Capítulo 4 — Os Portões da Voz

1445 Palavras
O primeiro som que Elian emitiu não foi palavra. Foi nota. Um timbre rouco, entre o fôlego e a vertigem. Um fragmento do canto que vinha assombrando seus sonhos, aquele som sem origem, que agora vibrava em sua garganta como se sua alma o empurrasse para fora à força. Nyra ouviu e parou. Não era possível. O canto não era humano. Era antigo. Era selado. Ela se ergueu na água até que seus olhos ficassem na altura dos dele, que estavam arregalados, confusos, como se não compreendessem o que acabara de fazer. Sua voz era mais ar, menos som. — Você... não deveria conseguir fazer isso — sussurrou ela. Elian levou a mão à garganta. — O que está acontecendo comigo? Nyra não respondeu com palavras simples. Em vez disso, nadou em círculos lentos ao redor da pedra onde ele estava. Seus olhos, antes frios como maré alta, agora estavam marcados por um brilho tenso. Ela podia sentir o Trono pulsando no fundo das águas, respondendo ao chamado. Elian havia aberto o primeiro selo. — Você começou algo que não pode desfazer — disse ela por fim, a seriedade pesando em sua voz. — Cantou a primeira Chave. A Canção da Ponte é um mecanismo de quatro estágios. Cada estágio, cada Chave, desbloqueia algo em você e quebra uma camada do aprisionamento de Maelyr no Trono. Ela explicou o significado e a consequência daquele som proibido. A primeira chave, a Chave da Memória, já estava em curso. Ela ativa o sangue Thalen, forçando-o a se lembrar de sua herança e propósito, mas também quebrando o feitiço de amnésia que o protegia do mar. — E agora — ela continuou, a voz baixa e urgente — a próxima Chave será a Chave da Dor. Ela destranca as barreiras físicas, forçando seu corpo a aceitar o sangue Aquático que foi selado. O sangue dele voltará a fluir para o mar, e o Trono começará a drenar sua vida como um preço. Elian tentou recuar, mas as ondas o prenderam. — E o que é o restante? — perguntou ele, o medo substituído pela aceitação fria do destino. — O terceiro canto é a Chave do Abismo. Ela não só completa a sua transformação, mas liberta os Exilados de Maelyr, monstros ancestrais que servirão para proteger você durante o transe final. É a porta de entrada para a guerra. E o quarto... a Chave do Fim — concluiu, os olhos fixos nos dele —, transferirá todo o poder ancestral. Você se tornará o novo Regente, ou morrerá na tentativa, e Maelyr será liberto ou aprisionado para sempre. No palácio submerso de Selnar, as Guardiãs despertaram com uma fúria sísmica, sentindo a vibração do Selo rompido. Três mulheres envoltas em algas vivas, com olhos de vidro n***o e cabelos como tentáculos pálidos, emergiram de suas criptas de sal. O véu que mantinham sobre o Trono havia se agitado, rasgado por um sopro. — O herdeiro foi tocado — disse a mais velha, com as palavras vibrando como correntes de ferro arrastadas no fundo do mar. Elas sabiam que o contato de Nyra havia cumprido a profecia, ativando a linhagem Thalen. — A Guardiã Traidora falhou — disse a Guardiã do meio, seus olhos de obsidiana refletindo a imagem da praia. — Enviem Tiriel — ordenou a Guardiã do centro. — Ela é a Caçadora de Silêncio. Conhece o caminho para apagar o Selo sem destruir a carne. Ele deve ser silenciado antes que o Trono o consuma. Levem a lança de coral e o Óleo do Esquecimento. Não podemos falhar novamente. Nyra levou Elian até as águas mais fundas naquela mesma noite. Não havia mais como esconder o que ele era. As marcas nas costelas agora se espalhavam por seu peito, como ramos de corais escuros se enroscando em sua pele, um sinal de que o sangue Aquático estava lutando contra a carne humana. — O canto... ele me possui — disse ele, quase num sussurro. — Eu o escuto até quando fecho os olhos. As vozes me chamam de 'Zel-Thalen'. — Isso porque não é apenas som — respondeu ela. — É memória, é juramento. Está em seu sangue. A Casa de Thalen não foi apenas uma família; foram os guardiões originais da Ponte, designados a usar seu canto para selar e acalmar a fúria primal dos deuses do mar, especialmente Maelyr, o Regente do Sal. Nyra revelou a dura verdade sobre o passado. — Sua mãe não desapareceu, Elian. Ela era a Guardiã do Selo, mas falhou no seu juramento ao se apaixonar por um homem da superfície, que também era um Thalen. Ela não o salvou; ela falhou no juramento. A fuga não foi por amor, foi por covardia. Ela o deixou criado por pescadores na esperança vã de que a água não o chamasse de volta, que o feitiço de esquecimento se tornasse permanente. Nyra nadou mais perto, a urgência pesando em sua voz. — Você é metade abismo, metade luz. Você é o erro genético que o mar quer corrigir. O Trono quer seu sangue para se alimentar e se curar. As Guardiãs querem silenciá-lo. E o Regente quer usá-lo para se libertar, ativando o Selo através da minha Canção. — E você? — perguntou ele, encarando-a, buscando a verdade. Ela desviou o olhar, sua indecisão um mar tempestuoso. — Eu ainda estou decidindo se vou ser a Herdeira perdida que cumpre a profecia ou a sereia que salva o único homem que pode me fazer lembrar o que é ter alma. Na mesma noite, Nyra foi chamada para o Círculo de Coral. As anciãs sabiam que a ativação da primeira chave era a sentença de morte para Velha Âncora. — Você quebrou o silêncio — disse uma delas. — A linhagem de Thalen carrega as vozes que devastaram os Reinos Afundados. Se ele cantar os quatro portões, não restará nada. — E se for diferente desta vez? — argumentou Nyra. — E se ele puder domar o Regente? As anciãs se entreolharam. A menor delas, de olhos completamente brancos, nadou até Nyra e pousou a mão sobre seu peito, bem onde ela sentia a pulsação do Trono. — O trono também vive em você, Nyra. O seu retorno foi a chave para o dele. Você vai escolher: o seu destino como Herdeira e o mar... ou ele, o último Thalen, e o sacrifício. Enquanto isso, na praia, Elian sonhava. Ele não afundava; ele caminhava. Através de um túnel de água, onde vozes sussurravam em todas as direções. Todos pedindo a mesma coisa: — Cante. Livre-nos. Ele abriu a boca no sonho. E a segunda nota saiu, a Chave da Dor. Na realidade, seu corpo se arqueou na areia. As marcas em sua pele se abriram como garras, revelando a rede de veias Aquáticas sob a pele. Do fundo do mar, o Leão-de-Trincheira ouviu o chamado. O segundo portão estava destrancado. Nyra sentiu a ruptura. Um som como metal arranhando pedra cortou as águas. Não era canto. Era choro. As criaturas que dormiam nas trincheiras começaram a se mover. O selo da dor havia sido rompido. Ela nadou até Elian com fúria. Sacudiu-o. — O que você fez? — Eu não... eu só dormi — Ele estava pálido, tremendo. — E a música... — Você cantou a Segunda Chave. A Chave da Dor — ela afirmou, forçando-o a se levantar. — Agora eles vêm atrás de você. E o primeiro já foi libertado: o Leão-de-Trincheira, uma das criaturas mais antigas de Maelyr. Ela olhou para o mar, o horizonte agora tingido de uma escuridão oleosa. — Seu sangue é o preço, Elian. O Trono vai começar a drená-lo a cada nota. O céu trovejava. O mar espumava. A transferência de conhecimento ancestral de Nyra para Elian, através do canto, era a única esperança. Ela tocou o peito de Elian, bem onde a cicatriz pulsava. — Você precisa se levantar. O mar é seu inimigo e seu único refúgio. Vamos para a Fortaleza Esquecida. Lá, talvez, sua mãe tenha deixado um último mapa, um último segredo antes de trair a todos nós, um feitiço de contra-canto. Ele assentiu, a dor o tornando forte. A segunda nota havia cumprido sua promessa: a dor forçou o Thalen a despertar. Na escuridão da baía, a Caçadora de Silêncio, Tiriel, emergia. Ela vestia uma armadura de escamas negras e carregava uma lança de coral que podia congelar o sangue. Ela havia sentido o sangue Thalen, o rastro da dor. Seu alvo: o último Thalen. Sua missão: silenciá-lo antes que cantasse a próxima chave. O Trono havia reclamado seu primeiro preço. E a guerra de Nyra estava apenas começando.
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