” Promessas funcionam como boias: podem salvar ou dar falsa segurança. Guardo o aparelho, olho pelo para-brisa, respiro fundo. A cidade me devolve espelhos, e eu escolho o meu melhor ângulo sem culpa. No sinal, um menino me oferece bala. Compro duas, como uma, guardo outra no console. Pequenos rituais me lembram que eu existo para além das ondas e dos afters. Mas eu sei que hoje eu decidi algo que vai me tirar do roteiro. Sábado, depois do jantar, eu vou subir a Rocinha. Não como quem coleciona histórias para contar na mesa de domingo, mas como quem busca ouvir o som que ainda não ouvi. “Rolê diferente” é o nome bonito para aventura acima do bom senso. Eu reconheço. Eu aceito. E, pela primeira vez em semanas, sinto um frio bom no estômago — aquele que anuncia que talvez, só talvez, algo finalmente vá me alcançar de volta.
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